Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A perspectiva dos usos sociais da tecnologia

A excessiva valorização das características técnicas de cada plataforma pela mídia ajuda a realçar a falsa idéia de que a definição da televisão digital no Brasil tem como prioridade questões tecnológicas, e como fatores secundários o econômico, o político e o cultural.

Esta comunicação tem como objetivo demonstrar que a decisão sobre o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTV-T), longe de qualquer determinismo tecnológico, é resultado de um processo de escolhas conscientes da sociedade, dentro de um contexto histórico-econômico, no qual grupos de maior influência e poder obtêm maior eficácia em suas proposições. Dito de outra forma, as opções tecnológicas decorrem de um processo de disputa, mas atendem a uma conformação social pré-existente. Processo semelhante ocorreu no surgimento da radiodifusão entre os séculos XIX e XX.

A idéia de que a sociedade é determinada pela tecnologia é refutada pelos Estudos Culturais, especialmente por Raymond Williams em um livro publicado ainda na década de 1970, Television (WILLIAMS, 2001). Da mesma forma que é combatida pela Sociologia Técnica, para qual o correto é afirmar que a sociedade contemporânea tem um conteúdo essencialmente tecnológico, mas, ao mesmo tempo e do mesmo modo, toda técnica tem sempre um “conteúdo social” (BENAKOUCHE, 2005, p.79).

A opção metodológica multidisciplinar repousa na reconhecida relevância dos Estudos Culturais para a reflexão da comunicação, com a atualização da Economia Política da Comunicação. A cultura como um conjunto de práticas e processos (ESCOSTEGUY, 2001), com perspectiva crítica e multidisciplinar parece indispensável a nossa análise. Além disso, com a consolidação das indústrias culturais, na segunda metade do século XX, a compreensão da comunicação não pode mais ser dissociada de sua dimensão econômica (MIÈGE, 2000).

Desenvolveremos uma pesquisa qualitativa que compara elementos similares e distintivos entre o surgimento da radiodifusão, conforme descrito por Raymond Williams, e a adesão pelo Brasil, ao padrão japonês ISDB-T, a fim de:

** elencar os agentes de disputa nos dois processos, bem como avaliar funções e interesses de cada um;

**realizar uma aproximação teórico-empírica entre os dois momentos históricos, que possa evidenciar a co-relação com a história dos usos sociais da tecnologia proposta por Raymond Williams;

A pesquisa selecionou notícias sobre a televisão digital, divulgadas pelo Boletim TelaVivanews, entre fevereiro e agosto de 2006. Do conjunto das notícias, as matérias foram subdivididas em seis categorias: governo, radiodifusores, indústria, setor telecomunicações, sociedade civil e consórcios.

O período escolhido reflete o momento final da discussão. O governo iniciou o ano de 2006, anunciando a urgência em decidir o modelo de televisão digital ainda em março (7/3/2006). A despeito do anúncio dos ministros participantes do Comitê de Desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, em abril, de que o governo já tinha informações suficientes para tomar a decisão, somente em 29 de junho de 2006, após adiar muitas vezes, o protocolo com o governo japonês foi assinado.

O ponto de partida para a pesquisa é o antecedente social das preferências tecnológicas. De acordo com Raymond Williams, a escolha de determinada ferramenta técnica na satisfação de uma necessidade social diz muito mais sobre a posição que tal “necessidade” ocupa na estrutura social, e do poder de influência de seus defensores, do que sobre a necessidade em si. A transformação de uma técnica em tecnologia social depende da capacidade de grupos sociais de influência em atrair investimentos e apoios oficiais para suas prioridades, em detrimento dos interesses de outros grupos (Williams, 2001, p. 19).

Círculo virtuoso

A partir de seu estudo sobre o desenvolvimento da radiodifusão entre os séculos 19 e 20, Raymond Williams afirma que as bases sociais para a disseminação técnica estavam dadas antes mesmo do desenvolvimento da tecnologia. Uma nova organização social, modificada pela expansão industrial, comercial e militar demandava novas formas de comunicação para as quais, as instituições tradicionais como Igreja e Escola não tinham respostas. A radiodifusão, descrita como uma tecnologia capaz de emitir mensagens de um único centro a milhares de receptores individuais, localizados a grandes distâncias, sem interatividade, viria ao encontro das necessidades de centralidade do poder e novas formas de comunicação.

O que subjaz, como essencial, na proposta de Raymond Williams (2001, p.21) é que as bases reais do desenvolvimento da radiodifusão no mundo precederam o surgimento da tecnologia. As explicações para esta proposição são reveladas por aspectos históricos. A industrialização do século 19 trouxe como benefício maior conforto aos lares, e estimulou a vida doméstica (privada). Por outro lado, a intensificação dos processos produtivos gerou, por conseqüência, maior dependência da vida privada em relação à esfera pública. O emprego é o melhor exemplo, pois, ao mesmo tempo em que passou a determinar as condições de sobrevivência da família estava condicionado à fatores externos, sobre os quais a família não detinha nenhum poder. Assim, a auto-suficiência da vida privada dependia de empregos e de liberdade política da esfera pública.

No outro extremo de nossa análise comparativa está a sociedade brasileira do início do século 21, integrada ao processo de inter-relação cultural e interdependência técnica e econômica. A globalização assenta-se em novo paradigma tecnológico, com mudanças substanciais para a sociedade e cultura modernas, que surgiu na década de 1970 e se consolidou na década de 1990. Na denominada Sociedade em Rede, ou Informacional (Castells, 1999) as novas tecnologias de informação têm o papel de reestruturar o capitalismo. Entre as três indústrias de maior destaque desta era estão: indústria financeira, de telecomunicações e da mídia (Harvey, 1992). Uma distinção das indústrias de tecnologia diz respeito à representação da informação, que passa a ser o próprio produto do processo produtivo, demandando grandes e constantes investimentos em desenvolvimento e pesquisa. Por outro lado, há um círculo virtuoso entre produtividade e eficiência que impulsiona uma economia planetária (Daleabre, 2006).

Em pé de igualdade

Na comunicação, desde a década de 1980 vem ocorrendo a chamada convergência de negócios, na qual grandes conglomerados transnacionais operam simultaneamente na produção de conteúdos/entretenimento e distribuição através dos novos meios de comunicação, entre os quais se destaca a internet. Neste cenário competitivo, a situação do Brasil não é favorável, pois o país não detém condições suficientes para o financiamento de tecnologia de ponta, e ainda, depende de investimentos externos (capitais voláteis e altas taxas de endividamento) para a manutenção da estabilidade econômica.

Na década de 1990, o Brasil passou por um movimento de privatização das telecomunicações, com profundas modificações na legislação. Atualmente os serviços de comunicação, rádio e televisão aberta, são regulamentados pelo Código Nacional de Telecomunicações, uma lei aprovada em 1963, e alterada por um decreto em 1967, que vigora até hoje. Em 2002, sob forte crise, as empresas pressionaram o governo por uma flexibilização no tocante à proibição de capital estrangeiro em empresas de comunicação. Daí a aprovação a Lei 10.610, como Projeto de Emenda Constitucional 36/2002, permitindo participação em até 30% de pessoas jurídicas no capital social de empresas jornalísticas e de radiodifusão.

Já a Lei Mínima nº 9.295 de julho de 1996 regulamentava as telecomunicações, permitindo a entrada de capital estrangeiro nas áreas de telefonia celular e das telecomunicações, no limite de 49%. Em 1997, passou a vigorar a Lei Geral das Telecomunicações nº 9.472, e foi criada a Agência Reguladora de Telecomunicações, a Anatel, que por sua vez, atribuiu ao Executivo o poder de estabelecer os limites à participação estrangeira em prestadora de serviços de telecomunicações. Na prática esta resolução significou uma elevação do percentual em até 100% (Capparelli; Lima, 2003, 28-40). A convergência, entretanto, tem colocado radiodifusores e empresas de telecomunicações em pé de igualdade na oferta de mobilidade, isto é, distribuição de vídeo por aparelhos móveis, chamados handsets, ao mesmo tempo em que esquentou a discussão sobre o direito à produção de conteúdos.

Entre interesses e atores

A partir dos aportes teóricos necessários à fundamentação, empreenderemos a análise comparativa propriamente dita. No surgimento da radiodifusão os principais atores, identificados por Raymond Williams eram: o Estado democrático e autoritário; os inventores que, em um trabalho individual, deram os primeiros passos para a radiodifusão e que mais tarde foram substituídos pelas corporações que assumiram as patentes de suas invenções; e a indústria, especialmente de rádio.

Em 2006, no debate sobre a transição digital brasileira foram identificados os seguintes atores:

** Poder Executivo, a quem cabe a decisão final. O processo vem sendo conduzido por um Comitê de Desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) que envolve ministros de várias áreas;

** Radiodifusores – grupos empresarias de rádio e televisão. Atualmente coexistem operadores comerciais e públicos de transmissão aberta (broadcast), além de operadores de televisão por assinatura em várias plataformas. Quando nos referimos aos “radiodifusores”, estaremos nomeando as redes de televisão aberta como Rede Globo, Rede Record, SBT, Bandeirantes e RedeTV, entre outras;

** Setor de telecomunicações – neste trabalho o termo designa as empresas de serviços de telecomunicações, especialmente de telefonia móvel que têm interesses diretos na digitalização a fim de oferecer formatos em vídeo para aparelhos móveis;

** Sociedade Civil – a participação da sociedade através da mobilização popular via fóruns que congregam entidades profissionais, organizações não governamentais, e ainda, algumas iniciativas do Ministério Público em salvaguardar o direito à informação do cidadão e da sociedade brasileira;

** Perceber o papel da indústria em plena era digital é uma tarefa difícil, pois ela está muito mais complexa. Nesta categoria enquadram-se os fabricantes de equipamentos para televisão, interessados na produção dos set-tops IP (caixas conversoras que transformam dados que trafegam nas redes de banda larga em sinal de televisão com qualidade equivalente à da TV aberta ou da TV por assinatura), que se subdividem em nacionais e multinacionais, com interesses distintos. Há também uma parcela significativa da indústria, entre os fabricantes de equipamentos móveis (handsets), muito próxima das empresas de telecomunicações.

** Consórcios – Na digitalização brasileira, participavam três consórcios: o ATSC (americano mas que pertence a uma empresa coreana), DVB (europeu), e ISDB-T (japonês) que oferecem tecnologia para transmissão de televisão digital com significativas diferenças, e que em contrapartida recebem, além de royalties, um mercado potencial de milhões de consumidores, limitados pelas especificações do produto.

Litígios cruzados

A despeito das aproximações pretendidas neste trabalho, percebemos claras diferenças na comparação dos agentes envolvidos. As razões históricas justificam, mas não se explicam por si só. As tecnologias existentes antes da radiodifusão não tinham a dimensão de veículos de massa, e suas aplicações eram normalmente restritas ao uso militar, ou sob um controle estrito, como o telégrafo. Outrossim, a produção de bens simbólicos é uma característica do século 20, a partir das indústrias culturais. A tecnologia de radiodifusão surgiu como um sistema pensado para transmissão e recepção de processos abstratos, sem preocupação com conteúdos. Estes, ao contrário, estão no centro da discussão da televisão digital. A produção de bens culturais tem no século 21 uma dimensão concreta, como elemento gerador de riqueza.

Outra diferenciação diz respeito ao engajamento social no século 19. Ainda que houvesse pressão para a participação social, como afirma Williams (2001), a sociedade civil, como concebemos, é um produto posterior, resultado do Estado democrático de direito.

Historicamente, o período decisivo para a consolidação da transmissão sonora foram os anos de 1920, por duas razões. Os interesses militares haviam acelerado o desenvolvimento do telégrafo, e as oportunidades econômicas para sua disseminação, bem como a necessidade social para seu uso. Em meados da década, havia muitos investimentos destinados a soluções técnicas, principalmente para projetar receptores domésticos, menores e mais simples. Sob o ponto de vista técnico, Estados Unidos e Europa disputavam uma possível liderança na fabricação, principalmente de componentes básicos de aplicação em receptores e transmissores. Foi um período marcado por litígios e licenças cruzadas.

Simpatias e preferências

De volta ao Brasil e ao século 21, percebemos que a negociação para escolha de um dos três consórcios teve semelhanças com situações típicas de negociações de varejo, característica do período de economia global. As qualidades técnicas de cada padrão figuravam apenas como um item, dentro do pacote de ofertas, que incluía adaptações sob demanda, direito a um assento em fóruns de desenvolvimento, e até promessa de instalação de fábricas, além de linhas de financiamento. O custo dos royalties em alguns casos chegou a ser apresentado como pechincha, literalmente: “Como os menores no mercado de varejo ao consumidor” (DVB, 8/3/2006). Transcrevemos o conteúdo da proposta feita pela coalizão que representa a DVB, que é muito parecida com as outras duas, a fim de demonstrar como as sutilezas foram dispensadas na negociação:

Cinco empresas européias (Nokia, Philips, Rohde & Schwarz, Siemens e STI) assumiram o compromisso de investir no Brasil, oferecendo ainda investimentos em P&D e/ou a produção de equipamentos e software no Brasil. Além disso, a Comissão Européia ofereceu a abertura de uma linha de crédito de até 400 milhões de Euros do Banco de Investimento Europeu para apoiar investimentos em infra-estruturas de TV digital, particularmente de emissoras da TV brasileira; o acesso preferencial ao mercado de equipamentos brasileiros de TV, com isenção de imposto de importação para equipamentos produzidos no Mercosul; participação de organizações brasileiras em projetos de P&D em conjunto com organizações européias. Uma carta enviada pela Comissão Européia anexa à carta da Coalizão Pró-DVB propõe ainda uma parceria na área de tecnologias de informação e comunicação com a União Européia. Além de estudos sobre TV digital, a proposta pode se estender à área de conteúdos audiovisuais (DVB, 8/3/2006).

A despeito da semelhança nas técnicas de persuasão, as três propostas divergem desde aspectos técnicos complexos, até o valor para o consumidor do set top IP. Vários estudos foram realizados ao longo dos últimos anos, promovendo testes para cada modelo. A possibilidade de eleger um como o melhor ou mais adequado não existe, considerando-se que não estão em jogo apenas questões tecnológicas. E na prática, as especificações de cada coalizão explicam também a predileção de cada grupo de interesse por um ou outro padrão, de acordo com seus próprios objetivos.

Os radiodifusores (broadcast) são simpáticos ao ISDB-T japonês porque assim poderão ocupar sua própria freqüência para distribuir conteúdo para aparelhos móveis, sem a interferência das empresas de telecomunicações. As teles, por sua vez, defendem o padrão DVB de TV digital, onde a separação das faixas para a transmissão móvel e fixo é quase um pré-requisito técnico.

Regulamentação simétrica

Em lados opostos estão as indústrias de equipamentos de recepção. Enquanto a de equipamentos para televisão tem um discurso de aparente neutralidade, os fabricantes de celulares estão engajados na disputa. A Siemens representa diretamente o padrão DVB no Brasil, e criticou abertamente a escolha do governo pelo padrão japonês. Já a coreana Samsung sutilmente incentiva o padrão ATSC. (Samsung, 7/3/2006).

O setor de telecomunicações foi o que mais cresceu a partir da década de 1990, especialmente pelos acessos à internet e pela telefonia móvel. Segundo dados de um estudo da União Internacional de Telecomunicações, órgão da ONU, o Brasil foi um dos sete países que mais evoluíram desde 2001. Existem cerca de 86 milhões de aparelhos celulares, e o país ocupa a 17ª posição entre as Américas, em relação ao acesso à internet. Isso explica porque a disputa mais acalorada, com fartas e constantes trocas de acusações ocorre entre radiodifusores e o setor de telecomunicações (Zero Hora, 2006).

Na opinião das teles, a convergência digital permite, cada vez mais, uma comunicação entre plataformas distintas, exigindo uma regulamentação simétrica, que ainda não existe no Brasil. Além disso, as teles reclamam que as leis regulam a infra-estrutura, e não os serviços. Empresas de setores distintos que teriam capacidade técnica para prestar serviços semelhantes, a partir da convergência, estão sujeitas a diferentes regulamentos e tributos (Assimetria, 21/2/2006).

Estremecimento

As teles revestem suas argumentações com o indefectível direito de escolha do consumidor, alegando que é o usuário que vai decidir pela compra ou não, de um celular que sintonize canais de televisão. Mero jogo de cena porque há concretamente uma tentativa de abocanhar o público cativo da televisão. De acordo com dados da própria Telemar , em 2006, a venda de handsets deve alcançar 110 milhões de aparelhos, o que significa ultrapassar a base instalada de televisores no Brasil (Mobilidade, 9/3/2006).

Presidentes de duas grandes empresas de telecomunicações defendiam o fim da excessiva regulamentação sobre a IPTV (Televisão por internet), usando como argumento a expansão da tecnologia VOIP (voz sobre internet), que se tornou uma realidade sem ser regulamentada (Mobilidade, 9/2/2006).

Os radiodifusores estremecem diante do que consideram uma intromissão das teles na sua área (Telemar, 8/3/2006), e denunciam a pressão para impedí-los de transmitir conteúdo móvel, dentro de sua própria faixa de freqüência. Se isso acontecesse as emissoras de televisão não poderiam distribuir sua programação para aparelhos móveis (handsets), sem uma operadora de telecomunicação. Por exemplo, assim como um usuário pode receber rádio FM em seu celular, poderia receber, o sinal de televisão. Esta aparente divergência tecnológica esconde também uma intenção não declarada, haja vista os dados apresentados acima sobre o potencial de consumo por celulares (Mobilidade, 9/2/2006).

A visão da indústria

Entre os radiodifusores, a Globo foi um dos que mais atacaram a tentativa do setor de telecomunicações em transmitir conteúdo móvel. O argumento utilizado, era que a discussão sobre a televisão digital deveria cumprir apenas a função de transição do analógico para o digital, sem alterar as características básicas do sistema brasileiro. Um serviço livre, gratuito e com programas no modelo broadcast para milhões de pessoas. Outro argumento para refutar a interferência, era de que as empresas de telecomunicações vinham fazendo sua transição digital sem nenhuma regulamentação, e sem nenhuma influência dos radiodifusores (Possebon, 7/3/2006).

Percebemos nos dois discursos intenções, declaradas e não-declaradas, algumas mais reais do que outras. Segundo Williams (2001), isso é freqüente nos processos sociais. Por isso os estudos sobre os efeitos ou resultados, neste caso sobre a digitalização da televisão brasileira, devem levar em consideração os agenciamentos com as intenções reais.

Analisando a questão sob o ponto de vista da indústria, fica evidente o quão complexa esta se tornou nos dias atuais. Pulverizada por múltiplas cadeias produtivas de bases tecnológicas distintas, a indústria não tem o mesmo destaque que teve no surgimento da radiodifusão. Naquela ocasião, o primeiro impulso para o desenvolvimento da tecnologia de transmissão de rádio veio da indústria de receptores, que determinou o consumo individual. E ainda formou as primeiras redes a partir das federações dos principais fabricantes que, como uma operação secundária, impulsionaram a produção de conteúdo com o objetivo de aumentar a venda de aparelhos. Esta atuação se repetiu na televisão. A RCA criou a NBC, ponderando que se a oferta de produção de programas fosse mais atrativa, aumentaria também a venda de aparelhos. Em 1948, o preço das ações da RCA, se elevou em 134%, graças às vendas de aparelhos (Briggs: Burke, 2004, p. 234).

Estado e limites

Peculiaridades à parte, a tradição da indústria brasileira é esperar do governo atitudes paternalistas. Em abril de 2006, depois de divulgadas algumas notícias sobre “um clima estranho” entre empresários nacionais de equipamentos de televisão e o governo, foi anunciando um plano industrial conjunto. Em uma reunião, envolvendo empresários e o Comitê SBTVD, foi estipulada uma pauta de ações para cada ministério. O Ministério do Desenvolvimento se responsabilizou pela implementação das diretrizes e planos de produção junto à indústria, e o Ministério da Ciência e Tecnologia se juntou aos fabricantes nacionais na integração das pesquisas e tecnologias dos consórcios que trabalharam no Sistema Brasileiro de TV Digital (Empresários, 27/3/2006). Embora a indústria se manifeste aparentemente neutra, seu interesse claro é por uma política de produção que lhe garanta vantagens para a transição. Países que já implantaram os novos sistemas de transmissão estão enfrentando dificuldades para fazer a televisão digital se tornar realidade de mercado.

O ambiente político do século 20 era bastante diferente do atual. Naquele momento, decisões do Estado sobre a radiodifusão se rivalizavam entre a adoção de modelos de financiamento público ou comercial. O sistema adotado respondia, na maior parte das vezes, às características democráticas ou autoritárias de cada país, ou a escolha de um modelo econômico para desenvolver a nova atividade.

Nos Estados Unidos, o princípio da livre propriedade era tão forte que limitou o poder do Estado, a fim de garantir a competição de mercado (Williams, 2001, p. 27). A televisão pública só se desenvolveu depois de consolidada a emissão comercial.

Críticas ao governo

Na Grã-Bretanha, o Estado mantinha boas relações com os interesses capitalistas, mas a opção foi pelo licenciamento e monopólio da programação. Em 1922 um consórcio de fabricantes foi formado para oferecer programação, sob controle dos Correios e do Governo, dando origem à British Broadcasting Company (BBC).

Durante a Guerra Fria, o desenvolvimento da radiodifusão no mundo seguiu os interesses da polarização política, com sobreposição entre os interesses do Estado e os laços entre a indústria eletrônica e as corporações de radiodifusão, especialmente nos Estados Unidos. Chegando a ser impossível separar em categorias distintas, eletrônica militar, agências governamentais preocupadas com informação e propaganda, e as mais visíveis instituições “comerciais” da radiodifusão (Williams, 2001, p. 40). Em 2006, no cenário geopolítico internacional não há mais ameaças comunistas, e por isso os investimentos de antes já não fazem sentido. As relações entre os consórcios e o governo brasileiro se estabeleceram em parâmetros comerciais.

Durante os primeiros seis meses de 2006, em que a adoção de um novo padrão de televisão com transmissão digital ganhou atenção da mídia, o governo foi criticado por vários setores, desde representantes da sociedade civil, das teles e da indústria de equipamentos para televisão.

Reivindicações

Uma crítica comum foi a pressa em tomar uma decisão, que traz tantas repercussões futuras em um ano eleitoral. Outra foi a falta de transparência no processo. A divulgação do relatório de integração elaborado pelo Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), sobre o Sistema Brasileiro de TV Digital, que deveria balizar a tomada de decisão provocou cenas que beiraram o cômico. No auge da crise, o ministro das Comunicações, Hélio Costa afirmou que: “O relatório foi feito para o presidente da República e somente ele poderá decidir quando divulgar, e se divulgar” (“O ministro”, 15/2/2006).

Dias depois, o ministro alegou que o Ministério das Comunicações encontrava dificuldades para divulgar o conjunto de relatórios técnicos porque estes estavam repletos de informações sigilosas, referentes à patentes e segredos industriais, que poderiam criar problemas de propriedade intelectual (Zanatta, 13/3/2006).

A primeira afirmação do ministro, entretanto, evidencia a postura autoritária do governo e corrobora a crítica do Ministério Público Federal, que chegou a criar um Grupo de Trabalho de Comunicação Social da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a realizar audiências públicas. A iniciativa do MPF foi motivada especialmente pela dificuldade em obter informações do governo, e pela falta de definições normativas (Ministério…, 24 Abr. 2006)

Da mesma opinião partilhava o próprio Comitê Consultivo, criado por decreto presidencial, com a atribuição de propor ações e diretrizes fundamentais, relativas ao Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD). Em carta encaminhada ao presidente da República em março, o Comitê, embora sem a adesão da totalidade dos membros, reivindicava uma consulta pública sobre a proposta de Modelo de Referência, que deveria ser coordenada pelo Conselho de Desenvolvimento do SBTVD, bem como audiências públicas, a fim de ouvir representantes da sociedade civil (7/3/2006).

Análise dissociada

Algumas atitudes realçaram a tentativa do governo em capitalizar vantagens econômicas e políticas imediatas, como foi a espera pela decisão oficial. De acordo com os boletins analisados, já em março a decisão estava tomada. A notícia da escolha do padrão japonês chegou a ser divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo e imediatamente negada pela Casa Civil e pela presidência da República (Possebon, 8/3/2006). Mas somente no dia 29 de junho o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto para implementação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre no país, com as normas de transição do sistema analógico para o digital (Zanatta, 29 Jun. 2006).

O longo intervalo entre março e junho acirrou os ânimos entre os possíveis não contemplados. Neste ínterim houve denúncias de matérias plantadas na imprensa contra um e outro, discussões públicas e acusações sobre qualidades técnicas, tanto entre radiodifusores e teles, como entre consórcios contra consórcios. Enquanto o governo, em silêncio, parecia esperar que o desespero levasse os grupos proponentes, supostamente preteridos, a melhorarem suas propostas. E, talvez, acreditasse que o dileto japonês fizesse uma contrapartida à altura que justificasse publicamente a escolha.

Cenas semelhantes devem ter sido observadas por Raymond Williams, pois ele pontua que questões práticas, técnicas e/ou econômicas e os princípios como pluralidade e interesses sociais da comunicação que organizam as escolhas tecnológicas não podem ser analisados de forma dissociada.

Considerações finais

O acompanhamento do debate, de forma metódica, nos leva a distinguir os diferentes jogadores e suas posições. Ficam claras as semelhanças com o surgimento da radiodifusão. Como vimos, a transição para a televisão digital tem implicações maiores dos que aquela, dita tecnológica, e envolvem especialmente aspectos econômicos, mas também culturais e sociais.

Na análise dos agenciamentos podemos dizer que o cenário atual é mais complexo. A indústria do século 21 é baseada em tecnologias de informação e comunicação, o que se revela no aumento de agentes com interesses distintos dentro da mesma categoria. A tentativa em defender interesses públicos, através de representantes da sociedade civil, também fica mais evidente na atualidade.

No caso brasileiro o governo atuou como um conciliador de projetos econômicos. No entanto, não podemos atribuir o fato à fragilização que o Estado vem sofrendo nos últimos 30 anos. A peculiaridade da atuação brasileira tem características próprias e demandam maiores dados para uma possível conclusão. Contudo a pressa em definir o sistema sem uma discussão ampla com a sociedade, crítica feita pela maioria dos agentes, leva-nos a considerar que a despeito de um discurso em defesa dos interesses nacionais, está em jogo o projeto de reeleição do presidente Lula. Uma das justificativas mais propaladas para a opção pelo padrão ISDB-T foi o anúncio de que empresas de semicondutores japonesas se instalariam no Brasil. Entretanto, o próprio governo japonês deixou claro que não tem poder de intervir nas decisões dos empresários daquele país.

Tom agressivo

Entre os agentes, a comunidade científica mostrou o menor poder de influência. O desejo de pesquisadores e universidades de desenvolver um padrão brasileiro independente, que chegou a ser cogitado, não se concretizou.

O grupo de influência vitorioso neste processo foi o dos radiodifusores. Eles garantiram a distribuição de conteúdos dentro de suas próprias freqüências, a despeito das pressões das teles. Já para a indústria de eletroeletrônicos, a questão passa menos pela escolha do sistema adotado, e mais sobre os incentivos e garantias de uma política de investimentos para o setor.

As semelhanças entre os dois processos são significativas, confirmando a perspectiva de Raymond Williams (2001). O tom agressivo das disputas entre os grupos de interesse confirma a pertinência da Economia Política da Comunicação para entender a extensão econômica da comunicação. Percebemos a intervenção desta ao longo de toda a análise sobre o processo, tanto na briga pela reserva de mercado pelos radiodifusores, quanto na tentativa das teles e dos próprios consórcios em morder uma fatia maior do mercado consumidor. E, até mesmo, na linha tênue entre interesses públicos e privados, que caracterizou a atuação do governo brasileiro.

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Mestre em História Cultural pela UFSC e doutoranda em Comunicação Social da PUC-RS