Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Veja e a poesia de Tarso Genro

A revista Veja parece ter o propósito de irritar seus leitores, especialmente seus milhares de assinantes, graças aos quais sai paga das gráficas da Editora Abril. Deixou de ser a publicação respeitável que, surgida na ditadura militar, teve capas gloriosas, indicadoras de matérias imperdíveis.

Mas, se continuar com a linha editorial adotada há alguns anos, corre o risco de transformar o honroso passado em vergonhoso prontuário. O que a revista Veja vende? Informações, naturalmente, acrescidas de análises e interpretações pertinentes. Tem grande vantagem sobre os jornais diários: sendo semanal, tem tempo para reportagens sem o tormento da pressa, que é séria ameaça à qualidade de qualquer trabalho que demande pesquisa.

O que tem feito Veja? Eis um caso emblemático. Mesmo críticos severos do governo Lula não podem aceitar o desrespeito com que o presidente foi tratado na célebre capa em sua foto aparece com a marca de um pé no traseiro, dando imagem a uma tradicional locução da língua portuguesa conhecida como ‘pé na bunda’, assim definida pelo dicionário Houaiss: ‘Pé na bunda: demissão ou rejeição, geralmente inesperada’. Vale sobretudo para fins litigiosos de namoro ou outros enlaces amorosos e é abonada assim: ‘O patrão deu-lhe um pé na bunda’; ‘levou um tremendo pé na bunda da namorada’.

No caso, não foram as nádegas da amada que levaram o chute, mas os redatores do prestigioso dicionário mantiveram a ambigüidade. Afinal, o que quiseram dizer é que a namorada foi autora e não objeto do pé na bunda.

Recados anônimos

O ex-presidente e atual senador José Sarney teve o mérito de destacar uma expressão muito cara à vida republicana, resumida nas palavras ‘a liturgia do cargo’. Já teve dentes quebrados por microfones, mas jamais reagiu com a mesma deseducação dos descuidados repórteres que quase lhe enfiavam microfones boca adentro.

Liturgia é palavra que veio do grego, língua em que designa a função pública, que é submetida a determinados ritos. Também no relacionamento pessoal temos com os outros um tratamento litúrgico, baseado em ritos que tornam a convivência civilizada. Foi a eles que recorreu o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos a convidar recentemente o senador oposicionista Arthur Virgílio a comer queijo e beber vinho. Discordantes podem conversar, pois presume-se que entre as pessoas de bem vija a ética dos relacionamentos. E ainda quando o advogado conversa com o bandido, não pode com ele ser confundido. Não fosse assim, bandidos sequer poderiam contratar defensores e promotores estariam impedidos de lhes oferecer delação premiada.

Veja tornou proscritas certas regras da crítica. O leitor pode imaginar uma capa da Newsweek ou da Time ostentando um pé na bunda de George W. Bush? Dá para imaginar a Der Spiegel fazendo isso com o mandatário-mor ou agora mandatária-mor da Alemanha, de quem seus editores discordassem?

A revista chegou aos assinantes e às bancas precedida de um aviso anônimo na internet – em mensagem que infestou milhões de contas de e-mail – dando conta de que a edição faria tremer a República. O assinante e o leitor foram enganados, não por essa mensagem apenas, pois acredita em recados anônimos quem quer, mas pelos editores da revista, que prometem uma coisa e fazem outra.

Liturgia da imprensa

A matéria nada traz de novo, além de assuntos requentados, isto é, aquecidos de novo, com outros fins, que não os de informar, analisar ou interpretar. E aos reaquecimentos a revista juntou um deboche a antiqüíssimo livro de poesias do ministro Tarso Genro.

Mas o que houve? Tarso Genro está reivindicando algum lugar no cânone da poesia brasileira? Ou tem aproveitado das influências surgidas com os cargos que vem ocupando nos governos do PT – como prefeito de Porto Alegre e depois como ministro do governo Lula em sucessivas pastas – para impor seus livros de ensaios? Homem digno que é, jamais fez nada disso. Por que seu livro de poesias, publicado há 29 anos, virou tema de Veja esta semana?

Veja não informou, não analisou, não interpretou. Debochou apenas. E no caso de Tarso Genro escarmenta um intelectual probo, que nos arquivos de áudio da mesma revista dá entrevista a Diogo Mainardi e, em conversa clara, responde a todas as perguntas que lhe são feitas.

Está nos arquivos de Veja a prova de que o ministro conhece a liturgia do cargo, mas a revista desconhece a liturgia da imprensa. Ou não deve haver liturgia alguma para a imprensa?

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br