Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Iniciativa enfrenta a indústria e usuários

Após o escândalo das revelações da espionagem dos EUA contra seus aliados, desatado pelo caso Snowden, o Brasil envergou a bandeira do nacionalismo cibernético para garantir a proteção de dados e a transparência na internet. Além das desavenças públicas com Barack Obamadepois da revelação de que Washington espionou as comunicações da presidenta e de empresas como a Petrobrás, o governo de Dilma Rousseff desempoeirou com urgência um velho projeto de lei, o chamado Marco Civil, uma espécie de Constituição da internet, para retirar o Brasil do radar norte-americano e dos tentáculos do Google e da Microsoft, algumas das companhias que colaboraram com a NSA.

O aspecto mais polêmico da lei, cuja ideia surgiu há seis anos e que está sendo debatida atualmente no Congresso brasileiro, é o que obrigaria grandes provedores da internet que operam no país a nacionalizarem suas bases de dados e a guardarem os registros durante pelo menos um ano. Um integrante do governo tornou público, além do mais, um plano para criar um cabo submarino alternativo que evitaria o território dos Estados Unidos, mas ligaria o país com a Europa, a Ásia e a África, e a própria Rousseff anunciou no seu Twitter a criação de um correio eletrônico criptografado, dependente de uma rede local que não atravesse o solo norte-americano.

A polêmica estourou porque esses passos apontam integralmente para aquela que será, segundo os especialistas, a próxima batalha na rede mundial de computadores: liberdade ou controle, governos ou cidadãos, superexposição ou direito ao esquecimento digital. De fato, vários gigantes da informática e meios de comunicação anglo-saxões acusam Rousseff de querer isolar o seu país, a comparam aos dirigentes chineses e iranianos e alertam sobre efeitos indesejados da lei, como afugentar o investimento estrangeiro nesse setor e condenar os internautas brasileiros à segregação digital, embora em alguns países europeus exista uma legislação parecida, que protege determinadas informações sensíveis.

Operação complicada

“Preocupa-me mais a balcanização da rede do que o caso Snowden”, chegou a dizer o presidente do Google, Eric Schmidt. A iniciativa também dividiu os provedores brasileiros. A Abrint, associação brasileira do setor, manifestou seu apoio ao Marco Civil e à aposta na neutralidade da rede, enquanto outra entidade da área, a Abranet, mostrou-se contra algumas modificações em certos artigos, os quais, segundo ela, colocam em risco a liberdade de expressão. “[O projeto do Marco Civil] tem muitos aspectos positivos, mas pontos negativos”, diz o advogado Ronaldo Lemos, um dos autores do projeto inicial, que era, segundo suas palavras, muito menos controverso. “A obrigação de instalar os data centers no Brasil pode dissuadir as empresas estrangeiras de oferecerem seus serviços, diante do temor de aumentar seus custos, e ser um obstáculo para as companhias brasileiras que pretendam se instalar no mercado local ou global”, afirma. “E além do mais”, acrescenta Lemos, “paradoxalmente poderia se obter o efeito contrário ao que o governo diz perseguir: que os usuários fiquem desprotegidos e que seus dados venham a público.

O texto original estabelecia que, para proteger a privacidade, o armazenamento dos registros seria facultativo, e não obrigatório (embora pudesse ser solicitado de forma oficial). No entanto, agora existe a possibilidade de que esses dispositivos possam se alterar, e os dados de acesso de todos os brasileiros precisem ser obrigatoriamente armazenados, o que seria negativo para a sua privacidade, que é o que se deveria proteger.”

