Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Veja seleciona os fatos a revelar

A revista Veja desta semana revela que um doleiro que cumpre pena em Avaré (SP), Toninho da Barcelona, quer falar o que sabe: o PT remeteria dinheiro a paraísos fiscais desde 1989. Em cartas a parentes, o condenado revelaria ligações de modo cifrado. O doleiro é hoje um preso político, conforme seu advogado. A Veja não tem provas da lavagem de dinheiro, somente cartas manuscritas de um apenado. Impossível negar a veracidade das especulações da revista sem nada apurar. Mas a Veja manobra fatos e ignora informações confiáveis.


Um doleiro condenado a 25 anos de cadeia encontra espaço em suas imparciais páginas para sugerir linha de investigação contra o PT. Isso já é complicado. O mais inacreditável é haver um senador tucano, cujo partido na campanha eleitoral de 2002 manteve ligações com um condenado por lavagem de dinheiro em paraíso fiscal, a amparar as acusações. A Veja coloca querosene na fogueira em que já arde o deputado petista José Mentor.


O senador licenciado Antero Paes de Barros, de Mato Grosso, ajuda a construir o texto da Veja. Ele acusa o alvo da revista que, talvez por isso, omite o fato de o senador ter encerrado a CPI do Banestado sem permitir a votação de um relatório final. O relator pode não ser santo. Mas o presidente da CPI do Banestado, a fonte da Veja, foi peça-chave para transformar aquela arena numa coisa redonda a exalar orégano.


Leviana ou espertamente, a reportagem investigativa de Policarpo Júnior afirma que ‘em seu relatório final, Mentor suprimiu todo o capítulo referente ao Banco Rural’. Dessa forma, o amigo do jornalista Jairo Martins sonega a informação de que a CPI do Banestado, simplesmente, não teve relatório final. Nem um que suprimisse um capítulo complicado para o PT, nem qualquer outro que suprimisse eventuais ligações do PSDB e do PFL.


O senador e o comendador


O relatório citado pela Veja não é ‘final’, porque não foi votado pelos integrantes da comissão. Não foi votado porque Antero manobrou para não haver relatório algum. A Veja sabe disso, mas não publicou. Por que construiu uma oração, digamos, sofista?


A Veja mira em José Mentor e no PT. Mas não revela que cheques do PSDB de Mato Grosso foram encontrados nas factorings de João Arcanjo Ribeiro, investigado pela mesmíssima CPI do Banestado. Isso não está cifrado em cartas daquele que é considerado um expoente do crime organizado, mas nos autos de um processo da Justiça Federal de Mato Grosso. São provas documentais, que a Veja não permite que seus leitores vejam. Arcanjo já foi condenado a 37 anos de prisão.


O juiz Julier Sebastião da Silva declarou à imprensa, quando a CPI do Banestado estava em curso, que Antero era o senador do Arcanjo. Tal qual geração espontânea, apareceram em Cuiabá faixas com um ‘Fora Juiz Petista’. A reação tucana soou mais ridícula quando, em 2005, o mesmo magistrado determinou prisões na chamada Operação Curupira – capa da Veja em junho deste ano, inclusive com acusações levianas. Por que foi capa? Porque prendeu petistas.


Merenda e mensalão


Antero foi candidato derrotado à disputa pelo governo de Mato Grosso em 2002. Sua majestosa campanha, com belíssimas imagens aéreas do Araguaia ao Pantanal, custou apenas 400 mil reais. A Veja tem acesso a essa informação, porque é pública, está no site do TSE. Mas em 2003 os cheques tucanos foram descobertos pela Polícia Federal na Operação Arca de Noé. Decerto, não há nenhuma ligação com a campanha de 2002, né, Veja?


As Bahamas ou Cayman mato-grossenses ficam no Uruguai, onde Arcanjo tinha offshores. Ele está preso há mais de um ano. O juiz Julier Sebastião da Silva aguarda sua extradição, que se procrastina de modo estranhíssimo.


Arcanjo também é conhecido como ‘comendador’. Parece apelido. Não é. Trata-se de um título outorgado pelo parlamento cuiabano. Ele tinha estreitas ligações com políticos – como provam os cheques do PSDB. Mas tem mais, muito mais. Também foram descobertos cheques da Assembléia Legislativa de Mato Grosso nas factorings de Arcanjo. Será que havia mensalão lá? Vamos a um breve retrospecto.


Movimentação intensa


Dante de Oliveira (PSDB) foi governador por dois mandatos, entre 1994 e 2002. Em 2000, o ex-governador e então senador Carlos Bezerra (PMDB), em palestra a prefeitos, disse que ouviu de um parlamentar que o governo distribuía ‘merenda’ aos deputados estaduais. O repórter Luiz Acosta estava na platéia. Merenda era o mensalão mato-grossense. A linha de apoio da matéria, publicada pelo Diário de Cuiabá, não deixa dúvidas: ‘Senador do PMDB acusa governo de pagar ‘merenda’ para deputados aprovarem projetos do Executivo’.


