Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

“A liberdade de informação é um direito da sociedade”

Entrevista do ministro Edson Vidigal, presidente do Superior Tribunal de Justiça, concedida à equipe do programa Observatório da Imprensa na TV (exibido pela Rede Pública de Televisão na terça, 10/5, às 22h30).


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Na condição privilegiada de ex-jornalista profissional e agora na condição de presidente do STJ, como vê a condenação do jornalista-radialista Jorge Kajuru a 18 meses de prisão domiciliar?


Edson Vidigal – Tenho um impedimento legal: a Lei Orgânica da Magistratura Nacional proíbe os magistrados de se manifestarem sob decisão de outro magistrado, mas as minhas opiniões são muito conhecidas porque eu tenho falado em tese na condição de professor de Direito Penal da Universidade de Brasília e nas palestras que tenho proferido. Há pouco eu fiz uma palestra para o pessoal da Rede Globo, em Angra dos Reis, sobre esse tema. Eu acho que, primeiro, a Lei de Imprensa é inaplicável porque não há necessidade de Lei de Imprensa no Brasil, não há necessidade de processo criminal para o chamado delito de opinião. Opinião não é crime num regime democrático. As mesmas leis que estão previstas na Lei de Imprensa são as que estão previstas no Código Penal. Então nós temos uma dualidade de dispositivos legais e, para mim, a Lei de Imprensa já foi revogada pela nossa Constituição Federal – embora eu, como juiz, não possa recusar o seu conhecimento e até a sua invocação.


Por outro lado, penso que as eventuais ofensas que possam ser proferidas por abuso da liberdade de manifestação do pensamento, o abuso do direito de informação, a própria Constituição já prescreve no artigo 5º, que é a indenização por dano moral. Esse é um outro aspecto que está havendo muito abuso também, mas isso cabe ao juiz registrar as petições abusivas que sejam apresentadas.


Ao que consta é a primeira vez que um jornalista é preso desde o fim da ditadura militar. O que chama a atenção no caso é que o autor da ação que culmina com a prisão do jornalista é um dono de jornal. Considera normal esta situação?


E.V. – É um fato inusitado porque o repórter e seu patrão, ambos trabalham sob a necessidade de um mesmo instrumento, que é a liberdade. Não adianta o repórter ter a liberdade de buscar a sua fonte, a liberdade de publicar a sua informação, se essa publicação tem que ser veiculada pelo órgão que é de uma empresa. E se essa empresa trabalha no sentido da punição, ou seja, ela usa o mesmo instrumento da restrição contra o profissional, isso é no mínimo inusitado. Eu acho que isso é algo inédito no Brasil. Não tenho registro de outra situação em que os dois que precisam da liberdade de imprensa se levanta um contra o outro.


Pela Constituição, o direito de expressão não se sobrepõe aos demais direitos?


E.V. – Sim, porque a informação não é só um direito profissional. A liberdade de informação é um direito da sociedade. A sociedade tem o direito de ser bem informada e ela não pode ser bem informada se não for por profissionais que estejam acolhidos por essa garantia individual que consagra esse direito constitucional.


O fato do jornalista não mais residir em Goiânia, onde correu a ação, mas em São Paulo, a pena de prisão domiciliar não deveria ser transferida para o seu novo local de residência?


E.V. – A regra é que o acusado responda a acusação no distrito da acusação – onde, portanto, tramita o processo. A exceção é quando você desafora o processo, ou seja, quando o processo deixa de ocorrer no local onde houve o suposto crime, ou se desenrola a acusação quando há falta de condições de segurança para o acusado ou para o juiz. Vou citar um fato concreto, o caso de Eldorado dos Carajás, em que houve o desaforamento. O processo foi para Belém e não para Marabá ou Santarém, não lembro. Aliás, fui eu até que decidi esse desaforamento no STJ. Mas ali porque se alegou falta de condições de segurança para os jurados, para os acusados, para os juízes, enfim, para que o aparelho judicial pudesse agir. A execução, no caso do cumprimento da pena para o sentenciado, é para quando ele corre risco de morte, se a sociedade se revolta com a presença dele naquele local. O caso conhecido do Fernando Beira-Mar.


Lógico que o jornalista está a anos luz dessa situação. Portanto, em princípio, o juízo da execução penal deverá ser o juízo da sentença condenatória porque há um outro aspecto também. Se nós formos interpretar que a sentença em regra deve ser cumprida no local onde a pessoa mora, basta que alguém comece a sofrer uma acusação e, partindo do ‘desconfiômetro’ de que a fizera inevitavelmente como condenada, então ela muda de domicílio e busca como domicílio aquilo que seja mais confortável e tal. Daí é que nós temos no Brasil essas penitenciárias malucas, Bangus da vida. A gente precisa acabar com isso. Eu defendo que precisamos construir penitenciárias em ilhas – mais distantes, portanto, dos centros urbanos. Uma das razões para que tenham essas penitenciárias no Rio é porque a lei de execução penal estabelece uma utopia que diz que o sentenciado deve cumprir no local da acusação e estar um tanto próximo dos seus familiares, do meio social que ele convive. Aí o resultado é essa coisa que nós temos aqui no Rio de Janeiro.


Caso o cumprimento da pena não possa ser feito na cidade onde agora reside, o fato não configura um embargo ao exercício profissional e, portanto, uma limitação da liberdade de expressão?


E.V. – Não. Hoje você pode trabalhar em qualquer lugar. Quando eu fui repórter do Jornal do Brasil, eu usava o telex da Crítica de Manaus para mandar matéria que eu fazia na Bolívia. As fotografias, o filme, vinham pela Varig. Hoje você tem internet. De qualquer lugar do mundo você pode produzir, até de dentro da penitenciária, o que não é o caso [de Jorge Kajuru], porque a sentença condenatória foi para uma prisão albergue. O fato de ele ter um programa de televisão com outros participantes tinha que ser alegado no recurso. Salvo engano, até onde eu sei os advogados de defesa teriam perdido o prazo do recurso e por isso a sentença teria transitado em julgado. Essa é uma situação um tanto difícil porque ao mesmo tempo que nós defendemos a liberdade de informação, que é um direito da sociedade, a proteção ao profissional de dar cobertura as suas fontes, o direito de que a opinião não deve ser penalizada como sentença criminal, por outro lado nós também temos um princípio constitucional da República, de que todos são iguais perante a lei.


A lei, enquanto estiver em vigor, tem que ser cumprida e a sentença também está na Constituição. Nem a lei modificará o ato jurídico perfeito, que é o contrato, o direito adquirido e o trânsito julgado. Então aí é um caso em que se operou o trânsito em julgado. Há um brocardo latino que diz: ‘O direito não protege os que dormem’. No caso, alguém dormiu e operou-se o trânsito em julgado. Não dá para ficar com peninha.


Ele ainda tem alguma chance de recorrer da sentença?


E.V. – Tem. Há um recurso criminal chamado ação rescisória, no caso civil, e uma chamada revisão criminal, no caso de crime. Ele pode entrar com uma revisão criminal, mas isso vai demorar tanto que quando essa revisão também transitar em julgado, já terá passado o prazo da condenação. São essas coisas do Brasil e nós estamos lutando contra isso, contra essa morosidade do Judiciário.


Chamou a atenção de todos o extremo rigor da sentença. Como o autor da ação é o mais poderoso empresário de comunicação do estado de Goiás, não seria o caso de investigar se este grupo de comunicação não exerceu pressão sobre o magistrado que proferiu a sentença?


E.V. – Não creio nisso. Eu mesmo, como jornalista, já fui processado aqui no Rio de Janeiro. Eu morava no Maranhão nesse tempo, mas como o Jornal do Brasil era e é editado no Rio de Janeiro, eu tive que responder o processo no Fórum do Rio de Janeiro. Eles queriam, naquela época, que eu fizesse um acordo para admitir o meu erro, dizendo que eu teria exagerado no exercício dessa liberdade, mas eu me recusei. Bom, essa coisa também demorou muito, acabou entrando na prescrição porque eles, diante da minha recusa de retratação, viram que eu estava com provas – a fonte me muniu de provas – e então, naquele caso, preferiram não levar a questão à frente e deixaram que o processo morresse, não de morte matada, mas de morte morrida. Eu tenho experiência sobre isso.


Essa coisa de rigor, é o rigor da lei e o fato de o autor ser poderoso ou não ser poderoso… é claro que quando adentra na justiça do Brasil hoje – só os poderosos conseguem chegar à justiça, os pobres não têm acesso –, o acesso é muito limitado, a Defensoria Pública que a Constituição prescreve é uma instituição ainda muito incipiente, muito pobre. Hoje no Brasil está difícil até de viver de advocacia. Aquele pessoal que fazia artesanato advocatício já não tem condições de sobreviver porque a advocacia hoje é dos grandes escritórios. O sistema judiciário está tão emperrado, tão distante da democracia republicana, que você opera hoje dois tipos de direito: o direito das liminares e cautelares e o direito ordinário em todos os sentidos, que é aquele que empurra a questão por 10, 15 meses, e quando termina lá, ganha, mas não leva. Então o caso lá, longe de mim supor… a lei é que é rigorosa. Essa lei já deveria ter sido contestada. Tem tanta ação direta de inconstitucionalidade que as pessoas propõem no Supremo! Seria o caso de alguém legitimado fazê-lo, propor uma ação direta de inconstitucionalidade, pelo menos de alguns dispositivos da Lei de Imprensa, diante do texto mais democrático e transparente da Constituição em vigor.