Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

‘Ombudsman’ argentina defende nova lei

A jornalista argentina Cynthia Ottaviano, 40, é a primeira defensora pública dos meios audiovisuais da Argentina. Ela tem a função de levar as denúncias ou consultas de telespectadores e ouvintes aos respectivos canais de comunicação. “Nossa ferramenta principal de trabalho é o diálogo, não temos poder de punição”, afirma.

A criação do cargo veio com a nova Lei de Mídia, que entrou em vigor em 2009.

A legislação voltou ao debate no país na semana passada, quando a Corte Suprema declarou constitucionais quatro artigos de caráter antimonopólio que eram questionados pelo Grupo Clarín.

Com a sentença, o grupo terá que ser desmembrado, porque a legislação estabelece um limite de licenças de rádio e TV.

Professora da Universidade do Salvador e com passagens por meios como os jornais “Perfil”, a Rádio Pública Nacional e o canal 13, do Clarín, ela é defensora pública desde novembro de 2012.

Sua candidatura teve recomendações de 800 pessoas e foi aprovada no Congresso. Seu mandato é de quatro anos renováveis.

Entre os casos que ajudou a solucionar está o de um grupo de professoras que tiveram suas imagens exibidas erroneamente por um canal a cabo numa reportagem sobre maus-tratos a alunos de um jardim de infância.

Por intervenção da Defensoria, o canal C5N, acusado de ter ligações com o governo, teve de ler várias vezes durante os seus noticiários uma errata sobre o caso.

Cynthia falou com a Folha, por telefone, de Bariloche, onde participava de uma audiência pública.

O que mudou no país com a nova Lei de Mídia?

Cynthia Ottaviano – Conseguimos alcançar um paradigma de comunicação com perspectiva nos direitos humanos. Mas essa luta foi feita pela sociedade civil, que propôs diferentes projetos, que, se não viraram lei, foi por causa da resistência das corporações. É preciso lembrar que o pedido por uma radiodifusão democrática começou muito antes de que na Argentina existisse a possibilidade de que viesse a ter algo chamado kirchnerismo. A sociedade realizou os chamados 21 pontos para uma comunicação democrática [em 2004, 300 organizações criaram uma lista com 21 itens que deveriam constar numa nova lei de radiodifusão]. Esse documento serviu de base para a Lei de Mídia.

Quais os pontos mais importantes da lei?

C.O. – A mudança essencial é que a lei deixa de considerar a informação como mercadoria e negócio e passa a considerá-la um direito e um serviço. Também tem o reconhecimento dos novos sujeitos de direito, que são os cidadãos que podem se manifestar por meio de audiências públicas; o reconhecimento de que há um direito humano à comunicação, de dar e receber informação, de ter igualdade de condição e acesso.

Como a sra. vê a sentença da Justiça sobre a constitucionalidade da lei?

C.O. – A sentença é uma ratificação do que havíamos sustentando nas audiências [com o Grupo Clarín]: uma democracia não pode ter privilegiados. Uma democracia necessita do direito à comunicação, que é algo que todos temos por sermos pessoas, o que nos coloca em igualdade de condições. A definição de riqueza não é só econômica, é também de informação.

Quem ganha com a Lei de Mídia?

C.O. – A audiência, o público, que é o grande sujeito de direito da lei. Esse é um triunfo da democracia argentina. Desde a recuperação democrática, em 1983, até 2005 foram apresentados 73 projetos para uma lei de comunicação democrática. O país luta há anos para deixar para trás um paradigma de comunicação que era autoritário.

Por que era autoritário?

C.O. – Porque a lei de radiodifusão da ditadura militar era mercantilista, considerava a informação uma mercadoria. E só se podia ter acesso a uma licença de rádio e TV quem tivesse dinheiro. Isso permitiu a concentração comunicacional e de posições dominantes na Argentina.

O governo é acusado de querer calar a imprensa que lhe é crítica com essa lei. Ela tem o respaldo da sociedade?

C.O. – Foram realizados 24 fóruns na Argentina antes de a lei ser votada. Cerca de 10 mil pessoas participaram para opinar sobre a lei. Houve 1.300 propostas e 120 modificações desse projeto. Depois o Congresso também convocou audiências públicas. A lei foi contestada na Justiça somente por um grupo de comunicação [Clarín]. Os demais apresentaram planos de adequação.

A sra. teme ser chamada de governista?

C.O. – Eu não trabalho para o governo. A Defensoria é um organismo autônomo, com dependência de uma comissão do Congresso que é composta por diversas forças políticas. Eu nunca participei de nenhum partido político e minha candidatura foi aprovada pelo Congresso.

Quais as principais reclamações que a Defensoria recebe?

C.O. – A falta de cumprimento de horários de exibição que respeitem a classificação indicativa, discriminação e estigmatização de pessoas, o não cumprimento de grade de programação.

Existem reclamações de que alguns canais públicos fariam propaganda do governo?

C.O. – Não. Já recebemos uma reclamação vinculada à falta de pluralismo no sistema público. E na Defensoria incentivamos a criação de um conselho honorário construtivo e de um código de ética para os meios públicos. Me parece fundamental que a audiência possa conhecer [esse código] e reclamar quando não se cumpra algo.

Os meios são obrigados a acatar suas indicações?

C.O. – Não. Trabalhamos com o diálogo e o consenso. A Argentina tem uma predisposição ótima para essas audiências, temos trabalhado muito bem com todos os meios de comunicação, inclusive da iniciativa privada, como o canal 13 [do Grupo Clarín].

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Lígia Mesquita, da Folha de S.Paulo em Buenos Aires