Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A ambição do latifúndio religioso

Em maio do ano passado, escrevi para Ouvidoria da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) reclamando da presença de missas e cultos nas emissoras que compõem a empresa estatal. A TV Brasil exibe o programa Reencontro, produzido por evangélicos, aos sábados; transmite a Santa Missa e Palavras de Vida, da IC, aos domingos. A Rádio Nacional FM de Brasília transmite a missa aos domingos.

Na semana passada, em artigo para este Observatório (‘Estado laico vs. proselitismo religioso‘), mais uma vez de forma brilhante, o professor Venício Lima tratou da intenção da EBC de expurgar as manifestações proselitistas que contaminam suas emissoras. É uma resposta às indagações minhas e de outros pessoas indignadas com esse abuso da religião.

Como lembra Venício Lima, a Constituição Federal estabelece uma separação entre Estado e religião. Diz o texto:

Artigo 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

178 emissoras de televisão

Ora, se a presença desses programas é inconstitucional, como o Estado poderia sustentar essa ilegalidade?

Ninguém sabe exatamente quantas emissoras de rádio e TV estão nas mãos das igrejas. O Ministério das Comunicações não tem esse número – e talvez nem seja por má-fé. Ocorre que tanto a Igreja Católica (IC) quanto as diversas denominações religiosas evangélicas, nem sempre revelam seu credo quando solicitam concessões. Por exemplo, a emissora A Voz do São Francisco, instalada em Petrolina, sertão pernambucano, às margens do Rio São Francisco é, juridicamente, a Fundação emissora rural a Voz do São Francisco. O nome não diz nada, mas, inaugurada em 28/10/1962, faz parte do latifúndio nacional da IC e integra o imenso esquema de poder político que a IC estende por todo o semi-árido nordestino.

A única forma de se saber a dimensão do latifúndio das igrejas católicas e evangélicas é apelar para estudos e pesquisas, ou para os sites das religiões. Mas isso não resolve.

Verifico por alguns artigos que a Igreja Universal teria (?) 22 emissoras de geradoras TV, sendo 19 em nome da Rede Record. O site da instituição nada fala sobre esse poder. De acordo com a Folha de S.Paulo (16/8/2010), este ano foram distribuídas 28 emissoras de rádio para igrejas evangélicas e católicas.

Quanto à Igreja Católica, um estudo de 2003 do professor Venício Lima (‘Existe concentração na mídia brasileira? Sim‘, dado neste OI)informava que a IC tinha 178 emissoras de televisão. Hoje se sabe que a IC tem pelo menos duas redes de televisão com cobertura nacional: Rede Vida e Canção Nova. Uma nova rede estaria surgindo a partir de Aparecida do Norte, São Paulo.

56 canais de retransmissores doados em um único dia

Quanto às rádios, hoje temos as seguintes redes em poder da IC:

1) Unda Brasil. É parte da Unda internacional, criada em 1968, em Colônia, Alemanha. A Unda Brasil, ou União de Radiodifusão Católica, foi criada em abril de 1976. A entidade, que tem sede em São Paulo, conta hoje com 184 emissoras de rádio associadas.

2) RCR. Criada em 1992, a Rede Católica de Rádio reúne as emissoras católicas para transmissão via satélite digital. Funciona no mesmo prédio da Unda Brasil. A RCR tem 185 emissoras filiadas. ‘É a maior rede de rádio do Brasil, com transmissão de programas diários em rede’.

3) Rede Milícia Sat. Iniciou suas operações em 1995. Esta rede de rádios católicas é constituída por 112 emissoras que transmitem o programa A igreja no rádio, gerado pela Rádio Imaculada Conceição, de Santo André (SP), todos os dias, no horário da meia-noite às 5h00 da manhã.

Como a IC construiu um patrimônio dessa dimensão? O que assombra mais que o volume de recursos investidos é que esse latifúndio é feito de concessões públicas ofertadas gratuitamente pelo Estado. Ocorre que a concessão de emissoras educativas, conforme a legislação vigente, dispensa a passagem dos processos pelo Congresso Nacional – basta uma canetada do ministro e do presidente da República, isto é, ganha quem tiver ‘amigos no poder’. E a IC sempre teve amigos no poder, seja lá qual for a cor do poder. Quantas emissoras a IC ganhou até hoje? Quantas educativas (com canetadas) ela levou no governo FHC e no governo Lula? Ninguém consegue precisar. E isso é muito bom para igreja.

Em 27/1/2004, o jornalista Daniel Castro, colunista da Folha de S.Paulo (Folha Online), relatou que ‘na semana em que foi demitido pelo presidente Lula, o ex-ministro das Comunicações, Miro Teixeira, deu em um único dia, 20 de janeiro, 56 canais de retransmissores à Fundação Nazaré, da Arquidiocese de Belém, onde tem uma geradora educativa’. O site da Fundação Nazaré não diz exatamente isso, mas dá a entender que, graças às boas relações com o governo (FHC ou Lula, dá no mesmo para a IC). Trata-se de uma rede educativa. Isto é, as emissoras foram concedidas à base da canetada. Gratuitamente…

As melhores terras de Brasília

A TV Nazaré foi se espalhando por toda a Amazônia Legal. As primeiras concessões foram feitas pelo ex-ministro Juarez Quadros e, a maioria até então, outorgadas durante o ano de 2003, pelo ex-ministro Miro Teixeira. Hoje, a Rede Nazaré de Comunicação é formada por sua geradora – Canal 30E UHF, de Belém – e 78 (setenta e oito) canais primários e secundários já outorgados e em processo de instalação (ver aqui).

A ganância da Igreja Católica pelo controle dos meios de comunicação é quase insaciável. A igreja hoje abocanha TVs em sinal aberto ou por assinatura; rádios AM e FM; rádios e TVs comerciais e educativas e até rádios comunitárias. A Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc) anunciou que possui mais de 200 rádios devidamente autorizadas. Mas se de acordo com a lei 9.612/98, artigos 3º e 11º, isso é proibido, como o Estado deu essas concessões? É preciso alertar que, embora o processo burocrático se dê de forma secreta, nas entranhas do poder, depois que as emissoras são contempladas com concessão os endereços são sabidos por todos. Por exemplo, a Igreja Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, tem uma concessão de rádio comunitária; o mesmo acontece em São Gonçalo, no interior do Rio de Janeiro; e a Igreja Casa da Benção, que é evangélica, em Taguatinga (DF), também tem concessão de comunitária.

O patrimônio da IC na área da comunicação é uma parcela reduzida do poder dessa imensa empresa transnacional. A Igreja é dona de terras, creches, editoras, colégios e universidades, que nem sempre cobram ‘valores cristãos’. E para onde vai o que é arrecadado? Certamente não é para restaurar as suas igrejas e catedrais – isso é função do Estado brasileiro, conforme acordo aprovado com o Vaticano no Congresso Nacional, sancionado por Lula no ano passado. Somente para a recuperação da catedral de Brasília foram investidos 1 milhão de reais. Dinheiro dos fiéis, dos seguidores do papa? Não. Dinheiro de estatal (Petrobras), dinheiro público. Uma igreja foi totalmente queimada em Pirenópolis. Foi reconstruída. Quem pagou? O Banco do Vaticano? Os católicos? Não. O Estado. Ilegal, claro. Vide, mais uma vez, o art. 19 da Constituição.

É importante frisar que, historicamente, a Igreja Católica sempre se deu bem com o Estado. Praticamente em todas as cidades do Brasil, da capital ou do interior, a Igreja se apossou de largas extensões de terra e das melhores áreas urbanas. Ganhou de presente. Essa prática não é coisa do passado. A Igreja pegou as melhores terras de Brasília. Na Esplanada dos Ministérios, botou uma catedral. Ao lado da catedral, começa o setor de Embaixadas. Qual a primeira embaixada? A do Vaticano. Ao lado, vem a Nunciatura Católica e a sede da (esquerdista?) CNBB. Quando foi construir a Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro teve que negociar o terreno da UnB com o papa porque na Brasília ainda em construção as melhores terras já tinham dono (in Confissões, livro autobiográfico de Darcy Ribeiro).

Uma história de mil anos

Em toda a América não foi diferente. A Igreja Católica foi uma tragédia para os povos andinos e do Caribe. A América espanhola se fez às custas de tortura, assalto, pilhagem, matança dos povos indígenas. Mas a IC é uma instituição tão sagaz, tão esperta, que, apesar da parceria na matança cometida, ainda é venerada pelos povos da região. Nem satanás (uma invenção da Igreja), seria capaz de tamanho feito: o antigo matador agora é venerado pelos sobreviventes. O fato é que estamos diante de profissionais. O livro mais conhecido do florentino Machiavel, O príncipe, nasceu para fazer frente ao poder fraticida e desagregador da Igreja na época.

A dimensão do poder da igreja sobre os meios de comunicação não é muito clara em toda a América Latina. Por razões políticas. Quem ousaria revelar a dimensão desse latifúndio? Na Argentina, por exemplo, o Poder Público favorece esse ocultamento. Segundo o professor e pesquisador Jorge Zaffore, cuja tese de doutoramento se intitula ‘Mass media, derecho y poder. Ideología o conocimiento’ (Editorial NovaTesis, Rosario, 2007), a autoridade pública argentina esconde os dados sobre a Igreja católica. Zaffore revela que existe uma discriminação do Estado argentino, que toma frequências dos evangélicos e as dá a los obispos católicos. Ele ainda informa que a IC tem cerca de 130 rádios FM em todo país, várias AM e vários canais de TV em VHF e UHF.

Tem algo de muito errado nas relações da Igreja com o Estado brasileiro. Seria o caso de um deputado ou senador propor uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), ou do Ministério Público intervir, para investigar como a Igreja Católica construiu esse patrimônio e, finalmente, desvendar como ela mantém essa influência sobre o Estado.

A história da igreja Católica revela que a instituição não tem nada de santa e que as atitudes mais atuais (ocupar a antiga Radiobrás ou conseguir concessões de emissoras educativas, por exemplo) é uma continuidade dessa sua ambição pelo poder. É uma história que se inicia há mil anos, quando ela dominava os Estados e ampliava seus territórios, trucidando os adversários; expandiu seu poder com as cruzadas; criou a inquisição para torturar e matar seus inimigos, em especial as mulheres; quase dizima os índios de toda a América; apoiou Mussolini e Hitler e assim conseguiu dinheiro e as terras onde hoje se assenta o Estado do Vaticano; apoiou os ex-nazistas após a Segunda Guerra mundial; protegeu os padres pedófilos da Igreja; faz campanha contra o uso da camisinha; faz campanha contra a descriminalização do aborto; discrimina os homossexuais…

Uma debandada dos fiéis

E tem a doutrina católica, baseada na dor e no sofrimento, na culpa e no remorso. Não por acaso o maior símbolo da Igreja – a cruz – é um homem sendo torturado e morto. Não tem nada a ver com a vida. O crucifixo mostra o filho (Jesus) que o pai (um deus) deixou morrer pela ‘salvação’ dos homens. Para conhecer os crimes desse deus, o melhor é ler o seu dossiê em forma de romance no último livro escrito por José Saramago, Caim.

Como uma instituição com esse perfil conquista as pessoas? A fé não se explica, paciência. É de cada um. Mas quando ela se transforma em poder, ou é usada para conquistar patrimônios públicos, deixa de ser uma questão de foro íntimo para se tornar um problema de interesse de toda sociedade. Até se entende como, no passado, os governantes deste país se submeteram à Igreja Católica. Hoje, porém, não tem cabimento permitir que esse latifúndio se expanda mais ainda e, o que é pior, às custas do Estado e contrariando à Constituição.

A questão é que à Igreja Católica, ambiciosa, não basta ser dona de latifúndios (terras, escolas, editoras, emissoras de rádio e TV, etc.); quer mais. Se há um espaço na TV pública, ela reivindica, ela exige. É uma atitude indecente, e até anti-cristã – porque o próprio catolicismo condena a usura –, mas ela não parece se envergonhar disso.

Parece, no entanto, que a sanha gananciosa da Igreja Católica pelos espaços públicos terá fim. Pelo menos na EBC. Finalmente, o Conselho curador adotou um posicionamento para acabar com essa imoralidade. Ainda de forma tímida: colocar em ‘consulta pública’ esse abuso é um sinal dessa timidez. O correto seria eliminar imediatamente esses programas porque assim referendaríamos a laicidade do Estado e o respeito ao cidadão, conforme prevê a lei.

É provável que neste momento a Igreja Católica esteja se movimentando em defesa da manutenção dos programas na EBC. Ela deve estar: 1) mobilizando seus fiéis cordeirinhos para que ‘votem’ nessa consulta pública; 2) atuando dentro do governo, ligando para os ‘igrejeiros’ do PT; 3) acionando os aliados da ‘igreja progressista’ para que se manifestem; 4) conversando com os poderosos de sempre (a elite econômica e política que comanda este país e está com ela desde 1500); 5) unindo forças com os evangélicos que usam o espaço da EBC.

Se esse movimento acontece, tudo pode ficar como dantes e o Brasil permanecer sob o comando da Igreja Católica por mais 500 anos. Ou, talvez, nem tanto. Corrija-se. Afinal, a Igreja Católica está em franca decadência. Embora se ‘modernizando’ com os pulinhos do padre Marcelo Rossi, seu discurso permanece fúnebre e funesto e as denúncias de pedofilia (coisa antiga que só agora vem à tona) estão provocando uma debandada dos fiéis. Mais um pouco e da Igreja Católica só restará o crucifixo pregado no alto da torre do templo e nos espaços públicos mais renitentes, como uma lembrança do quanto ela mandou no país e no mundo.

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Jornalista, mestrando em Comunicação na Universidade de Brasília, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias