Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A Lei de Meios e o fim da propriedade cruzada

Notícia superimportante, mas pouco repercutida pelos veículos de comunicação no Brasil, foi a decisão da Suprema Conte Argentina que declarou constitucional a lei de imprensa audiovisual, mais conhecida como Lei de Meios, pondo fim a uma batalha judicial de quase quatro anos entre o governo argentino, da presidente Cristina Kirchner, e o Grupo Clarín, maior conglomerado de comunicação daquele país.

Aprovada em 2009 pela maioria do Congresso argentino, a Lei de Meios estava sem efeito até hoje por causa de uma medida cautelar outorgada em favor do Grupo Clarín, o qual contestava alguns artigos da lei, dentre eles o 161, que obriga os veículos a se adequarem às determinações da lei, inclusive se desfazendo de várias de suas posses.

No caso do Grupo Clarín, por exemplo, são 237 licenças de TV por assinatura, quando o limite máximo estabelecido pela nova lei é de 24. O Grupo ainda presta serviços desse tipo de TV a 58% da população, quando o máximo permitido de abrangência populacional é de 35%, conforme estabelece o artigo 45 da referida lei.

Enquanto isso no Brasil

A notícia é estímulo aos movimentos sociais que reivindicam a democratização da comunicação no Brasil, hoje concentrada nas mãos de poucos grupos. Conforme pesquisa realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), existem hoje no Brasil 9.477 veículos ligados a 183 grupos nacionais e regionais. Deste total de veículos, 25,56% se relacionam com pelo menos uma das 54 redes de rádio e televisão existentes no país. Ainda de acordo com a pesquisa, existem 34 redes nacionais de TV, com 1.512 veículos associados, e 20 redes de rádio (11 FM e 9 AM), com 910 emissoras. Do total, sete atuam apenas regionalmente, ou seja, no máximo em dois estados. Tanto no caso do rádio quanto da TV, o controle se dá de forma direta (cabeça-de-rede detém a propriedade) ou indireta (veículo pertence a um grupo afiliado), por meio de grupos regionais ou nacionais. Do total de 183 grupos de comunicação, 142 possuem abrangência regional (atuação em até dois estados), controlando diretamente 688 veículos, e 41 nacionais, com 551 veículos.

A pesquisa conclui que “em termos de veículos, ficou patente a desigualdade regional. Quase 50% dos 9.477 veículos estão localizados na região Sudeste, que atrai 61,5% da receita publicitária do meio TV, gera 56,8% do PIB brasileiro e possui mais da metade do Índice Potencial de Consumo (IPC) do país. Ao mesmo tempo, estes quatro estados têm a menor grau de dependência com as redes nacionais de rádio e TV. Apenas 21% dos veículos relacionam-se com os conglomerados a partir da afiliação”.

Proibição da concentração dos meios de comunicação e da propriedade cruzada é, a propósito, uma das reivindicações dos movimentos organizados no Brasil, constituindo esta, inclusive, uma das propostas (PL 303) elencadas no relatório final da 1ª Conferencia Nacional de Comunicação – Confecom – realizada em 2009 em Brasília.

A resistência conservadora

A despeito das críticas que têm sofrido por parte dos movimentos sociais, os detentores dos grandes veículos se mantêm resistentes às investidas. Tanto é assim que no final de 2010, quando o governo anunciou a intenção de criar uma agência reguladora para o setor de comunicação (a nova agência se chamaria Agência Nacional de Comunicação – ANC), os representantes do setor de telecomunicações se alvoroçaram, temendo que a proposta pudesse representar uma tentativa de cerceamento da liberdade de expressão por parte do governo.

Vale lembrar que a liberdade de expressão não pressupõe o direito a violar os direitos de outros cidadãos. Tanto é assim que a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), entidade que reúne a representação dos jornalistas no país, emitiu, em 3 de maio de 2010, um comunicado em que ressalta que a “liberdade de imprensa não é um direito absoluto”, pois, segundo a entidade, “seu limite é o respeito aos direitos dos cidadãos e usuários”.

A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informação da Câmara dos Deputados fez uma recomendação expressa para que seja discutida Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que suprima o § 2º do artigo 223 da CF/1988, pois este “estabelece instrumento de proteção às emissoras de radiodifusão, ao assegurar que a não renovação da outorga depende da aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal”, ressaltando que “nem mesmo as leis ordinárias demandam quórum qualificado e votação nominal para a aprovação”, representando este dispositivo da lei, ao julgamento da referida comissão, um verdadeiro privilégio.

Exemplo significativo

Também em 2010, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ingressou no Supremo Tribunal Federal com Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), requerendo que seja declarada a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em legislar, entre outras coisas, sobre a matéria constante do artigo 220, § 3º, II, cujo conteúdo determina competir à lei federal o estabelecimento de normas que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 221, que por sua vez aponta os princípios a serem seguidos pelas emissoras de rádio e televisão em sua produção e na sua programação.

O governo também procurou em certa medida se mobilizar no sentido de garantir ao cidadão um maior controle sobre esses veículos. Um exemplo disso é o polêmico Plano Nacional de Direitos Humanos que prevê dentre suas Ações Programáticas, “a criação de marco legal regulamentando o art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas”.

Como se vê, existem esforços que podem e devem ser empreendidos para a real democratização da comunicação no Brasil. Um desses esforços diz respeito ao mero cumprimento de leis que já estão em vigor, como a determinação constitucional de que parlamentares não podem ser detentores direta ou indiretamente de veículos de comunicação (art. 54, inc. I, a). Mesmo assim, o exemplo dado pelos hermanos é bastante significativo, faltando-nos coragem para encampar iniciativa parecida por aqui.

Direitos fundamentais

Por outro lado, a constituição de um marco regulatório se mostra algo imprescindível para a observância dos preceitos jurídicos e por consequência da democratização da comunicação no Brasil. Isso porque é a partir desse marco que se constituirão mecanismos de controle sobre os aparatos de comunicação, fazendo com que o cidadão possa de fato gozar de um bem que é seu e que deve ser utilizado para o seu bem enquanto sujeito da coletividade.

Nossa visão acerca da radiodifusão no Brasil parte de uma perspectiva que contempla antes de tudo os direitos fundamentais. Como seres dotados não só de capacidade, mas de necessidade de se comunicar com os seus iguais, os cidadãos necessitam ter à sua disposição uma gama variada de canais, os quais devem ser usados de forma multilateral.

******

Francisco de Paula Araújo é jornalista, bibliotecário e mestre em Políticas Públicas