Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma boquinha para os ‘idiossincráticos’

Uma das táticas mais eficazes para se conseguir espaço na imprensa brasileira, e quem sabe até mesmo uma boquinha de colaborador permanente, com direito ao seu próprio blog, é fazer a encenação da idiossincrasia. Mas, embora possa parecer fácil, é tarefa para pessoas talentosas.

Primeiro, e basicamente, é preciso vocação e tirocínio para identificar onde o conservadorismo e a arrogância da imprensa podem ser lustrados a ponto de fazê-la parecer moderna. Pós-moderna, como se dizia na década passada. Contemporânea, como se diz hoje.

Segundo, mas não menos importante, é necessário saber escrever. Não de uma forma elegante, não obrigatoriamente alinhada à linguagem culta, nem é preciso ter um estilo original. Aliás, esse nicho do mercado jornalístico se abre preferencialmente para escrevinhadores raivosos, ruidosos, figadais, irados, capazes de sufocar o leitor com adjetivos e afirmações de opinião tão densas que não lhe permitam pensar fora da matriz proposta. O articulista ou comentarista ‘idiossincrático’, na medida certa, para ser bem-sucedido precisa ser um pouco rocky, mas não pode ser punk. Tem que saber lidar com a linguagem chula, na medida exata.

A terceira qualidade, talvez a mais importante delas, é a capacidade de ignorar as melhores medidas da honestidade intelectual. A construção de raciocínios que, ao invés de estimular a reflexão do leitor, o constrangem a abreviar a formatação do entendimento, buscando os atalhos da simplificação em meio à complexidade dos temas, e ao mesmo tempo dar a impressão de profundidade, esse o grande segredo do sucesso.

Mas há, por cima de todas essa qualificações, aquela que transcende, aquela sem a qual não bastam o texto adequado nem a criteriosa abdicação do rigor intelectual que deveria ser a essência do jornalismo de opinião. Trata-se da sensibilidade para demonizar toda e qualquer expressão de humanismo que se apresente ao espaço do debate público. Desde a questão indígena, passando pelo problema do aquecimento global, atravessando o tema das carências sociais, cruzando o território dos conflitos agrários e especialmente no amplo e diversificado campo dos direitos humanos, têm maiores chances de triunfar e conquistar um espaço nobre na mídia aqueles que são capazes de empurrar toda essa temática para debaixo dos tapetes. De preferência, carimbando toda e qualquer reflexão a esse respeito como herança anacrônica de ideologias superadas.

Afirmações desmentidas

O fenômeno não se restringe à imprensa nacional, mas encontra aqui terreno fértil para prosperar, graças à eliminação quase absoluta do pensamento divergente nas redações dos principais títulos. Da mesma forma, pode ser observado na imprensa latino-americana em geral, toda ela formatada na mesma matriz conservadora, e se revela em muitos títulos tradicionais da imprensa reconhecida como padrão do melhor jornalismo internacional. Está na moda ser conservador, e os rebeldes de hoje, finalmente realizados como rebeldes sem causa, têm na verdade como última causa a morte da inteligência.

Há toda uma diversidade de assuntos rotineiramente abordados por esses autores, mas sua preferência quase sempre recai sobre temas complexos relacionados a problemas de difícil solução, como as questões da pobreza, das dívidas sociais com relação às populações indígenas, da gestão territorial e agricultura – com as extensões do biocombustível e da segurança alimentar, dos direitos fundamentais mal resolvidos, dos novos conceitos de soberania, do papel do Estado, da responsabilidade social das empresas.

Ultimamente, uma chusma desses pensadores de oportunidade tem se dedicado a tentar desmoralizar um dos mais intensos esforços da comunidade científica internacional: o relatório sobre mudanças climáticas elaborado com a colaboração de milhares de especialistas e divulgado em fevereiro de 2007 sob patrocínio da ONU.

Uma das fontes mais recorrentes desses especialistas de última hora, entre os quais se alinham verdadeiros cientistas, é o ex-banqueiro britânico ‘lord’ Nigel Lawson, que foi ministro de Finanças e da Energia no governo de Margareth Thatcher e diretor da revista The Spectator. O livro de Lawson, intitulado Um Apelo à Razão: Um Olhar Frio sobre o Aquecimento Global, alinha uma série de argumentos tentando desmontar a urgência de medidas contra as mudanças climáticas, majoritariamente baseados em uma sucessão de artigos publicados na imprensa, depois da divulgação do relatório do IPCC, por cientistas de várias especialidades, alguns deles declaradamente financiados pela indústria petroleira.

Entre os equívocos cometidos pelo autor, que os articulistas ‘idiossincráticos’ ignoram convenientemente, está o descuido de reproduzir citações da imprensa devidamente desmentidos ou desmoralizados, como a afirmação de que a produção de biocombustíveis aumenta inevitavelmente as pressões sobre as áreas de agricultura destinadas à produção de alimentos e estimula a degradação do patrimônio ambiental. Ou que os projetos de biocombustíveis eram a causa da inflação de alimentos.

Dois meses depois de lançado seu livro, The Spectator publicava reportagem na qual, citando o Banco Mundial, desmentia as duas afirmações. E uma das principais omissões de sua obra se refere ao fato de que o catastrofismo em torno do aquecimento global foi produzido pela imprensa, não pelos cientistas.

Evitar o debate

Certamente há muito material para debates nas milhares de páginas que fundamentam o relatório do IPCC. Também se pode questionar, igualmente, aspectos pontuais das projeções científicas ali contidas, como o potencial exato de elevação do nível dos mares nos próximos 50 anos, mesmo porque quase tudo naqueles estudos é construído sobre modelos matemáticos que consideram variáveis muito dinâmicas.

Mas a afobação com que certos articulistas ‘idiossincráticos’ adotam qualquer afirmação que contradiga o documento revela o vício de origem de seus pensamentos: para muitos desses escrevinhadores, o movimento ambientalista se transformou no último refúgio dos antigos marxistas. Portanto, tudo que vier do movimento ambientalista, e suas vertentes direcionadas à questão da responsabilidade social das empresas, deve ser condenado como mais uma utopia esquerdista.

Quem conhece a militância ambientalista na origem e sua vertente contemporânea, o movimento pela sustentabilidade, sabe que suas raízes estão fincadas em empresas bem situadas no mercado global, cujos gestores e acionistas percebem a importância de agregar novos indicadores às suas métricas de resultados. Ao contrário do que afirmam os ‘idiossincráticos’, a esquerda tradicional sempre se opôs ao movimento ambientalista. No Brasil, seminários promovidos nos últimos anos pelo portal Gestão Sindical demonstram que os líderes das centrais sindicais, muitos deles egressos do Partido Comunista, vinculados ao PT e à militância trabalhista, sempre se opuseram a misturar a questão ambiental às suas pautas de negociações.

O vício de atacar todas as virtudes que cercam a busca de bons resultados sociais e ambientais paralelamente aos lucros nos empreendimentos nasce provavelmente do desconforto que produz no pensamento conservador a evidência de que a globalização gera oportunidades, mas também traz uma nova noção de risco. Ou as evidências de que o capitalismo não tem sido capaz de produzir sociedades mais justas. A hipótese de que novos paradigmas econômicos venham a impor mudanças na visão de mundo bipartite deve assustar certos intelectos condicionados a enxergar o mundo em preto-e-branco.

Eles não querem mudanças. Eles lutam para evitar que o debate se torne mais complexo. Afinal, é das simplificações que fazem seus palanques. Essa é a plataforma que precisam defender para garantir suas boquinhas na imprensa.

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Jornalista