Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A gratuidade da TV brasileira está em jogo

O advogado Luiz Eduardo Borgerth defende a adoção do padrão japonês para a TV digital brasileira. Presidente de honra da Asociacion Internacional de Radiodifusion e atualmente consultor de empresas de radiodifusão, Borgerth trabalhou por mais de três décadas na TV Globo e é, do alto de seus 73 anos de idade, um dos grandes conhecedores das questões de radiodifusão no Brasil.


Autor do livro Quem e como fizemos a TV Globo, ele não tem medo de tomar partido numa discussão que obviamente envolve os interesses da empresa para a qual trabalhou tanto tempo. Segundo Borgerth, o que está em debate não é apenas a melhor qualificação técnica do padrão a ser adotado no Brasil, mas o tipo de modelo de negócios de televisão que se quer ter no país. Para ele, se o governo brasileiro ceder ao lobby dos europeus, a população terá que pagar para assistir televisão e as companhias telefônicas passarão a dar as cartas em um setor que hoje continua reservado a empresários brasileiros.


Borgerth também discorda das críticas que vêm sendo feitas por setores organizados que rejeitam o modelo japonês pelas limitações do padrão em permitir uma maior democratização dos meios de comunicação, e defendem o desenvolvimento de um padrão brasileiro para a TV digital. ‘O Brasil inventar um padrão brasileiro? O que significa `Brasil´ nesta frase?’, questiona ele.


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu do ministro das Comunicações, Hélio Costa, o memorando assinado com o Japão e mais uma vez postergou o anúncio de uma decisão que deveria ter sido tomada em 10 de fevereiro. Na entrevista a seguir, Luiz Eduardo Borgerth explica com argumentos contundentes por que a definição da TV digital é tão urgente e faz uma defesa entusiasmada da adoção do padrão japonês no Brasil.


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Há quem diga que o Brasil se precipitou na implementação da TV digital e que só a TV Globo realmente teria pressa na questão, uma vez que já começou a fazer os investimentos para migrar para o novo sistema. O Brasil não poderia esperar mais para definir o padrão de TV digital e obter, com o tempo, condições ainda melhores na negociação?


Luiz Eduardo Borgerth – As negociações entre quem dá mais para o Brasil adotar um padrão ou outro é a primeira grande mistificação da questão. O que está em jogo é decidir se o povo brasileiro, o povão classe B, C, D, E, F etc., o pobre povo pobre brasileiro, vai poder ter os benefícios da televisão digital em casa e de graça (como tem hoje sua televisão analógica) ou se vai ter que pagar para vê-la. Se vai poder ver o seu jogo de futebol, sua novela, seu jornalismo em alta definição em casa, nos seus celulares (que hoje todos tem) nos trens e ônibus desumanos em que se movimenta para o seu trabalho, de graça ou não. Pelo padrão europeu, não vai; pelo japonês, vai. É só esta a questão. Pelo padrão japonês, que já está no ar no Japão, o mesmo sinal, pela mesma faixa, vai para as casas, para os celulares, para os receptores móveis. Sem intermediação, sem telefônicas, sem passar por cabo ou telefone. Pelo europeu, só pagando. E adivinhemos quem está na fila para vender esta sensacional novidade? A questão é esta; o resto é mistificação.


Como avalia o memorando assinado com os japoneses para a implementação do Sistema Brasileiro de TV Digital? A disputa em torno da questão do padrão para a televisão digital está realmente encerrada ou ainda existe a possibilidade de uma ‘virada de mesa’?


L.E.B. – Se está decidido? Não sei. O poder do lobby das telefônicas é tremendo. Toda esta mistificação é trabalho delas. Formaram, oficialmente, uma coalizão reunindo todos os interesses europeus da área. Fazem cômicas ameaças. Um diretor da Nokia disse que não fabricarão celulares se o sistema japonês for adotado. Um outro, da Siemens, pontificou que no Brasil é absurdo pensar em televisão em celulares pois a lei brasileira não permite. A Siemens é uma empresa alemã especializada em Direito Comparado. Chamam a si mesmas de ‘teles’ para não ter que explicar o que fazem telefônicas e fabricantes de equipamentos estrangeiros querendo decidir o futuro do povo e da televisão brasileira. Estão em todo o lugar. É impossível virar para um lado e não deparar com publicidade de uma telefônica ou de um celular. Até o seu Marcos Valério foi se encontrar com presidente de telefônica européia.


Até pouco tempo, a Casa Civil estava com as telefônicas. Agora, parece que atinou com a questão. Só o ministro Hélio Costa, exatamente por saber o significado da radiodifusão brasileira, ficou contra os interesses estrangeiros numa discussão da qual eles deveriam estar totalmente ausentes: a Constituição brasileira não permite órgãos de comunicação social em mãos de estrangeiros.


A adoção do padrão japonês vem recebendo basicamente dois tipos de críticas: o de setores ligados a movimentos pela democratização dos meios de comunicação e dos lobbys das operadoras de telefonia. Os primeiros defendem o desenvolvimento de um padrão brasileiro e os segundos defendiam o padrão europeu. Em artigo publicado em fevereiro, o senhor defendeu a opção do ministro Hélio Costa pelo padrão japonês e atacou a ofensiva das telefônicas. Na sua opinião, o Brasil não teria condições de desenvolver um padrão próprio para a TV digital? 


L.E.B. – O Brasil inventar um padrão brasileiro? O que significa `Brasil´ nesta frase? Que empresa está desenvolvendo um sistema diverso dos existentes? Quem vai fabricar os equipamentos? Quem vai comprar os transmissores brasileiros? Os Estados Unidos não têm um padrão. O que se chama ‘americano’ é só para efeitos de marketing. O sistema é coreano, LG. Para a televisão em cores ainda deu. Copiamos o processo alemão com ciclagem diferente. O alemão era PAL; o nosso virou PAL-M e era o melhor. Era único no mundo, mas ninguém foi reclamar com o governo. Era militar. Todo o mundo saiu fabricando receptores em PAL-M. O padrão digital brasileiro foi a saída que o deputado Miro Teixeira descobriu para não ter que enfrentar o problema. E serviu para tumultuar a questão; para ver se da confusão poderia surgir o padrão europeu para resolver o ‘impasse’. Quem pode ser contra um sistema brasileiro? Se o padrão pretensamente brasileiro impedisse o povo de receber alta definição gratuitamente, podemos apostar que a coalizão européia apoiaria.


Como o senhor analisa as críticas sobre as restrições do modelo japonês à democratização dos meios de comunicação?


L.E.B. – A democratização da televisão é outro lema de que se aproveitam as ‘teles’ e os seus agentes e arautos. Se não for permitida alta definição aos canais de televisão aberta, dizem, sobrarão muitos canais para todo mundo fazer televisão. Eles só ficariam com o melhor. Tudo o que não presta no cabo, satélite etc. poderá vir para a televisão aberta (é claro que o prime ficará no cabo); a televisão ficará democrática, o povo terá opções que hoje não tem. Evidente que isto é um embuste. É só verificar o interesse que desperta a programação nacional nos canais por assinatura e a predominância absoluta da programação americana como segunda opção. A maioria esmagadora da audiência assiste às redes abertas nos canais por cabo e satélite. Andem pelo mundo e vejam as opções que têm estes civilizados países europeus. Passarão a ter orgulho da televisão brasileira. Na Itália, toda a televisão privada está nas mãos de um único homem. A opção é estatal. Ademais, uma vez apagados os canais analógicos atuais, esta faixa hoje ocupada pelas emissoras poderá absorver o dobro de canais, para não falar das concessões absurdas que vem sendo dadas para retransmissoras de geradoras fantasmas.


É verdadeiro o argumento dos europeus de que, ao adotar o padrão japonês, o Brasil perderá a chance de exportar televisores para o resto do mundo, já que o padrão europeu tem um alcance territorial maior e, portanto, maior mercado importador? E como o senhor analisa a guerra de ofertas entre europeus e japoneses nesta reta final de negociações?


L.E.B. – As ‘teles’ e seus partidários querem, na verdade, é que lhes seja dado o povo brasileiro como clientes cativos para a televisão, o mailing list dos 200 milhões de cidadãos brasileiros para que tenham que pagar, agora ou mais tarde, para ver a televisão boa por cabo ou processo similar. A telefonia fixa – que ninguém nos ouça ou leia – é uma atividade condenada. Não é de hoje que a Telefônica constituiu uma subsidiaria Telefonica Media e depois comprou a Endemol, empresa de produção de programas de televisão, entre eles o Big Brother, que está na Globo. Esse negócio de prometer que vão exportar (não prometem que vão comprar) televisores nada tem a ver com a incomensurável prejuízo e frustração que causariam ao povo brasileiro, roubados de sua única forma gratuita de entretenimento, informação e cultura.


Na rica Europa, tudo é cabo. A televisão privada chegou na Europa não faz 20 anos, e chegou basicamente via cabo. O Canal Plus é provavelmente a maior empresa de televisão da Europa. E é por assinatura. O padrão econômico de quase todos os países da Europa ocidental faz da televisão por assinatura o meio normal. Nunca imaginei, nem imagino, que um governo petista possa se alinhar com interesses estrangeiros tão brutalmente contrários ao interesse do povão. Que compensação terá esta perda com a construção de uma fábrica na Zona Franca de Manaus?


Do ponto de vista do consumidor, há realmente alguma diferença nas opções que estavam em disputa? Especificamente em relação ao padrão europeu, a escolha pelo modelo japonês vai acarretar em custos maiores para o consumidor na transição para a TV digital?


L.E.B. – Discutir tecnologia eletrônica com os japoneses só pode ser brincadeira. É claro que os primeiros televisores vão custar uma fortuna, como custaram os primeiros televisores em cores. A previsão era de que custariam o preço de um Volkswagen. Foi o que se viu. Para as emissoras de televisão, a entrada na era digital é cara, mas obrigatória. Não ganharão um espectador a mais, apenas continuarão a exercer o seu papel, principalmente sua função informativa, nacional e independente, com os extraordinários recursos que a tecnologia digital permite. Mesmo porque em breve já não haverá aquisição ou reposição de partes para a analógica.


Uma vez escolhido o padrão, como se dará a implantação da TV digital no Brasil? Que tipo de dificuldades serão encontradas na transição? Em quanto tempo os brasileiros de cidades do interior terão acesso à nova tecnologia?


L.E.B. – A transição será difícil, mas mais rápida do que se imagina, como tudo que é gadget no Brasil. Não sei se a TV Globo é, na data de hoje, a única a ter pressa. A decisão é urgente; o prazo para instalação e extinção da televisão analógica é que tem que ser discutido com os concessionários de televisão e com mais ninguém. Se vai ou não haver receptores e decodificadores é problema delas. O importante é preservar a televisão gratuita para o povo. Como no Japão, nos Estados Unidos e na China; dois terços da população mundial, cada qual com seu padrão.