Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A magia da linguagem radiofônica em risco

5 de junho de 1941. Às 10:30 da manhã, o locutor Aurélio Andrade, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, anuncia aos seus ouvintes: ‘Senhoras e Senhores, o famoso Creme Dental Colgate apresenta… o primeiro capítulo da empolgante novela de Leandro Blanco, em adaptação de Gilberto Martins… Em Busca da Felicidade.’ Entre os atores, estavam Rodolfo Mayer, Zezé Fonseca e Ísis de Oliveira. A partir dessa data, as rádio-novelas tornaram-se sucesso de audiência. Mais do que qualquer outra atração, aquela era especial. Pois trabalhava toda a sensorialidade daqueles que encenavam e dos que ficavam ‘grudados’ no aparelho. Cada detalhe fazia a diferença: os textos envolventes, as vozes sedutoras dos atores, a trilha sonora de fundo, o andamento das cenas. Enfim, o conjunto do processo era essencial para recriar a história na fantasia dos ouvintes. Imaginação que fundamenta a linguagem e a relação emissor x receptor no fluxo comunicacional radiofônico.

Em agosto do mesmo ano, 1941, surgia o Repórter Esso. Romeu Fernandez anunciava aos microfones da mesma Rádio Nacional do Rio de Janeiro conflitos ocorridos na 2ª Guerra Mundial. O programa noticioso marcou era, foi considerado o mais importante do país e ganhou credibilidade entre o público. Mesmo com direcionamentos políticos e ideológicos, o Repórter Esso serviu de referência para o jornalismo radiofônico brasileiro, principalmente por sua organização e processo de produção informacional. Assim como a novela, a dinâmica jornalística do rádio se fixou o imaginário das pessoas. Não era nem preciso mais um ler um jornal impresso para se saber dos acontecimentos, já que uma marcante voz os contava, com uma nova noção de tempo e espaço, para cada brasileiro fiel às ondas do rádio.

Uma realidade tecnológica

Depois veio a televisão, na década de 50. Um veículo midiático que trabalhava, além do som, a imagem. Dez anos depois de Aurélio Andrade iniciar a transmissão da primeira rádio-novela, era a vez da TV Tupi estrear a sua. Sua Vida me Pertence teve vinte e cinco capítulos e foi escrita e interpretada por Walter Foster. O próprio Repórter Esso ganhou sua versão televisiva em 1953, também na TV Tupi. Os dois casos são exemplos de uma adaptação da linguagem radiofônica para um novo veículo midiático que se afirmava. Parte da mística relação com o ouvinte foi afetada. A imagem estava à disposição e era impossível imaginar sem correlacionar.

Nos últimos anos, o rádio passou por um processo inverso. Com a consolidação das plataformas digitais, recursos de outras mídias estão sendo agregados à velha linguagem sonora. Abram passagem, pois a rádio digital veio para ficar. Há mais de quinze anos a tecnologia é alvo de pesquisas, principalmente nos Estados Unidos, e desde 2005 foi implantada no Brasil. O modelo adotado no país é justamente o norte-americano (IBOC – in band on channel). Esse sistema permite trabalhar com os sinais analógico e digital na mesma faixa, ou seja, não é necessário disponibilizar novos canais para o digital. Em Belo Horizonte, por exemplo, a Rádio Itatiaia e a Rádio Globo já possuem suas emissoras em fase de experimentação. As principais vantagens recaem sobre o som, já que a digitalização garante às emissoras AM uma qualidade sonora semelhante as FM. E a qualidade das emissoras FM se aproxima daquela dos CDs. Há também uma melhoria de sinal. As interferências são eliminadas e acabam as invasões de freqüência entre as rádios. Além disso, abre espaço para a entrada de novas emissoras no cenário nacional.

Julgando apenas por esse lado beneficiário, não há o que discutir na rádio digital. Mas se pensarmos bem, há um porém e ele está na linguagem que deverá ser utilizada. O modelo ultrapassa a simples transposição e percepção e parte para a exploração de recursos hipermidiáticos. Como a TV digital, sua aposta é na convergência de mídias. O sistema digital trabalha com a distribuição de informação em formato de textos junto ao som. Assim, conteúdos extras, como informações sobre o trânsito, clima, cotação das bolsas, notícias da hora, podem ser exibidos no visor dos aparelhos de rádio. Os próximos passos seriam a transmissão de imagens nos displays dos aparelhos turbinados e a personalização da programação, na qual o ouvinte teria diversos caminhos no ambiente multimidiático. As rádios na internet já se embebem dessa interação. Hoje é possível criar uma programação própria, fixando horários do que se deseja ouvir, ou seja, as etapas são pré-estabelecidas e direcionadas. O fluxo comunicacional, definitivamente, deixa de ser unilateral.

Transmissão em tempo real

Perguntas surgem. ‘O sistema continua sendo rádio?’ ‘E a rádio na internet?’ Segundo Eduardo Meditsch, ‘rádio é um sistema de transmissão no tempo real da vida do ouvinte’, ou seja, o que o caracteriza são a sua instantaneidade e o seu caráter imediatista. Não há como negar que há uma mudança nos pilares fundamentais que sempre sustentaram a estrutura do rádio. A começar pela quebra da sensorialidade e do apelo imaginativo. Os âncoras da rádio CBN podem ser ‘vistos’ apresentando seus programas ao vivo, como se o ouvinte/espectador estivesse assistindo à transmissão do estúdio. O mesmo acontece com o programa de entretenimento Pânico, da Jovem Pan (que também foi adaptado para a TV). É claro que a presença de uma câmera muda a postura dos apresentadores na condução dos programas. Eles estão sendo observados. Se a tecnologia rompe essa barreira da imagem, por outro lado enfraquece os encantos da construção individual, fantasiosa. Quantas vezes não nos perguntamos como era fisicamente determinado locutor, ou como ele trabalhava, transmitia as notícias? Com relação à rádio digital, transforma-se o processo de produção em consumo da informação.

Novas linguagens são acrescentadas e, evidentemente, sua velocidade de desenvolvimento e transmissão varia de acordo com as especificidades de cada uma. A relação do ouvinte com o aparelho e com a mensagem muda. Ele tem opções, divide atenções, não há mais uma exclusividade do som. Mas o que se tem que avaliar é até que ponto haverá, ou não, uma influência na linguagem sonora, na sua rapidez. Ela não pode ser prejudicada, pois como Meditsch salientou, é justamente a peculiaridade da transmissão em ‘tempo real’ que diferencia a linguagem radiofônica dos outros meios.

Ouvintes-leitores-espectadores

Não acredito que isso aconteça. Ainda me mantenho convicto de que a linguagem sonora será privilegiada, mesmo que com a exploração de outras. Esse é o grande charme do rádio. Inclusive, a melhora do som proporcionará um salto de qualidade e o sistema digital permitirá até uma maior versatilidade e eficiência. Novas emissoras também terão oportunidade de se afirmarem. As concessões é que preocupam… Já as rádios da internet caminham para uma total emancipação da ditadura sonora. As plataformas nesse suporte se desenvolvem constantemente e a convergência é quase inevitável. Apenas o título de rádio é que se manterá em pé. Puro charme.

Infelizmente, a tendência é que os ouvintes percam sua áurea. Estão perto de se tornarem ouvintes-leitores-espectadores. O avanço, muitas vezes, rompe com o encanto. Lembram-se do ‘Creme Colgate’ apresentando a novela Em Busca da Felicidade? Da construção pessoal da história, do contexto? A televisão chegou e levou embora. Que o sistema digital não nos leve também a magia da linguagem radiofônica.

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Estudante de jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG