Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Valor Econômico

MEMÓRIA / GETULIO BITTENCOURT
Amir Labaki

No tempo das rotativas

‘Getúlio Bittencourt, o mestre do jornalismo que aos 57 anos morreu no fim de semana passado, teria adorado ‘Intrigas de Estado’. O filme de Kevin Macdonald, já em cartaz, é uma elegia ao velho e bom jornalismo, dependente de papel e preocupado com ética, aquele de contatos pessoais, horários de fechamento, cumplicidade entre colegas e respeito intelectual ao leitor. Getúlio se foi antes de isso tudo acabar. Ao que tudo indica, por pouco.

Como o Cal McAffrey de Russell Crowe, Getúlio era um repórter à moda antiga. O ofício de jornalista representou para ele uma espécie de sacerdócio cívico e pagão. Nenhuma pauta era menor, nenhum texto deveria ser improvisado, toda fonte confiável era preciosa.

Sua memória prodigiosa ajudou-o a vencer um Prêmio Esso, o Oscar do jornalismo nacional. Em 1978, trabalhando para a ‘Folha’, ele e Haroldo Cerqueira Lima furaram todo mundo, ainda em plena ditadura, para ouvir pioneiramente o general escolhido para suceder a Ernesto Geisel. Pela primeira vez, atendia à imprensa aquele que se tornaria o último general-presidente do regime militar iniciado em 1964, João Batista Figueiredo.

A oportunidade se apresentou com a condição de o encontro no Palácio do Planalto não ser ‘anotado ou gravado’. Encerrada a reunião, Getúlio sentou-se à máquina de escrever e transcreveu a conversa de 95 minutos com o ainda então ministro-chefe do temido SNI. Ele escrevia, Haroldo lia e checava cada lauda.

Resultado: quatro páginas de entrevista em pingue-pongue, divididas em duas edições consecutivas (5 e 6 de abril de 1978), com manchetes: ‘Exclusivo: fala Figueiredo’ e ‘Privatizar é tarefa difícil’. Anos depois, Getúlio modestamente confirmaria: ‘Realmente reproduzi a conversa de cabeça’.

Completou o cinéfilo: ‘Desde menino, treino muito a memória. Já cheguei a decorar a filmografia inteira do diretor John Ford, com mais de cem títulos. Sabia o nome dos atores, dos roteiristas e dos músicos de cada produção’. A história completa da sucessão de Geisel por Figueiredo, incluindo a clássica entrevista, encontra-se no primeiro livro de Getúlio, ‘A Quinta Estrela – Como se Tenta Fazer um Presidente’ (Ciências Humanas, 1978), infelizmente esgotado.

‘Intrigas de Estado’ é também um thriller sobre a recente expansão do poder corporativo por áreas antes preservadas, como a da segurança nacional (a PointCorp do filme é obviamente uma espécie de Halliburton). Getúlio acompanhou parte desse processo como correspondente da ‘Gazeta Mercantil’ em Nova York por mais de dez anos, de Collor a FHC, de Bush pai a Bush filho. Essa experiência catalisou ‘Chairman – O Novo Brasil e as Multinacionais’ (Record, 1998), um pioneiro retrato do positivo reposicionamento global do país depois da era da inflação.

O primeiro texto do livro intitula-se prescientemente ‘O Jornal Eletrônico e o Jornal do Futuro’. Getúlio conversa sobre o destino da imprensa com ninguém menos que Michael Bloomberg, o então CEO da Bloomberg Business News que se tornaria em 2001 o todo-poderoso prefeito de Nova York. A crise dos jornais, que diferencia a versão fílmica de ‘Intrigas de Estado’ da telessérie original da BBC, já estava lá exposta em sua essência.

Entre o fim da ditadura e a temporada nova-iorquina, Getúlio aventurou-se, entre 1986 e 1988, como secretário de Comunicação e bruxo conselheiro do presidente José Sarney. Sua colaboração para modernizar e democratizar a comunicação do governo federal depois de 21 anos de ditadura ficou registrada num livro inédito que clama por publicação.

Já sua heterodoxa experiência combinando política e astrologia está bem explicada em ‘À Luz do Céu Profundo’ (Nova Era, 1998). O horário da reunião do Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves para presidente em 15 de janeiro de 1985 foi alterado em razão de uma previsão funesta de Getúlio soprada ao ouvido do candidato por um amigo comum. A paixão por mapas astrais – chegou a reunir mais de 14 mil em seu computador – rendeu ainda uma única experiência ficcional, ‘O Sétimo Céu – Um Romance Antropológico’, publicado em 1999.

