Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O crime do convênio poderá ficar impune

Em 1978 o governo paraense, na administração Aloysio Chaves, iniciou uma relação promíscua com a TV Liberal. O Estado cedeu sua rede de transmissão para que a emissora distribuísse a sua programação pelo vasto interior do Pará. Mas pelo menos era a empresa privada que pagava (embora uma ninharia) ao poder público por essa cessão, realizada sem passar pela necessária licitação pública.

Vinte anos depois o negócio mudou de forma inédita e surpreendente. A partir de 1997, na gestão do médico Almir Gabriel, do PSDB, o governo é que passou a pagar pelo uso das torres de transmissão de imagem e som montadas pela Funtelpa, supostamente para servir à TV Cultura, mas usurpadas pela TV Liberal. Em nove anos, o Estado pagou 37 milhões de reais à emissora da família Maiorana, afiliada da Rede Globo (valor histórico, sem correção monetária, e que hoje passaria de R$ 70 milhões, mais do que o faturamento do jornal O Liberal em 2011). As parcelas mensais, que começaram em R$ 200 mil, terminaram, em janeiro de 2007, em R$ 476 mil.

Poderiam prosseguir por mais um ano se dependesse de Simão Jatene, também do impoluto PSDB, como Almir Gabriel. No último dia útil do primeiro mandato de Jatene como governador, o presidente da Funtelpa, Ney Messias, assinou um termo aditivo, o 14º em nove anos, prorrogando a relação até 31 de dezembro de 2007. O decreto só foi publicado na edição do dia 2 de janeiro de 2007.

Assumindo o governo em 1º de janeiro, Ana Júlia Carepa, do PT, anulou a prorrogação, suspendeu a vigência do convênio e instaurou inquérito para apurar as irregularidades na transação, enquanto o Estado assumia o polo ativo numa ação popular para anular o ato. A ação foi proposta pelo então deputado federal (do PFL, depois do DEM) Vic Pires Franco, que rompera com seu amigo Romulo Maiorana Júnior e decidira retaliá-lo, atacando-o nesse ponto fraco. Já a TV Liberal iniciou a cobrança do que considerava seu direito pendente, no valor de R$ 3,4 milhões, por despesas realizadas entre a suspensão e o cancelamento do convênio. As demandas ainda estão em curso na justiça.

Eis então que ressurgiu no enredo, em posição estrategicamente invertida à anterior, o Tribunal de Contas do Estado. O conselheiro Ivan Cunha, que é corregedor da corte, resolveu ressuscitar um processo que dormia em sono profundo nos arquivos da casa havia uma década e meia (embora o conselheiro o considere “com tramitação regular”).

Dimensão moral

A história começou no próprio ventre do TCE, no mesmo ano da assinatura do termo que criou o vínculo entre a Fundação de Telecomunicações do Pará e a TV Liberal. O vice-governador de Almir, Hélio Gueiros Júnior, que assumiu interinamente o cargo porque o titular foi tratar da sua saúde em São Paulo, descobriu o documento, que vinha sendo mantido em sigilo. Como o pai, Hélio Gueiros, se desentendera com o governador, o filho tratou de ajustar as contas: denunciou a relação ao TCE, pedindo-lhe providências.

O analista Amauri da Silva Guerra, do Departamento de Controle Externo examinou a denúncia, analisou o convênio e o considerou ilegal e lesivo ao interesse público, recomendando a sua anulação. Quando parecia que o tribunal tomaria uma posição com base no parecer técnico, o andamento do processo foi sustado, em 1998. Foi alegado que a questão já estava na esfera do poder judiciário e o TCE devia aguardar a decisão da justiça.

Não há razão, entretanto, para que a corte “se mantenha omissa diante de atos supostamente irregulares apresentados ao Tribunal”, que tem competência “para fiscalizar os atos administrativos e não ressalvou aqueles que porventura se encontrem sub judice”, sentenciou Ivan Cunha, que tratou de desfazer o parecer do auditor do mesmo tribunal e sua própria posição anterior.

Em 2011 ele disse, em entrevista ao Diário do Pará: “Como o processo está sub judice, não podemos adiantar o lado administrativo antes de uma decisão do judiciário”. Mudou o mundo ou mudou o conselheiro?

O corregedor-relator se estendeu no exame dos desdobramentos da relação entre a Funtelpa e a TV Liberal, mas não nas suas partes essenciais, que foram o alvo direto e fundamentado do parecer técnico do Deartamento de Controle Externo. Só assim pode concluir seu voto pela improcedência da denúncia e o arquivamento dos autos, com o endosso do presidente do TCE, Cipriano Sabino, e dos conselheiros Maria de Lourdes Lima e Luís Cunha.

Trata-se de uma decisão infeliz. O conselheiro endossa o ponto de vista da TV Liberal, e não a do analista do TCE, de que o instrumento jurídico utilizado, o convênio e não o contrato, é correto, por se tratar de assunto de utilidade pública. A Funtelpa estaria cumprindo “o preceito constitucional de estender a todos, à luz do princípio da isonomia, o direito à informação, integrando a comunidade paraense e atendendo às reivindicações dos diversos segmentos sociais”, principalmente “àqueles socialmente isolados e residentes em regiões longínquas”. O “relevante alcance social” dessa relação se sobreporia “a esta mera formalidade” de submeter todas as contratações do governo à chamada pública dos interessados, ensina o corregedor do TCE.

Imaginava-se que a TV Cultura foi criada exatamente para atender a esses objetivos. Não é a mesma coisa quando se trata de uma televisão aberta, comercial, como a Liberal, que, na maior parte do tempo, se limita a transmitir programação gerada pela TV Globo, a partir do seu maior núcleo de criação, no Rio de Janeiro. Ela é uma emissora de televisão que busca o lucro, obtido através de programas monitorados pelo Ibope para se tornarem populares, ao agrado do público. A ser assim, o melhor seria extinguir a TV Cultura, que perdeu grande parte da sua razão de ser.

Só através de um raciocínio falso e faccioso é que se podem admitir interesses convergentes entre a Funtelpa e a TV Liberal para aceitar o convênio no lugar do contrato. Foram contratos todos os quatro instrumentos assinados pelas duas partes, entre 1978 e 1987, prorrogados até 1996 por um termo de renovação e quatro aditivos.

O convênio foi adotado pela primeira e única vez em 1997. Diz a história que o documento original era outro contrato, elaborado pela assessoria jurídica da Funtelpa. O papel foi com essa caracterização ao gabinete do governador Almir Gabriel. De lá retornou como convênio, acompanhado pela ordem de cumprimento ou demissão daquele que se recusasse a cumprir a determinação superior.

É evidente que a relação só poderia continuar através de um novo contrato, nunca pela figura espúria do convênio. Ele foi adotado para evitar a concorrência pública e a possibilidade de que algum outro interessado se apresentasse para disputar a mamata. Naquele momento apenas a TV Liberal dispunha de transmissão via satélite, mas havia espaço no Brasilsat, o satélite da Embratel, para quem quisesse iniciar esse serviço. Seria inevitável a concorrência.

Havia ainda o detalhe mais escabroso: o governo pagaria para a TV Liberal usar as 64 (depois 78) torres de transmissão da Funtelpa. O pagamento foi disfarçado pelo uso de tempo da programação da emissora pelo governo, que seria nada mais do que mera operação de compra e venda de espaço publicitário, sujeita a licitação pública, se o negócio não fosse edulcorado pela conversa vazia de servir à “maior integração da comunidade paraense quanto a seus problemas e suas aspirações”, na linguagem do convênio, adaptada pelo conselheiro Ivan Cunha no seu relatório de endosso.

Mesmo na hipótese absurda de o convênio ser cabível, seu prazo de vigência se encerrou em 31 de dezembro de 2003, quando expirou o prazo do último dos aditamentos legalmente válidos. Um vácuo de três anos que o decreto de prorrogação, ao apagar das luzes do primeiro governo de Simão Jatene, não podia mais abonar.

O “convênio” assinado em 1997 foi um dos momentos mais negros da administração Almir Gabriel, que se rendeu ao poder do grupo Liberal, fornecendo-lhe uma receita mensal que suplementaria as atividades da emissora de televisão, num capítulo inédito – e ultrajante – do trato do poder público com uma empresa privada. Nos seus cinco anos de duração, devia alcançar R$ 12 milhões, já nesse limite um escândalo.

Nem a TV Globo imaginava a existência desse negócio. Dele só tomou conhecimento em 2006, quando fez uma intervenção branca na TV Liberal, que enfrentava crescentes dificuldades financeiras e deixava a desejar operacionalmente. Depois de assumir o controle do jornalismo local, a direção da Globo designou um interventor também para a parte financeira da emissora dos Maiorana A corporação dos Marinho impôs à afiliada a montagem de um sistema próprio, que lhe permitiu dispensar o “agrado” do governo estadual, na forma de R$ 37 milhões em nove anos, mais os R$ 5 milhões de despesas de manutenção das torres durante esse período. Quarenta milhões que se multiplicarão na atualização monetária. E crescem ainda mais se ao valor material for agregada a dimensão moral desse ilícito.

Ele se torna ainda mais clamoroso diante do desdobramento dos fatos, a partir da suspensão da vigência do convênio, no governo Ana Júlia. Os pagamentos mensais estancaram, mas a Funtelpa continuou a acolher o sinal da Liberal, até que a emissora montasse sua própria estrutura, por pressão da Globo. E sem sofrer qualquer complicação na continuidade da operação.

Próximo capítulo

Essa história deveria ser devidamente apurada no processo judicial que tramita a passo de cágado pelo poder judiciário. Mas logo deu para constatar que nem nesse âmbito a apuração da verdade seria livre e honesta. O deputado Vic Pires Franco desistiu da autoria da ação popular tão logo restabeleceu sua relação com Romulo Jr. Seu lugar foi ocupado pelo sociólogo Domingos Juvenil, em nome de outros interesses.

Apesar do parecer favorável à ação do Ministério Público, a juíza Rosileide Filomeno declarou a legalidade do convênio. Logo depois foi gravada uma conversa telefônica que ela teve com Marcelo, filho do governador Almir Gabriel, negociando sentença com apadrinhamento da sua promoção ao desembargo. Afastada da função, foi punida pelo tribunal com censura. O Conselho Nacional de Justiça agravou a decisão para a punição máxima no judiciário: aposentadoria compulsória, com salário proporcional ao tempo de serviço.

A ressurreição do processo administrativo que hibernava na geladeira do TCE ocorre, por coincidência, quando a ação popular interposta para a anulação do convênio parece caminhar finalmente para um desfecho. Depois de cinco anos da sua chegada ao segundo grau e ser recebida (nada menos do que oito desembargadores se declararam suspeitos por motivo de foro íntimo), a ação está quase pronta para ser julgada pela 5ª Câmara Cível Isolada do Tribunal de Justiça do Estado. No dia 9 de agosto a desembargadora Luzia Nadja do Nascimento, atual presidente do TJE, apresentou seu relatório. Poderá agora submeter o seu voto aos seus pares, talvez utilizando o parecer do TCE.

Em momento mais aprazado ele não podia ter aparecido. Consumará seu intento? É o que se verá no próximo capítulo desta triste novela, onerosa aos cofres públicos.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)