Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Voyeurismo e espetáculo comprometem o jornalismo

Flagrado em seu gabinete pela câmera da Rede Globo, em gestos grosseiros enquanto assistia notícias sobre as investigações do acidente com o Airbus da TAM, o assessor especial da presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, além de alvo da grande mídia, na última semana, foi assunto também nos veículos especializados em comunicação. O fato mereceu considerações de toda ordem e justifica, da parte dos profissionais da área – especialmente os jornalistas, uma reflexão sobre a prática profissional.

Os gestos grosseiros de Marco Aurélio Garcia – flagrado pela reportagem da Rede Globo em seu gabinete, junto com um assessor de imprensa, enquanto assistia (supostamente) no telejornal da emissora uma reportagem que poderia desonerar em parte a responsabilidade do governo no desastre com a aeronave da TAM (motivo de sua ‘comemoração’, segundo a matéria) – foram fartamente criticados durante a última semana.

Houve manifestações favoráveis e contrárias ao assessor, ao governo e à TAM. Na prática do jornalismo, entretanto, onde se situa o fato? A matéria contribui para o entendimento das causas do acidente? Deixa a população mais bem informada sobre a questão da crise aérea? Reproduz o ponto de vista do governo sobre essa questão? A reportagem do e-Fórum entrevistou especialistas em ética e política na comunicação sobre o assunto.

A questão é paradoxal, segundo a análise de Maria Helena Weber, autora do livro Comunicação e Espetáculos da Política (Ed. UFRGS), professora do curso de Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ‘De qualquer ângulo que olharmos, haverá uma justificativa. Até para o uso do voyeurismo. Se a imprensa antes fazia a vigilância da democracia, parece que agora ela está ‘espiando’ o governo por qualquer janela’, observa.

A professora destaca a grande incidência do mercado e do espetáculo no jornalismo. ‘Vender a notícia a qualquer preço. E este caso foi um excelente produto de venda (como olhar pelo buraco da fechadura). A espetacularidade fornece indício para que todos os jornalistas, todo mundo, interpretem como quiser’, analisa.

Vazio repleto de significados

A Globo nos diz que o assessor da presidência assistia o Jornal Nacional. ‘Mas ao olhar a imagem, você não vê isso’, lembra Maria Helena, destacando que a dinâmica do espetacular se utiliza de uma coisa que é vazia, mas que promove. ‘Há uma denúncia semiótica, uma série de signos e uma resposta, digamos, do autor desses signos, mas não tem o fato completo: o que eles estavam conversando, o que assistiam, qual era o texto?’, questiona a professora. Ela observa que quando Marco Aurélio Garcia, sujeito da encenação, dá sua explicação sobre o fato, neste momento ele está ratificando que realmente assistia o Jornal Nacional, enquanto ele poderia ter plantado uma dúvida. ‘É uma cena vazia que tem dois gestos. É tão autônoma, que quem lhe deu sentido foi o próprio Marco Aurélio, que caiu na armadilha’, justifica Maria Helena.

O professor Francisco Karam, autor do livro Jornalismo, Ética e Liberdade (Ed. Summus), professor do departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, compreende que o caso do Marco Aurélio Garcia destaca uma tendência política que incide sobre o jornalismo, de maximização dos fatos. ‘Uma espécie de campanha sistemática, que ocorre não só no Brasil, mas também aqui na Argentina [Karam está residindo na Argentina, onde realiza seu pós-doutorado]. É o que chamam de campanha suja, como também chamam na Itália, que é usar todos os fatos negativos e maximizar. É uma campanha de desprestígio do governo’, relata o professor.

O gesto do assessor presidencial, na interpretação de Maria Helena Weber, não representa uma posição do governo brasileiro. A construção da matéria pela emissora tampouco contribui com a investigação sobre as causas do acidente. Também não deixa a população mais informada sobre o comprometimento do governo no caso. ‘Não contribui com nada’, diz Maria Helena, lembrando que o poder da mídia está exatamente na capacidade de sincretizar: hora joga a seu favor, hora joga a favor do governo, hora pode jogar a favor da população. ‘Então fica difícil, exatamente por estas leituras, conseguirmos classificar a quem serve. Esta não serviu ao governo, com certeza’. Para Francisco Karam, não é legítimo usar um aspecto comportamental de alguém que está em um cargo público e transformar isso no emblema de todo um governo. ‘Está havendo uma mistura geral’, avalia.

Karam destaca a delicada a posição das pessoas que ocupam cargos públicos, que precisam ter cuidado redobrado com suas atitudes. ‘É um problema muito sério, em algum momento acaba sendo explorado’, analisa.

Notícia ou espetáculo?

Mas aquela cena era ou não uma notícia? Maria Helena garante: ‘Claro que era uma notícia!’ Mas, ao ‘cavar’ a matéria, a partir de uma câmera distante, apontada para um ambiente reservado, a reportagem prestava serviço relevante? Maria Helena lembra que a mesma Globo, algumas semanas antes, denunciava a questão das notas frias no caso do Renan Calheiros. ‘Ela fez uma denúncia, deu visibilidade e conseguiu reverter de alguma maneira, o que estava mal. Esse é um dos poderes da mídia’, aponta a professora, destacando, porém, que às vezes ela é construtiva, outras vezes é destrutiva, dependendo da relação que estabelece com os governos. ‘Não é verdade que o governo está se lixando para o povo brasileiro. Mas este foi o tom da imprensa no caso do Marco Aurélio’, afirma.

Um recorte como o que foi feito nesta reportagem, pode ser utilizado para quase tudo. A gestualidade serve para tudo. Do ponto de vista da informação, da contribuição social, porém, o fato não serve para nada, na opinião de Maria Helena. Para Karam, talvez a Globo esteja muito preocupada com a perda da audiência. ‘Acho que pode ser uma válvula de escape para a sobrevivência, por causa competitividade com outras redes. Mas ela (Globo) não vai poder manter essa hegemonia até o fim dos tempos, porque estão surgindo coisas novas e ela não pode dar conta disso’, projeta o professor.

Karam acredita, entretanto, que o jornalismo como a atividade que trabalha o mundo social, que permite que os acontecimentos do dia-a-dia tenham suas versões entendidas e acessadas pelo conjunto da cidadania, é o que ainda prevalece e deverá prevalecer. ‘O jornalismo com compromisso, com a legitimidade social dada pelo século 20, baseada na credibilidade, na veracidade vai continuar existindo’, atesta.

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Da Redação FNDC