Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Um panfleto chamado Bolsonaro

Além de frequentemente causar um misto de estranheza, profundo desgosto e repulsa generalizada, os políticos brasileiros parecem estar credenciando-se agora também à ingrata tarefa de reabilitar fantasmas. Foi o que mais conseguiu na semana que passou – além de atrair para si momentos de um brilho obnubilado – o deputado Jair Bolsonaro, ao homenagear em plenário, na sessão que aprovou a admissão do impeachment da presidente Dilma, pessoas diretamente envolvidas no período de maior endurecimento do regime militar e suas práticas mais execráveis, como prisões arbitrárias e a tortura de adversários políticos.

Ou que outros objetivos teria o deputado para revolver períodos tenebrosos da história recente a não ser o de procurar ser uma espécie de seu representante ou possível arauto? Seja como for, se forem outros, parecem ser tão obnubilados quanto a glória de invocá-los. Porém, ao que tudo indica, seu objetivo estava mais centrado em fazer-se notar e também fazer notar o que talvez ele procurasse ali significar: uma lembrança ou um aceno de que o aspecto mais mórbido do período ditatorial pudesse estar, nem que pelo menos em sua mente e de seus simpatizantes, vivo e latente, além de fazer da sua memória um tipo muito específico de baluarte de oposição ao governo atual.

Ainda que verificar o espírito altamente regressivo do momento político presente seja tarefa relativamente simples, é de pensar também em que tipo de efeito contrário o gesto poderia acarretar. Ou poderia haver algo mais apropriado e favorável para o recrudescimento ideológico dos simpatizantes do governo e daqueles que se situam à esquerda? Também é difícil categorizar, mas é bem sabido que as ideologias se fortalecem diante da presença de um opositor tão emblemático, ainda que politicamente um tanto quanto isolado.

Nesse sentido, é bastante possível dizer que o reforço da mensagem do parlamentar veio atender tanto aos seus interesses particulares de visibilidade quanto, por outro lado, ao da situação e dos defensores do governo, por identificar ou pelo menos tentar colar nele um protótipo de todos os seus contendores. Talvez inadvertidamente, Bolsonaro tornou-se um panfleto perfeito, mas justamente para servir aos seus detratores, numa espécie de efeito adverso imediato. Além disso, a aridez do cenário e o acinzentamento das declarações de voto de certo modo também contribuíram espontaneamente para fornecer de bandeja ao governo federal e seus defensores um argumento encruado na memória e na cultura política brasileira: o temor do endurecimento à direita e o fantasma da ditadura militar.

Um expurgo dos aspectos mais violentos do regime

Com exceção dos cientistas políticos e estudiosos correlatos, o comum das pessoas não costuma sentir-se dentro do que aqueles primeiros costumam chamar de “cultura política”. Apesar disso, é bastante claro e observável que todos estejamos inseridos em uma. Às vezes, em mais de uma e, em muitos casos, muitos gostariam que em nenhuma. Esse talvez seja o caso das pessoas que, principalmente entre a parcela mais jovem da população , costumam declarar praticamente nenhum interesse no assunto, embora mesmo esse comportamento possa também fazer parte de uma cultura política em que o desinteresse encerre por si só um significante.

Grosso modo, por cultura política costuma entender-se tudo que se refere ao aspecto moral e normativo de uma sociedade, incluindo-se aí seus valores e crenças predominantes. Porém, num sentido mais amplo, ela pode muito bem abarcar a simbologia e, para além das representações culturais, os modos de expressão afetiva das pessoas. Em se tratando do Brasil recente, há pelo menos três gerações de brasileiros que cresceram e viveram no período do regime militar ou sob sua influência. Ignorar o trauma político e cultural persistente é um luxo a que nenhum político pode se dar e mesmo entre aqueles que creem em algum ganho político com o espezinhamento pelo terror, é preciso considerar os efeitos adversos da ação, como parece não ter pesado ou previsto o deputado Jair Bolsonaro.

Nem sempre é a memória efetivamente vivida que conta com exclusividade na formação do imaginário de uma população, mas seus artistas, suas referências e também o aspecto sentimental da cultura, pela qual ganham adesão ícones e personalidades, tanto no campo intelectual quanto cultural, do mais acadêmico e erudito ao mais popular. Trata-se de um passado ainda muito próximo e enterrado muito rente à terra. Ou mesmo mal enterrado e explicado, como as dificuldades de enquadramento e punição por crimes cometidos e investigados no período ditatorial atestam muito bem. É por isso que, ao se mencionarem tão claramente personalidades comprometidas com o período histórico da ditadura, seja muito pouco possível conter a partir daí a desaprovação pública decorrente de uma declaração tão obtusa e sinistra quanto a proferida por Bolsonaro.

Não é porque toda a população tenha alguém a lamentar por efeito direto de qualquer ação policial do regime militar, mas o eco cultural daquele momento, embebido em medo e insegurança, dificilmente não voltaria a reverberar com muita força. Isso tanto porque muitas das pessoas que viveram aqueles tempos continuam vivas, quanto pela razão de que o processo de abertura e redemocratização foi penoso e demorado, levando cerca de uma década para concretizar-se a pleno, desde os fins do governo do general Ernesto Geisel, em 1979, até a década de 90, com a eleição do ex-presidente Fernando Collor. Pessoas que direta ou indiretamente viveram a política deste período e agora, com a dilatação das redes de contatos, via internet, passaram a última semana realizando uma espécie de expurgo dirigido principalmente aos aspectos mais violentos do regime. Poderia ser diferente? Dificilmente. Não se trata aqui de explorar um determinado capital político, mas um trunfo por si só altamente significativo e ainda mais num momento em que se mostra um afunilamento, ao que tudo indica irreversível, do apoio político ao governo.

Sanguinolência e virulência

É bem possível que o parlamentar do PSC tenha menosprezado o revés político que sua manifestação poderia causar. Seria uma aposta em sua ingenuidade, mas é igualmente improvável que se trate disso. Outra possibilidade seria a de que ele não tenha se preocupado com isso ou medido as consequências políticas do gesto. Para completar, a reação também em plenário do cuspe do deputado Jean Wyllys em sua direção serviu de motivação aos detratores de Bolsonaro, como se Jean fosse um ícone às avessas daquele. Como “campeões” que estivessem em disputa e resumissem todo o cenário de disputa. Nada mais apropriado para um período de intensa polarização, mesmo que tenha partido de um deputado cujo partido, PSOL, não se identifica como base aliada do governo nem nele tenha qualquer espécie de composição ou cargo administrativo, mas que pouco se diferencia ideologicamente na disputa específica do impeachment. Quando manifestações nesse nível primário de agressividade se estabelecem na “casa” que deveria salvaguardar a democracia, ainda que em seus momentos mais frágeis e surreais, torna-se impossível deixar de verificar a que ponto de regressão histórica, no campo político, conseguiu-se chegar.

Mais até que a disputa em torno do impeachment propriamente dito, o que se pode perceber vibrar no campo político são as formas pelas quais as ideologias de direita e esquerda vão ganhando contorno na atualidade brasileira. Além dos ícones e políticos que alinham e enfileiram apoio público às suas posições, há uma disputa de culturas políticas e isso envolve narrativas específicas, formadores de opinião, mídias e a própria população que, mais via redes sociais que na vida real, reforça ou refuta determinadas posições políticas, em movimentos que são estudados e orquestrados tanto do ponto de vista político imediato, de resultados, como de marketing político e cultural a longo prazo. Não há ingenuidade na política, nunca houve e o desejo de fazer crer que há uma só espécie de razão factível no debate é uma demonstração tácita de que a má-fé pública tornou-se imperativa.

Em relação ao deputado Bolsonaro, há um componente na sua declaração que agride não só as pessoas identificadas à esquerda, mas todos aqueles que rejeitam o extremismo e a cessão de liberdades, assim como qualquer proselitismo em torno a violações dos direitos humanos. De fato, é simplificador e abusivo neste momento associar o seu comportamento ao de todos os que são favoráveis ao desenlace do processo de impeachment, mas também é simplificador tratar sua declaração como inofensiva. Não só não é inofensiva como significa, ainda que quase alegoricamente, a imposição e a naturalização de um discurso de exceção em meio a um processo que é muito questionado quanto à sua legitimidade formal. Se politicamente o processo de impeachment passou a resumir a disputa de projetos políticos ou se trata de um processo de purificação à Pollyanna, só a história irá dizer, pois mesmo as mais prementes análises políticas são parciais, mesmo as que propugnam para si a qualidade de isenção ideológica.

Além de tudo, se a fala de Bolsonaro parece gratuita ou um mero retrucar, este é um problema de toda a sociedade, considerando a tímida reprovação com que ele contou no âmbito do legislativo, dos seus pares deputados na Câmara dos Deputados, “casa” muitas vezes incapaz de conter aberrações políticas e cada vez mais formada por políticos profissionais acomodados em partidos que em sua grande maioria desprezam a mais elementar noção de autocrítica e correção.

Naquele momento, afinal, ficou muito visível que espécie de prática política andou prosperando nos últimos anos, em meio ao esvaziamento generalizado de conteúdo político que, por isso mesmo, parece ainda gerar mais e mais comportamentos anamórficos e anacrônicos, tais como os que foram vistos, repetidos, revistos sem nem necessidade de legenda ou maiores explicações porque falam por si só.

Bolsonaro tomou a decisão de dar vida a um ícone dos mais simbólicos do período ditatorial. Decerto ele não teme ou mesmo deseja despertar a aparição de outros fantasmas. Na política atual, nem que seja no campo simbólico e discursivo, há quem vibre e muito com a sanguinolência e virulência, isso em qualquer extremidade do campo ideológico. Parece que o Brasil não é um país que tema zerar a República e nem brincar com fantasmas.

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Lucio Carvalho é autor de Inclusão em Pauta (Ed. do Autor/KDP), A Aposta (Ed. Movimento) e do blog Em Meia Palavra . Editor da Inclusive – Inclusão e Cidadania