Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Wesley temia os tiros; morreu com o lápis na mão





Clima de férias na imprensa neste fim de semana. Jornalões e
revistinhas circularam por obrigação, páginas e cadernos preenchidos
burocraticamente com material de gaveta. Até a disputa eleitoral ficou insossa e
o assassinato de Eliza Samúdio convertido em rotina.

Culpa do frio no
sudeste (onde são editados os três diários ditos nacionais), mas pode ser
ressaca de uma Copa estressante terminada na semana anterior. Única emoção
naquele monte de páginas, mas suficiente para enternecer corações e mentes
brutalizadas pelo noticiário de crimes hediondos e chacinas contínuas: a
primeira página do Globo no sábado (16/7) devolveu ao nosso jornalismo
impresso sua capacidade de emocionar.

Bicho-papão


Um dia antes, rádios, telejornais e portais noticiaram a morte na Zona Norte
do Rio de um menino de onze anos atingido no peito por uma bala perdida em plena
sala de aula. Não foi a primeira criança morta na Batalha do Rio, mas esta
jamais será esquecida porque o repórter Sérgio Ramalho não apenas deu-lhe um
nome (Wesley Gilbert Rodrigues de Andrade), mostrou sua foto com a camisa do São
Paulo (do qual era torcedor) e flagrou-o respondendo a uma recente enquete do
próprio jornal sobre o bicho-papão que mais temia na comunidade. Resposta
premonitória de Wesley: ‘os tiros’.


Título da primeira página: ‘Pesadelo virou realidade’; embaixo, com a tosca
caligrafia do menino, a pergunta e a comovente resposta. Enquanto o grosso da
imprensa contenta-se com frias e distantes estatísticas, o repórter de O
Globo
tirou a vítima do anonimato, deu-lhe vida apesar de morto e comoveu o
país. Wesley morreu com um lápis na mão na aula de matemática enquanto policiais
e traficantes enfrentavam-se numa batalha campal a poucos metros de distância.


A série de reportagens ‘O x da questão’ que foi à escola de Wesley já foi
citada neste Observatório porque os repórteres foram a outras escolas e
numa delas, onde estudou Fernando Beira-Mar, descobriram que apenas o
arqui-criminoso enveredou pela senda do crime; todos os seus ex-colegas são
honrados cidadãos. Com repórteres sensíveis, comprometidos com a tarefa de
contar histórias e editores capazes de se emocionar com o cotidiano, a imprensa
não precisa temer a internet.


 


***


Comentário de Alberto Dines no editorial do programa Observatório da
Imprensa
na TV nº 549, exibido em 8/6/2010:


Enquanto a mídia se resigna diante da hegemonia das maquinetas da internet,
os bons jornalistas mostram que a grande reportagem está viva e continua
imbatível. O Globo mostrou isso no domingo (6/6) ao final de uma série
denominada ‘O x da questão’, quando o repórter Antônio Werneck foi à escola
pública onde estudou o criminoso Fernandinho Beira-Mar e levantou a história de
22 ex-coleguinhas do traficante: nenhum virou bandido. Quando a internet
produzir este tipo de jornalismo então, sim, ela poderá ameaçar os
impressos.