No começo dos anos 2000, Getúlio voltou ao Brasil. Não tardou a desligar-se da já endividada ‘Gazeta Mercantil’. Repórter e jornal morreram na mesma semana. Como teria escrito outro de nossos homens em Nova York que cedo demais partiu, ‘that’s all, folks’. As nostálgicas imagens dos créditos de ‘Intrigas de Estado’ ainda tentam resistir – mas é mesmo o fim de uma era.

Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.’

 

PERFIL / BOB WOODWARD
O homem de todos os presidentes

Edward Luce

‘Do Financial Times – Bob Woodward caminha pensativo em direção à mesa impecavelmente arrumada ao lado da janela com vista para a Casa Branca. Com uma gravata vermelha sóbria e um terno escuro imaculado, o lendário jornalista que expôs o caso Watergate apresenta um ar levemente carrancudo. Ele já comeu incontáveis vezes no histórico Hay-Adams Hotel desde que veio aqui pela primeira vez, em 1971. Mas, até agora, ele sempre foi o entrevistador, não o entrevistado.

OK, eu inventei uma parte dessa história. Mas é muito difícil resistir à vontade de escrever ao estilo onisciente que virou uma marca registrada de Woodward. Apesar de seu jeito educado e da voz gentil, o jornalista de 66 anos do ‘Washington Post’ e autor de best-sellers é um homem que provoca reações extremas – e contraditórias. O renomado âncora da CBS Bob Schieffer já o chamou de ‘o melhor repórter de nossa época – talvez o melhor de todos os tempos’. Mas Arianna Huffington, do ‘Huffington Post’, descreve Woodward como ‘o loiro idiota do jornalismo americano’.

Ben Bradlee, editor do ‘Post’ no começo dos anos de 1970, quando Woodward e Carl Bernstein expuseram de maneira dramática o envolvimento de Richard Nixon (1913-1994), e posterior acobertamento, em uma invasão ao escritório do Partido Democrata no complexo de Watergate, diz que Woodward é ‘o melhor repórter que eu já vi’. Mas para o jornalista e escritor britânico Christopher Hitchens, Woodward simboliza ‘a efemeridade e superficialidade essencial do jornalismo praticado em Washington’.

Com sua decoração à base de veludo e acolchoados, e garçons impecavelmente engomados, o Hay-Adams parece ser o lugar apropriado para encontrar o homem que já foi o flagelo do establishment e hoje é um de seus membros mais celebrados. Pedimos sopa de tomate e basílico. ‘O que quer comigo?’, pergunta. ‘Estamos no mesmo negócio, pode ser direto.’

Com um novo governo instalado na Casa Branca – sobre o qual Woodward já está planejando escrever seu próximo livro – e um cenário de crise nos jornais, sinto ser um bom momento para tirar as impressões do veterano jornalista sobre a situação do mundo. Pergunto a Woodward se ele acha que sua profissão está morrendo. Sua resposta, dada naquele estilo do Meio-Oeste americano que instantaneamente transporta você para as pradarias e o faz querer confiar no locutor, é uma defesa impetuosa do jornalismo impresso.

‘Sempre seremos um bando de irmãos – ou um bando de irmãos e irmãs – que tenta apurar e publicar o que acreditamos ser a verdade’, responde ele entre colheradas de sopa. ‘A cultura americana exige isso. Acho que há uma câmara secreta no coração de cada americano que diz que precisamos da primeira emenda [da Constituição], que precisamos de transparência, mesmo que isso doa.’

Neste ponto, meu gravador para de funcionar. Woodward, no entanto, está equipado e puxa um aparelho elegante de seu paletó. Deveria ter imaginado. Como foi a revelação da existência das fitas de Nixon que acabaram justificando as reportagens de Woodward sobre Watergate, esses gravadores devem ter uma qualidade extra de talismã para ele. ‘Sempre levo um gravador digital comigo’, afirma. ‘Vou pedir para minha assistente enviar o arquivo de áudio para você por e-mail.’