Lemos não é o único especialista que pensa assim. Outros veem nessa medida um componente econômico e protecionista, continuação da chamada reserva de mercado da informática – restrições impostas por Brasília a esse setor durante 20 anos, até 1992, com o objetivo de criar uma indústria nacional, com a ajuda de um férreo sistema tributário. Instalar um data center no Brasil custa cerca de 143,4 milhões de reais, contra 114,6 milhões no México e 101,2 milhões nos Estados Unidos, e segundo um relatório da consultoria Cushman & Wakefield o Brasil estava em 2012 classificado em último lugar entre 30 países analisados quanto à segurança digital, por causa das altas tarifas elétricas, do baixo nível educacional e das dificuldades para abrir uma empresa, e apesar de a população ser muito ativa nas redes sociais e de haver mais de 100 milhões de internautas. “Trata-se de uma operação tecnologicamente complicada”, diz o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, analista do Wilson Center Brazil Institute, que também salienta os possíveis prejuízos para o consumidor. Já para Joanna Varon, da Fundação Getúlio Vargas, há infraestruturas muito mais importantes, custosas e de longo prazo que poderiam diversificar as rotas de tráfego de dados, e que “não começariam por aí, e muito menos em uma carta de princípios como o Marco Civil”.

Tentativa de impor limites

Segundo os especialistas, tampouco parece que essas medidas conseguirão dissuadir a NSA de controlar as redes brasileiras, um dos principais nós de comunicação do planeta, como mostrou uma recente reportagem da revista New Yorker. A maior parte do tráfego da internet na América do Sul e Central passa por um edifício, situado em Miami, chamado Network Access Point of the Americas, e a construção de um cabo alternativo custaria bilhões de dólares, sem impedir que Washington continue tendo a possibilidade de obrigar o Google ou o Facebook a fornecerem dados armazenados no Brasil. “Na verdade, pela arquitetura atual da rede, grande parte da transferência de dados na internet passa pelos Estados Unidos, ou seja, continuam sujeitos à espionagem. Por isso, o cenário que confrontamos agora mostra como é cada vez mais importante ter outras rotas”, disse Varon, para quem o mais urgente é a aprovação do projeto de lei de proteção dos dados pessoais.

Enquanto isso, os esforços brasileiros, postos em cena num discurso de Dilma Rousseff em setembro perante a Assembleia-Geral da ONU, no qual se pronunciou a favor da neutralidade e da governança da rede para evitar o que chamou de “uma guerra virtual”, foram muito bem recebidos pela população, em especial pela esquerda, que se lembra da aquiescência de Washington à ditadura militar de 1964 a 85. “Se não fosse pela NSA, esse assunto teria sido adiado até 2014. No entanto, o tema tem agora um grande impacto eleitoral, e é vista com simpatia essa posição de desafio com relação aos Estados Unidos”, afirma Lins da Silva. “Ao contrário dos seus antecessores, Fernando Henrique Cardoso e Lula, Dilma Rousseff não tem as bandeiras internacionais que eles tinham. Então a presidenta aproveitou bem a oportunidade que o assunto da espionagem lhe brindou. Ao contrário de Angela Merkel, congelou ou paralisou a relação com os Estados Unidos, e isso não é bom para o Brasil”, conclui.

“Rousseff teve a coragem de liderar o debate internacional sobre a privacidade na rede”, afirma, por sua vez, Camille François, pesquisadora da Universidade Harvard (EUA), que já trabalhou, entre outros, para o Google e a Agência de Projetos Avançados de Pesquisa da Defesa dos EUA (Darpa, na sigla em inglês). “É o que ela disse perante a ONU e o que podemos ler no esboço apresentado pela Alemanha e o Brasil. Ela parece disposta a buscar um debate internacional construtivo sobre o que os países podem esperar e concordar para proteger a liberdade individual na era digital, não um cenário em que cada um se refugie no seu jardim murado. É uma conversa aberta, da qual têm participado especialistas, advogados e empresas da internet, não uma série de anúncios inesperados que não se sabe de onde saem.”

Controlar a informação é uma obsessão de todos os governos, e ainda mais no século 21, no qual o avanço das telecomunicações torna quase ingovernável o tráfego de dados, cujos fins podem ser ou não benéficos. A iniciativa de Rousseff parece necessária para regulamentar fenômenos impensáveis até pouco tempo atrás, mas também é uma tentativa de impor limites que poderão se voltar contra ela.

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Cecilia Ballesteros e Frederico Rosas, do El País