O valor, segundo Bezerra, variava entre 30 mil reais e 50 mil reais e seria distribuído diretamente pelo líder do governo, Renê Barbour (PSDB). O então presidente da Assembléia, deputado José Riva (PSDB), classificou as acusações como leviandade e disse que ‘esta prática pode ter havido no governo Bezerra, não no atual’. Bezerra pode não ser santo, coisa que Roberto Jefferson sabidamente não é. Mas sua declaração bombástica não repercutiu muito. Não rolou CPI. Não deu em nada.


O governo Dante de Oliveira sempre teve maioria na Assembléia. E os políticos têm movimentação realmente inacreditável. Por conta da verticalização, Bezerra e Dante foram forçados a fechar aliança em 2002. Foram candidatos derrotados ao Senado; Antero disputou o governo na mesma chapa e perdeu. Venceu a oposição de Blairo Maggi (PPS), numa ampla aliança que incluía até o PFL. Boa parte dos deputados que supostamente eram alimentados com a merenda denunciada por Bezerra foi reeleita.


Golpe na liberdade de imprensa


Curiosamente, o opositor Blairo Maggi também sempre teve ampla maioria na mesma Assembléia Legislativa. O outrora tucano José Riva, por exemplo, migrou para o PTB de Roberto Jefferson após o pleito de 2002 – agora é do PP, e secretário-geral da Assembléia. O então líder do governo Dante de Oliveira, Renê Barbour, reeleito pelo PSDB, também mudou de legenda logo após os tucanos desocuparem o Palácio Paiaguás. Barbour, pasmem, foi escolhido líder do governo Blairo Maggi! Hoje é filiado ao PPS.


No fim do século passado, quando começou a expandir negócios na área de segurança privada, o poderoso João Arcanjo Ribeiro esbarrou nos interesses do empresário Sávio Brandão. Além de proprietário da maior empresa de segurança privada mato-grossense, a Cormat, Savinho, como era conhecido, era dono do jornal Folha do Estado. Daí, por puro interesse jornalístico, a Folha do Estado passou a denunciar atividades de Arcanjo: os caça-níqueis, o jogo do bicho e até um relatório da Abin que comparava o comendador a Al Capone.


Poucos dias antes das eleições de 2002, Sávio Brandão foi assassinado no meio da rua, em plena luz do dia. O ex-policial civil Arcanjo era o suspeito extra-oficial nº 1 de ser o mandante. A pressão da opinião pública nacional apareceu, enfim. Um rico havia morrido numa terra sem lei. E a tal liberdade de imprensa – que não tem qualquer relação com os interesses da Cormat – havia sofrido um golpe. Mas Arcanjo não foi preso por esse crime.


Fuga à luz do dia


Por meio do procurador da República Pedro Taques, o Ministério Público Federal já vinha acumulando dados sobre as factorings do comendador. A Polícia Federal também tinha investigações. Foi pedida a prisão de Arcanjo. A denúncia era de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e outros crimes federais. O juiz Julier Sebastião da Silva acolheu o pedido e aconteceu a tal Operação Arca de Noé. Foi aí que chegaram aos cheques do PSDB e prenderam um bando de criminosos em Mato Grosso, os pistoleiros de Arcanjo.


Quando teve a prisão decretada, o comendador, obviamente, fugiu. Foi procurado por mais de três meses em cerca de 100 países pela Interpol, sendo localizado no elegante bairro de Carrasco, em Montevidéu. Como cometeu crime ao portar documentos falsos no Uruguai, sua extradição vem sofrendo sucessivos retardos. Arcanjo já foi condenado em primeiro grau, mas há mais crimes demandando condenação, principalmente as ligações de Arcanjo com políticos. Aí estão a raiz da corrupção, a compra de deputados e as ligações do governo do PSDB de Mato Grosso com a lavagem de dinheiro.


Mas as coisas vão mal. Mas as coisas vão mal. Em 2004, a Assembléia Legislativa não autorizou que o processo contra os deputados José Riva (PP) e Humberto Bosaipo (PFL), que assinam os cheques encontrados na factoring de Arcanjo, tenham prosseguimento. É a tal da imunidade parlamentar. Entre os criminosos de baixa patente, o ex-cabo Hércules Agostinho, que confessou ter atirado em Sávio Brandão, fugiu e foi recapturado. Já o ex-soldado Célio Alves de Souza, acusado de ser agenciador de pistoleiros de Arcanjo, fugiu no mês passado, num domingo, às 16h, durante o horário de visita.

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Jornalista, ex-repórter da Folha do Estado