Woodward é crítico em relação à maneira como o jornalismo evolui: é duro com o que chama de cultura atual do jornalismo do ‘me dá agora, me dá ao vivo’. Sente que há opinião sem substância por aí na blogosfera, quando o que é preciso é mais reportagem. ‘A informação é poderosa, as pessoas recolhem informações, as filtram, confirmam e publicam, e você não pode sufocar isso.’

Mais uma vez, Woodward enfia a mão num dos bolsos de seu elegante paletó, desta vez para tirar um recorte de um dos jornais do dia. Um colunista de direita o acusou, ao lado de outras pessoas, de ‘amnésia liberal’ em relação ao 11 de Setembro. Mas, segundo Woodward, suas palavras foram distorcidas. ‘Este é um caso clássico do que as pessoas no governo vêem – alguém colocando alguma coisa fora do contexto, usando-a para seus propósitos’, diz ele. ‘O que eles vêem é essa corrupção; não é tanto uma corrupção ideológica, é mais uma incapacidade de prestar atenção.’

Por outro lado, os que critiam Woodward o acusam de ouvir muito pouco. Hitchens, por exemplo, descreve-o como um estenógrafo glorificado cujo principal objetivo é manter o acesso às pessoas que estão no poder.

Nosso prato principal chega: Woodward vai de scallopini de vitela sautéed com espinafre tenro, batatas e cogumelos; eu vou de carne de caranguejo de Maryland com purê de batata. Enquanto começamos a comer, faço uma pergunta sobre ‘Maestro’ (2000), o livro de Woodward sobre Alan Greenspan, que alimentou o culto de gênio que cerca o ex-presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central americano. Vendo em restrospecto, ele teria mudado o título do livro? ‘Esta é uma pergunta pertinente e importante’, diz ele. ‘Maestro’ foi lançado em 2000, durante o boom…’

Mas – interrompo – depois da bolha da internet. ‘Depois da bolha da internet, mas antes da bolha imobiliária. É como você cobrir um time de baseball que ganha 60% de seus jogos na primeira metade do campeonato e você escreve sobre o que aconteceu’, continua Woodward. ‘Você não tem como escrever sobre o que vai ocorrer em seguida: eles podem acabar perdendo 80% de seus jogos. Fui pego nessas críticas com os livros sobre Bush. Você está pegando momentos específicos.’

Woodward escreveu quatro livros sobre George W. Bush enquanto ele esteve no cargo – um recorde entre todos os que já escreveram livros sobre um presidente em exercício. Os três primeiros, que tratam da resposta de Bush aos atentados terroristas do 11 de Setembro e seus planos de invadir o Iraque, foram criticados por serem dirigidos demais pelas próprias versões do presidente para os acontecimentos, ou pelo menos as versões fornecidas por aqueles que concordaram em falar com Woodward (o próprio Bush concedeu 11 de entrevistas).

Perto do fim de ‘The War Within’ (2008), seu livro mais recente sobre Bush, que comercialmente não está se saindo tão bem quanto os outros três, Woodward tira as luvas e acusa o ex-presidente americano de uma falha de liderança. Mas os críticos afirmam que isso é uma prova de que Woodward dispõe-se a atacar somente quando a manutenção do acesso não é mais interessante. ‘Bem, eles [os livros] refletem o que aconteceu’, diz Woodward calmamente. ‘Nas eleições de 2004 entre Bush e John Kerry, até mesmo Kerry disse que Bush fez um bom trabalho depois do 11 de Setembro.’

Ele se preocupa em ter o acesso ameaçado? Não é justamente pelo acesso que todo mundo em Washington – não-jornalistas incluídos – é obcecado? Faço um prefácio da minha pergunta com um pedido de desculpas por perguntar. ‘Nunca peça desculpas por fazer uma pergunta’, diz Woodward com ar grave. ‘É por isso que escrevo livros mais longos. Faço-os em parte porque há a questão do acesso. Você sabe que o medo de perder o acesso torna difícil escrever, e é por isso que tento me aprofundar nas histórias.’

Um garçom pergunta se vamos querer sobremesa. Nenhum de nós sucumbe às trufas de chocolate e aos crèmes brûlées oferecidos. E Woodward tem uma reunião no começo da tarde com um funcionário do governo Obama (cujo nome ele não revela). Portanto, vamos direto para o cafezinho. O almoço estendeu-se por bem mais de uma hora, mas ainda não fiz muitas das perguntas que gostaria de ter feito e pergunto se posso ‘disparar’ mais algumas: ‘Manda bala’, diz Woodward afavelmente.

