Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ‘lei seca’ de Diadema e os interesses contrariados

Nos últimos dias o Instituto Braudel atacou no rádio e nos jornais o que ficou conhecido como a ‘lei seca de Diadema’, que na realidade não é uma ‘lei seca’, mas simplesmente um controle social do ambiente onde o álcool é consumido, fenômeno que já existe na maioria dos países desenvolvidos. O que chamou a atenção nessas matérias foi a completa ausência ‘do outro lado’, quer seja a própria prefeitura de Diadema ou profissionais que tenham opiniões diferentes desse Instituto. A impressão foi mais de uma estratégia de marketing bem orquestrada do que de debate público sobre matéria de interesse do país.

Esse tema tem produzido enorme interesse pelo Brasil afora e dezenas de cidades estão implementando medidas semelhantes. A Assembléia Legislativa de Pernambuco, no dia 5 de maio, passou uma lei tornando o fechamento dos bares das 23h às 5h medida estadual. Todas as cidades que implementaram essa lei notaram melhora substancial no ambiente urbano e com clara diminuição da violência. O próprio governo federal ensaia transformar as medidas de fechamento de bares como um dos fatores que facilitariam a liberação de recursos para a segurança dos municípios. Temos, portanto, uma das poucas histórias de sucesso na luta contra a violência urbana no Brasil. Como explicar que um instituto tão respeitado como o Braudel possa gastar seu tempo e dinheiro violentamente atacando essa lei?

Dois fatores podem ter influenciado a avaliação do Instituto Braudel. Primeiro, o fato de o instituto ter, como um dos seus financiadores, a AmBev. Que é uma das maiores indústrias cervejeiras multinacionais e que tem 70% do mercado de cervejas no Brasil. Com certeza os interesses da AmBev são contrariados com o fechamento dos bares. No nosso país, ao redor de 80% do consumo de cerveja ocorre em bares. O Brasil é caracterizado como uma cultura em que se bebe fora de casa, com amigos, fazendo parte do lazer. Em todos os países onde isso ocorre existe uma maior exposição da população à violência causada pela intoxicação alcoólica. Não podemos negar que uma parte das pessoas intoxicadas pelo álcool vai se tornar violenta, e como na maioria das vezes está bebendo fora de casa, essa violência tem conseqüências para a segurança pública. Com o fechamento dos bares temos uma diminuição do consumo de álcool e como conseqüência uma diminuição da violência. Bom para a saúde pública e para a violência urbana. Mau para os lucros da AmBev, que só no ano passado repassou aos acionistas, na forma de dividendos, R$ 3 bilhões, ou seja quase 10% de todo o orçamento da saúde brasileira.

Alegação errada

O segundo fator que pode ter influenciado a avaliação do Instituto Braudel foi uma análise amadora dos dados estatísticos que dão respaldo à política implementada em Diadema. Após a introdução dessa lei foi proposta à administração de Diadema uma pesquisa que avaliaria o impacto no número de homicídios e violência domestica. Essa pesquisa foi feita com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) num tipo de projeto chamado de Políticas Públicas, basicamente uma parceria entre um órgão público (Prefeitura de Diadema) e uma unidade de pesquisa (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Além desses dois parceiros tivemos uma grande oportunidade de incluirmos, para a análise estatística, colegas do Pacific Institute for Research and Evaluation, do Prevention Research Center (Berkeley, Califórnia) e do Guy’s King’s and St Thomas’ School of Medicine (University of London). O resultado final dessa pesquisa está submetido, na forma de artigo, a apreciação em revista de saúde pública internacional. Vale a pena ressaltar que nenhum dos envolvidos recebe financiamento da industria do álcool.

Diferentemente do alegado pelo Instituto Braudel, a análise estatística dos dados de Diadema foi feita ao longo de 10 anos. Utilizamos dados de homicídios de janeiro de 1995 a julho de 2005, o que tornou os dados muito consistentes. Após a coleta dos dados fizemos um tipo de análise chamada de multivariada (‘log-linear regression analyses’), que basicamente leva vários fatores em consideração, e não somente o fechamento dos bares. No nosso modelo estatístico, fatores como criação da guarda municipal, taxas de desemprego, atividades contra o tráfico de drogas, além de outros fatores sociais e econômicos, foram avaliados como causadores das mudanças nas taxas de homicídio, em conjunto ou isoladamente. Também levou-se em conta que nesse período de 10 anos a população da cidade cresceu em 20%.

Mortes desnecessárias

O Gráfico 1 mostra e evolução das taxas de homicídio por grupo de 1.000 habitantes nesse período. A variação mensal é grande, de 4 a 41 mortes. Os homicídios aumentaram de 1995 a 1999 antes de caírem abruptamente em 2000, possivelmente em resposta à criação de Guarda Municipal e de algumas medidas em relação ao tráfico de drogas que ocorreram na cidade. Nos dois anos anteriores à introdução da nova lei a taxa era de 22 mortes por mês antes de caírem para aproximadamente 12 por mês durante os três anos que se seguiram ao fechamento dos bares.

Os dados desse gráfico serviram como base para a análise estatística mais sofisticada, que mostrou que, nos três primeiros anos após a introdução da lei, 267 homicídios deixaram de ocorrer especificamente pelo fechamento dos bares. Isso é um declínio de 40% do que esperaríamos se não houvesse a nova lei. A análise mostrou também que a diminuição do desemprego e a criação da Guarda Municipal também tiveram efeito, muito embora pequeno, na diminuição da mortalidade. No entanto, atividades contra o tráfico de drogas não produziram efeito estatístico. No geral houve uma diminuição de 89 mortes por ano numa cidade de 360 mil habitantes, ou seja, uma diminuição 25 mortes por 100.000 habitantes, por ano, especificamente devido ao fechamento de bares.

Esse é um dado substancial quando levado em consideração: Diadema era uma cidade com uma das maiores mortalidades do Brasil, e do mundo, com 103 homicídios por 100.000 habitantes. Sob todos os pontos de vista esse é um grande acontecimento do ponto de vista de saúde e segurança pública.

Vale a pena salientar que no Brasil tivemos um dos maiores aumentos da taxa de homicídios do mundo. De 1980 a 2004 a cidade de São Paulo passou de 18 para 54 por 100.000. A Organização Mundial da Saúde produz a seguinte comparação: se considerarmos as mortes por homicídio no Reino Unido como 1, os EUA seriam 6 e o Brasil, 27. Homicídio é a principal causa de mortalidade em homens entre 15 e 44 anos. Embora tenhamos recentemente uma discreta diminuição nacional dessas taxas, elas ainda são muito altas. Como existe essa relação tão forte entre álcool e taxas de homicídios, devemos continuar implementando essa lei como uma das medidas, em todo o Brasil, para que continuemos esse sucesso na redução desse tipo de morte desnecessária.

Interesses atingidos

Felizmente, um grande número de cidades está implementando programas semelhantes ao de Diadema, e a política de fechamentos de bares deixou de ser peculiaridade de uma cidade e passou a ser uma política de segurança a ser perseguida pelos homens públicos com compromisso social. Dados de 2005 da Unesco comparam dados da Grande São Paulo, onde existem 16 municípios que já implementaram o fechamento dos bares e outros 23 municípios que não o fizeram. Os programas dessas cidades variam muito com relação a sua fiscalização e implementação, mas podemos mostrar que existe uma grande vantagem em termos de diminuição dos homicídios nas cidades que implementaram o fechamento dos bares. Quando existe uma associação com programas sociais de melhoria de vida o efeito é ainda maior.

Vários fatores contribuem para que possamos utilizar os dados de Diadema como um modelo para outras cidades. São eles:

1) boa qualidade de dados municipais, com um bom monitoramento de todas as mortes que ocorrem na cidade;

2) a implementação do fechamento dos bares ocorreu após um bom debate municipal, em que todos foram consultados e opinaram, mas prevaleceu o interesse público, e não o interesse da indústria do álcool;

3) após a aprovação da lei criou-se um sistema de fiscalização, que pode ser considerado um modelo internacional, pelo qual todas as noites uma viatura, com fiscais e representantes da comunidade, vigiam o cumprimento da lei, o que contribuiu e muito para que a lei fosse e seja seguida por praticamente todos os estabelecimentos;

4) monitoração da aprovação da lei pela população: para surpresa de muitos, mais de 95% dos habitantes apóiam integralmente o que ocorre na cidade, mesmo os donos de bares apóiam essa medida;

5) Diadema deixou de ser o município mais violento do Brasil para se tornar pólo de desenvolvimento regional, atraindo empresas que buscam uma cidade com boa segurança;

6) os dados da pesquisa acima descrita são muito consistentes e corroboram que o fechamento de bares salva vidas; nunca uma pesquisa foi tão bem monitorada pelos setores que têm os seus interesses atingidos, como a indústria do álcool.

‘Institutos’, uma estratégia

Quem ganhou com o sucesso dessa política não foi o prefeito de Diadema e a sua secretária de Defesa Social, que merecem o sucesso internacional que angariaram, com todos os prêmios e reconhecimento. Ganhamos todos nós, que assistimos a uma política social sendo implementada de forma consistente e barata. De todas as medidas já propostas para a diminuição da violência o fechamento de bares, é uma das mais baratas e das mais efetivas, se fiscalizada apropriadamente.

O Instituto Braudel e a AmBev precisam se justificar de forma muito mais consistente por que se opõem tão violentamente a essa medida que, felizmente, continua salvando vidas no Brasil.

A mídia como um todo precisa prestar atenção nos interlocutores de assuntos de interesse nacional. Diferentemente da indústria do tabaco, a indústria do álcool desenvolveu uma estratégia de financiamento de ‘institutos’ para defender seus interesses. Não podemos deixar que os interesses da indústria do álcool tomem conta do debate sobre saúde pública, violência e álcool.

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Doutor em Psiquiatria pela Universidade de Londres, professor de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo