Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A letra morta dos princípios constitucionais

 

Em 2013, a Constituição Federal completa 25 anos. Já se passou um quarto de século com os avanços sociais alcançados pelo documento que mexeu com a vida de todo o país. Naturalmente que para sair do papel o texto constitucional precisa ser regulamentado, necessita de leis complementares para se tornar realidade. Algumas áreas são emblemáticas quando o assunto é regulamentação da Constituição, com a elaboração das chamadas leis orgânicas. Áreas como saúde, criança e adolescente e fiscalização dos governos municipais, estaduais e federal pelos órgãos do Ministério Público.

Ainda longe de ser universal, equitativo e integral, o Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado pelas leis federais 8.080 e 8.142, ambas de 1990, provou ser melhor que o antigo Inamps. Nas áreas básica e de alta complexidade, o SUS consegue dar respostas melhores que na média complexidade. E é aqui que se constrói a opinião pública negativa sobre o SUS. A classe média que não usa posto de saúde garante que o sistema não funciona porque consegue uma consulta especializada, de forma mais rápida, pelo plano de saúde. Ou pelo menos conseguia. Afinal, o descredenciamento dos convênios é uma realidade em todo o país. Por dois motivos. Pelos baixos valores praticados pelos convênios de saúde e pela ganância corporativa de vários segmentos médicos.

E quando essa mesma classe média precisa de procedimentos não cobertos pelo plano de saúde, recorre à justiça para garantir o seu direito. E quem paga a conta? O SUS. Não deveria recorrer ao Procon para garantir a cobertura já que a relação do suposto cidadão com o plano é mais de consumo e menos de cidadania?

Ministério Público sai do papel

Também é de 1990 a lei federal 8.069, que “dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”, criando o ECA – o Estatuto da Criança e do Adolescente. Além de organizar melhor a proteção integral a esse público, o ECA mexeu, inclusive, com o vocabulário praticado por autoridades e gente comum. Menor infrator virou adolescente em ato infracional; orfanato (aquele depósito de órfãos) foi transformado em abrigo. Isso para citar dois exemplos. E qual a importância disso? Evitar os rótulos que estigmatizam e geram o preconceito que desencadeia a discriminação.

A importância do ECA e seus avanços na garantia dos direitos da criança e do adolescente são evidentes, seja por efetivar direitos fundamentais ou regular, por exemplo, a atuação de famílias substitutas, da tutela, da guarda, da adoção e também pela disciplina dos serviços de recuperação de adolescentes em conflito com a lei. Mas o ECA é atacado por segmentos importantes da sociedade que veem no estatuto um documento de proteção ao adolescente marginal. E essa visão passa pelo preconceito de classe porque geralmente quem brada contra o ECA o faz para adolescentes pobres. Afinal, adolescentes ricos, quando queimam índio achando ser mendigo, têm um batalhão de advogados à sua disposição e depois ainda viram funcionários públicos em Brasília.

Em 1993, o Ministério Público sai do papel com a instituição da lei federal 8.325, que deu poderes aos órgãos em nível estadual e federal para atuarem como atuam hoje, promovendo ações que levam autoridades à cadeia e confisco de bens, entre outros. Tudo bem, talvez os idealizadores não imaginassem que muitos promotores agiriam mais pelo holofote e pela política e menos pelo cumprimento da legislação e seus aspectos técnicos. Mas isso não invalida o órgão, tão necessário para combater os desmandos dos executivos e legislativos Brasil afora.

Efetivar a Constituição

Várias outras áreas foram regulamentadas a partir de dispositivos constitucionais que foram cristalizados pela sociedade brasileira com o fim da ditadura militar e outras ainda enfrentam resistências. E devem enfrentar por muito tempo. Uma dessas áreas cuja regulamentação hiberna nas letras mortas dos princípios diz respeito à comunicação social. Sob o capítulo V e seus artigos 220, 221 e 222 repousa um manto sagrado que impede a regulação do setor. O § 5º, do artigo 220, dispõe que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. No entanto, a prática brasileira afronta tal dispositivo. Hoje, quatro famílias (Marinho, Civita, Frias e Mesquita) ditam o conteúdo do que é veiculado por canais de TV e rádio (as chamadas concessões públicas), jornais, revistas e portais da internet. Os mesmos grupos que mandam nos canais comerciais que usam espectro público ainda controlam grande parte da produção a cabo.

No entanto, qualquer tentativa de discutir o tema é classificada como censura. Confunde-se deliberadamente liberdade de imprensa com liberdade de expressão. A primeira está mais para o poder de os veículos publicarem o que bem entendem. A segunda está relacionada à capacidade de o espectador se ver representado pelos veículos. E aqui cabe uma questão interessante. Qual o nível de pluralidade de opinião nos veículos brasileiros e sua capacidade de formar opinião de maneira honesta?

O item II do § 3º do artigo 220 determina que compete à lei federal, ou seja, o que seria a lei orgânica da Comunicação, “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221”. Portanto, regular a comunicação nada mais é que efetivar a Constituição Federal.

O barulho da mídia

Em que termos ocorrerá essa regulamentação? Deixar para prefeitos, governadores e presidente da República decidirem o que ser e como ser veiculado é temerário. Por isso, experiências de participação popular não faltam – por exemplo, na saúde e na área da criança e do adolescente – que ajudam a definir as políticas públicas para cada área.

A sociedade em suas instituições reconhecidas deve participar desse processo para que a comunicação seja efetivamente democrática e cumpra seus princípios constitucionais. Afinal, o barulho de uma mídia supostamente livre, quando inventa, mente e deturpa, pode ser pior que o silêncio das ditaduras.

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[Reinaldo César Zanardi é jornalista, mestre em Comunicação e professor de Jornalismo em Londrina, PR]