Como ele passou sua carreira mergulhado na política, há alguma que ele pratica?, pergunto. Woodward diz que não só não tem nenhuma política – ‘Você sabe, ao longo de 40 anos, você tem muitas esperanças frustradas’ -, como nem mesmo vota. A última vez que ele votou foi em Richard Nixon, em 1968.

Woodward foi patrocinado pela Marinha dos EUA em Yale (onde cursou literatura e história) e completou cinco anos no serviço militar antes de virar jornalista, passo que ele também vê claramente como chamado patriótico. Ele se refere a Watergate e às famosas fitas gravadas com um vocabulário que não lhe é peculiar: ‘Eu me levanto de manhã e penso, ‘o que esses sacanas estão escondendo?’ Para ser sincero com você, não é o antagonismo que conta. É ser cético. Em minha última conversa com Bush, no ano passado, eu disse a ele: ‘Passei toda a minha vida tentando preservar minha condição de observador externo’…Você precisa ficar do lado de fora…Tive que lembrar a ele que eu preservo, e luto para preservar, minha condição de observador de fora; e algumas pessoas dizem que sou um ‘insider’, o que dá vontade de rir’.

Então ele é motivado por uma desconfiança em relação às pessoas que estão no poder? ‘A democracia morre na escuridão’, responde Woodward. ‘A coisa com que temos realmente de nos preocupar é com o governo secreto – o acúmulo constante de poder. É, na verdade, uma noção conservadora afirmar que o acúmulo de poder não é uma coisa boa… Há todo um aparato criado nas instituições governamentais para impedir as pessoas de descobrirem o que realmente está acontecendo.’

Quase terminamos o café, e eu pergunto quem é seu presidente favorito. Sua resposta, Gerald Ford (1913-2006), pega-me de surpresa. Foi Ford quem perdoou Nixon.

‘Ford convenceu-me que para ter sua própria Presidência, tinha de conceder o perdão presidencial para sair das primeiras páginas dos jornais e, se houvesse novas investigações, indiciamentos, julgamentos, prisões, isso poderia levar dois ou três anos.’ Um pouco como Obama e os torturadores, digo de imediato, dada a relutância frequentemente expressa pelo novo presidente em levar a juízo aqueles dentro da administração Bush-Cheney que prepararam o terreno legal para a tortura. ‘Obama deveria relaxar em relação a isso’, responde.

Não consigo resistir e pergunto como foi para ele ser representado por Robert Redford em ‘Todos os Homens do Presidente’: ‘Você não tem ideia do número de mulheres que ficaram desapontadas comigo’, diz. Ele se dá bem com Bernstein? Woodward nega que tenha tido com ele uma relação ao estilo Lennon/McCartney.

Seus editores pagam muito adiantamento pelos seus livros? ‘Bastante – é preciso ter sempre humildade em relação a isso. Nada dura para sempre’, diz Woodward. ‘Você sabe, como disse Bush, ele tinha um dever para com as pessoas livres;acho que tenho o dever de continuar grudando nelas para descobrir o que aconteceu.’

(Tradução de Mario Zamarian)’

 

MÍDIA & LITERATURA
Maria da Paz Trefaut

A comunhão das palavras

‘Acompanhada por dez alunos, a professora de ciências Maria Angélica atravessa a praça principal de São Francisco Xavier e diminui o passo pouco antes de se aproximar de Luis Fernando Verissimo. Tira sete livros de uma sacola e observa o escritor a distância. ‘Aprendi a gostar de leitura por causa do Verissimo’, começa a comentar em voz alta para seus alunos. ‘Eu tinha 11 anos quando ganhei o primeiro livro do meu avô. É este aqui, o ‘Analista de Bagé’; olha como está velhinho, esgarçado, mas é porque eu leio mesmo. Volta e meia leio de novo… [ri] até para ver se alguma coisa mudou.’

Um grupo de pessoas vai se formando ao lado da professora e do escritor. Ela fala dos livros, diz qual é ‘mais político’ e quando estende a primeira obra para Verissimo avisa que está muito emocionada e, provavelmente, nem vai ‘conjugar o verbo direito’. Enquanto ouve a história de Maria Angélica, o escritor é fotografado e abordado por dezenas de pessoas. Com o assédio, demora mais de uma hora para ir do centro da praça à tenda, que fica alguns metros adiante, onde vai integrar uma mesa de debates, no evento mais concorrido do II Festival da Mantiqueira – Diálogos com a Literatura.

O festival, realizado no último fim de semana de maio em São Francisco Xavier, a 138 quilômetros de São Paulo, levou mais de mil pessoas à pequena localidade serrana, de cerca de três mil habitantes, um subdistrito de São José dos Campos. Criado pelo secretário estadual de Cultura, João Sayad, e sua equipe, o Festival da Mantiqueira foi inspirado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

‘Não havia nenhum festival no Estado. Nós precisávamos criar alguma coisa que tivesse um compromisso educativo e trouxesse a possibilidade de um convívio entre os escritores e o público’, diz Sayad. ‘Mas somos pequenos e queremos permanecer assim. Apesar da invasão, levaremos de volta tudo o que trouxemos: não deixaremos nem um papel na grama’, afirma.

Do ponto de vista de quem vai, esse tipo de evento vale a pena porque ‘promove um esquenta na cidade’ e traz uma movimentação diferente do habitual ecoturismo. ‘Já fui à Flip e estive aqui na primeira edição do festival, quando conheci o Arnaldo Antunes. Para a gente é curioso ver aquela pessoa famosa de perto e ter esse tipo de interatividade: ouvir falar, pedir autógrafo’, diz Daiane Costa, de 20 anos, que vive em São José dos Campos.

Com o intuito de facilitar essa aproximação, feiras ou festivais literários de diferentes formatos têm proliferado pelo país. A mais famosa, a Flip, chega em julho à sétima edição e leva cada vez mais gente a Parati. Neste ano, a procura por ingressos cresceu 60% em comparação às edições anteriores. Assim que as vendas foram iniciadas, os ingressos para a Tenda dos Autores se esgotaram em poucas horas. Restou à maioria contentar-se com a Tenda do Telão. ‘Tivemos dificuldade para comprar ingressos até para nossos funcionários’, afirma Luiz Schwarcz, editor e fundador da Companhia das Letras.

Para ele, que sempre tem autores entre os convidados da Flip, a festa, além de alegrar a cidade, tem o mérito de promover o encontro entre duas atividades solitárias: a da escrita e a da leitura. ‘Acho muito bacana, pois é o momento em que se quebra um pouco essas duas solidões. Claro que esse encontro pode ser mágico ou desastroso, mas tende a ser positivo.’ Muitas vezes essas feiras ‘não são grandes momentos de vendas, são mais eventos de complemento à leitura’, acrescenta. Ou, como bem dizem alguns, ‘uma espécie de Disneylândia de adultos’.

Participante assíduo, o escritor paulista Ignácio de Loyola Brandão vem se tornando um recordista de eventos literários. ‘Não é megalomania, mas vou listar para você só alguns encontros nos quais estive nos últimos tempos’, comenta. E começa a citar: Salão do Livro do Piauí, Bienal Internacional de Fortaleza (CE), Festa Literária de Pirenópolis (GO), Jornada de Passo Fundo, Feira de Porto Alegre (RS), Salão do Livro de Foz do Iguaçu (PR). ‘No ano passado fiz uma viagem literária por 55 cidades do Estado de São Paulo e fui para Ibitinga, a capital do bordado, onde nunca havia estado um escritor.’

Na volta do Festival da Mantiqueira, Loyola passou alguns dias em São Paulo e, rapidamente, seguiu para a Bienal da Floresta, que é promovida pela primeira vez neste ano, em Rio Branco, no Acre. ‘Esse é um trabalho de formiga que a minha geração iniciou contrariando os cânones da Academia Paulista. Muita gente ali acha que escrever é sentar na cadeira: o resto é exibicionismo.’

Enquanto for possível, Loyola pretende continuar percorrendo o país e formando leitores. ‘Você dessacraliza a literatura, deixa de ser o autor no altar, inacessível. Pessoas analfabetas já me disseram algumas das coisas mais interessantes que ouvi. Meu melhor cachê foi uma garrafa de mel tampada com um sabugo de milho, que ganhei de uma mulher que queria saber como se dava o processo da escrita’, conta.

Novata nesse tipo de evento, Beatriz Bracher esteve na Mantiqueira e também vai à Flip. Escritora tardia, conta que ficou impressionada com as perguntas pertinentes do público no primeiro encontro literário do qual participou, na Unicamp, sobre seu livro ‘Antônio’, lançado em 2007. ‘No fim, uma moça veio falar comigo e disse que meu livro tinha despertado nela o desejo de ser mãe. Quase chorei, porque o livro é tão triste e ainda assim ela sentiu essa vontade. Foi tocante: achei que eu tinha feito uma coisa boa no mundo.’

Estar com o público e ser lida é algo que deu a Beatriz a curiosa sensação de ter virado escritora de uma hora para outra. ‘Você não escreve para ganhar um campeonato, você faria aquilo de qualquer maneira. Mas ao ser lido é como se aquilo que você fez virasse arte.’

Ganhador dos mais importantes prêmios literários do ano passado com ‘O Filho Eterno’, o catarinense Cristóvão Tezza, de 57 anos, acredita que esses encontros, embora interessantes, têm um retorno inexistente para a escrita. ‘O leitor sou eu e escrevo o livro que gostaria de ler’, afirma.

Em ‘O Filho Eterno’, ao relatar de forma quase autobiográfica a sua relação com o filho portador de síndrome de Down, Tezza tomou o cuidado de não fazer uma confissão e de fugir do formato autoajuda: ‘Sempre achei que o leitor não tinha nada a ver com meus problemas pessoais, embora eu soubesse que esse era um tema de apelo muito forte’, explica.

Na complexa relação com os leitores, a escrita também pode ser usada em outras mídias – independentemente do livro – e ser mais uma maneira de conversar. Principalmente quando a timidez dificulta o diálogo, lembra Tatiana Salem Levy, que faz grande esforço para falar em público. ‘Os leitores costumam me achar na internet, por e-mail ou via Facebook. Recebo muitos e-mails e procuro responder a todos. Sou muito tímida para o palco e não gosto de falar sobre o que escrevo: é algo muito íntimo’, revela. ‘Mas, como não dá para fugir desse tipo de encontro, vou e, aos poucos, estou melhorando.’

O relógio está próximo das 13 horas quando Miguel Sousa Tavares, o único escritor estrangeiro presente ao Festival da Mantiqueira, anuncia que quer, urgentemente, uma caipirinha de vodca. De limão galego, de preferência. Apesar do sotaque luso, ele fala do Brasil, de seus escritores e festivais literários quase como se fosse um brasileiro. Só na Flip já esteve duas vezes. Sentado numa mesa de calçada, num boteco em São Francisco Xavier, com uma porção de pasteis de carne seca diante dele, começa a contar detalhes de seu terceiro livro, ‘No Teu Deserto’, que deve ser lançado em Portugal daqui a algumas semanas. No Brasil, tem dois best-sellers: ‘Equador’ e ‘Rio das Flores’.

‘O público é uma abstração até o momento em que você vai ao encontro dele, coisa que não faço muito. Gosto de participar desses eventos literários especialmente no Brasil, onde o público tem vontade de partilhar com você muito mais do que está no livro’, diz, com certa euforia. Pouco depois, alguém na mesa pergunta a ele se o principal personagem de ‘Equador’ é verídico. ‘Não, nunca existiu’, responde.

Se as vendas do terceiro livro forem como espera, Tavares pretende morar um ano no Rio, cidade que para ele é o primeiro destino no Brasil: ‘Gosto também de andar incógnito e, em Portugal, todo o mundo sabe quem eu sou’. Mais conhecido como jornalista de televisão do que como romancista, afirma que é um tipo de escritor que escreve para as pessoas e não para si. ‘Às vezes até escrevo para mim, mas vai para a gaveta. Sou um contador de histórias e minhas ideias já surgem baseadas naquilo que pode agradar ao leitor. Acho uma atitude de extrema arrogância intelectual esses escritores que dizem não se preocupar com o leitor e que escrevem para eles mesmos.’

Antes de ensaiar as primeiras linhas de ‘Rio das Flores’, que se passa no Brasil, Tavares percorreu várias regiões do país. ‘Para escrever eu preciso pisar o solo, olhar a cara das pessoas, saber o gosto da comida, sentir os cheiros’, ressalta. E conta que uma vez, falando sobre essa necessidade com Chico Buarque, disse a ele: ‘Ouve lá, Chico, não entendo como tu conseguistes escrever um livro que se passa em Budapeste sem nunca teres estado lá’. Ao que Chico respondeu: ‘E você, por acaso, esteve no século XIX para escrever ‘Equador’?’

A jornalista viajou a convite dos organizadores do evento’

 

Tim Richardson

Ladrões Ilustrados

‘Do Financial Times – De tempos em tempos, o exemplo espetacular de um roubo de livro chega às manchetes. Esse tipo de crime nada tem a ver com estudantes cujos orçamentos apertados os levam a surripiar obras didáticas em livrarias. Não, as notícias espetaculares relatam os detalhes de roubos premeditados, frequentemente audaciosos, de livros belos e raros.

Em janeiro, Farhad Hakimzadeh, negociante e colecionador de livros iraniano, foi sentenciado a dois anos de prisão por cortar e roubar páginas de livros de um antiquário nas bibliotecas Britânica e Bodleian ao longo de sete anos. Hakimzadeh, 60 anos, disse ter removido as páginas – de textos que datam do século XVI e abordam as relações entre a Europa e o Oriente Médio – unicamente para ampliar a própria coleção. Foi provado, no entanto, que ele estava usando as páginas roubadas para incrementar o valor de livros que já possuía, que então podia vender. Uma dessas páginas continha um mapa de 500 anos pintado por Hans Holbein, um artista na corte de Henrique VIII, avaliado em 32 mil libras esterlinas.

Em agosto de 2000, Stanislas Gosse, um ex-oficial da Marinha e professor de engenharia de 30 anos de idade, começou secretamente a saquear a biblioteca do antigo mosteiro de Mont Sainte-Odile, nas montanhas de Vosges, no leste da França.

Gosse conseguiu uma chave e começou, à noite, a apoderar-se de volumes da biblioteca, que contém milhares de livros preciosos com iluminuras. Ele levava de bicicleta para sua casa os tomos mais pesados. Mais tarde, passou a utilizar uma esquecida passagem secreta para ter acesso à biblioteca.

Quando Gosse foi apanhado com mão na massa, em maio de 2002, ele estava tentando levar três maletas contendo 300 livros – e então admitiu tudo. A polícia vasculhou seu apartamento e encontrou 1.100 livros e manuscritos históricos e religiosos meticulosamente organizados, catalogados e, em alguns casos, restaurados. Nada tinha sido vendido.

Alguns anos depois, como único outro usuário presente à Biblioteca Lindley, na Sociedade Real de Horticultura, em Westminster, tive o dúbio privilégio de testemunhar a prisão de outro ladrão de livros, William Jacques, também chamado Santoro ou David Fletcher. Posteriormente descrito na imprensa como ‘mestre do disfarce’, a figura que vi me pareceu um sujeito comum num anoraque azul barato – que é, possivelmente, o visual mais eficaz para um ladrão de livros. No decorrer de cinco anos ele havia roubado livros no valor de 1,1 milhão de libras da Biblioteca de Londres, da Biblioteca da Universidade de Cambridge e da Biblioteca Britânica, entre os quais obras de Galileu e Newton. Apenas um dos livros, um volume original de 1798 – ‘An Essay on the Principle of Population’, de Malthus -, valia 40 mil libras.

O advogado de defesa de Hakimzadeh revelou que ele passou sua noite de núpcias polindo seus adorados livros, ao passo que Gosse ofereceu o próprio amor aos livros para mitigar seu crime. ‘Senti que os livros estavam abandonados’, disse. Gosse recebeu uma sentença suspensa, uma multa de 17 mil libras e recebeu permissão para retornar à sua função no magistério.

Para bibliotecas, nada há de romântico na mutilação ou roubo de livros preciosos, e frequentemente inestimáveis. Historicamente, as instituições tendem a manter silêncio sobre o problema, ostensivamente por recear atrair outros ladrões, mas também, muito possivelmente, por puro embaraço. Mais recentemente, porém, têm surgido sinais de que as instituições começaram a enfrentar publicamente a realidade do roubo generalizado de livros.

Para bibliotecas, o fato incômodo é que esses roubos podem ser extremamente difíceis de notar. O sargento detetive Vernon Rapley, um policial com 23 anos de experiência, está há oito anos no comando da Unidade de Arte e Antiguidades da Polícia Metropolitana de Londres.

Rapley e sua equipe de mais três policiais em tempo integral recuperam anualmente, em média, o equivalente a 7 milhões de libras em objetos de arte e antiguidades roubadas e ‘lavadas’ (inclusive livros). Itens saqueados do Iraque foram uma prioridade recente. Rapley também fundou o grupo de segurança do Museu de Londres (inclusive bibliotecas), que se reúne regularmente, complementando iniciativas como o e-mail de alerta da Associação de Livreiros Antiquários, que denuncia o roubo de livros.

‘O roubo de livros é muito difícil de quantificar porque frequentemente páginas são cortadas e isso não é percebido durante anos’, diz Rapley. ‘Frequentemente, deparamos com páginas de livros [em lotes de propriedade recuperada] e rastreamos de volta a partir dali.’ A Rede de Segurança de Museus, organização sem fins lucrativos com sede na Holanda, dedicada a esforços de coordenação visando combater esse tipo de roubo, estima que apenas 2% a 5% de livros roubados são recuperados, em comparação com cerca de metade das pinturas roubadas.

Ladrões sabem que páginas cortadas de livros para ser vendidas como gravuras são mais fáceis de roubar e até mesmo mais difíceis de rastrear, de modo que são frequentemente ainda mais desejáveis do que os próprios livros. A maioria dos ladrões simplesmente corta páginas com estiletes e as escondem no próprio corpo. Prateleiras altas, áreas de armazenamento ou lavatórios anexos a salões de leitura são lugares óbvios para a prática desses roubos.

Segundo profissionais de segurança experientes, como Robert Wittman, que já foi da equipe do FBI de combate a crimes contra o acervo artístico nacional e é hoje consultor privado, ‘[bibliotecas] deveriam ser cuidadosas em suas salas de livros raros – deveriam usar formulários a ser assinados por frequentadores, cobrar a apresentação de carteiras de identidade e até empregar detectores de metais. Smiley [E. Forbes Smiley III, um dos mais notórios ladrões de mapas nos últimos anos] só foi apanhado quando deixou cair uma faca de metal no piso da Biblioteca de Yale.’

A maioria do pessoal que trabalha em bibliotecas nunca sonharia em apropriar-se de itens sob seus cuidados, mas evidências sugerem que a maioria dos roubos é cometida por funcionários da própria instituição ou informantes bem situados. Ton Cremers, ex-diretor de segurança do Rijksmuseum e fundador da Rede de Segurança de Museus, foi uma das primeiras pessoas a falar publicamente sobre essa questão. Ele acredita que ‘serviços com apoio interno’ respondem por mais de 70% de todos os roubos em bibliotecas na Europa e 80% nos Estados Unidos.

Em 2003, Cremers foi chamado ao Museu do Exército, em Delft, na Holanda, onde se descobrira que haviam sido cortadas 47 das 67 ilustrações de um livro raro sobre Napoleão. Acabou-se verificando que, durante pelo menos sete anos, Alexander Polman, um jovem curador, vinha roubando centenas de livros e milhares de estampas do museu e as vendia a um comerciante em Leiden. Com acesso ao sistema de catalogação e autoridade para alterá-lo, ele pôde cobrir seus rastros. Polman cumpriu pena de prisão durante um ano e meio.

Num caso mais recente de ‘serviço com apoio interno’, em fevereiro, David Slade, respeitado marchand de Bristol e ex-presidente da Associação de Livreiros Antiquários, foi preso por 28 meses pelo roubo de 68 livros no valor de 230 mil libras, de propriedade de sir Evelyn de Rothschild, que o havia contratado em 2001 para catalogar parte da coleção da família.

Cremers acredita que as bibliotecas demoraram para aceitar a possibilidade de que seu pessoal pudesse ser culpado. ‘Eles dizem que não podem trabalhar se não puderem confiar em seu pessoal. Mas a melhor maneira de confiar é ter um sistema de segurança em funcionamento.’ Ele cita a Biblioteca do Congresso, em Washington, onde todos os funcionários, inclusive diretores, são revistados sempre que deixam o edifício. Isso pode ter a ver, contudo, com o fato de em 1992 a biblioteca ter fechado o acesso público ao se descobrir que perto de 30 mil volumes haviam desaparecido. (Tradução de Sergio Blum)’

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