Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A radiodifusão brasileira deve ser laica

O presidente Lula afirmou recentemente que o Estado brasileiro é laico e que a futura rede pública de TV também o será. Mas não é exatamente assim que se desenha o quadro da radiodifusão brasileira. A religião está cada vez mais presente na mídia eletrônica: são 34 emissoras de TV e 1.200 de rádio sob controle de organizações católicas e evangélicas. Ambas disputam fiéis e lutam por espaços na audiência e no mercado publicitário, utilizando-se para isso de concessões públicas. Além disso, as profissões de fé não se bicam: no rescaldo da visita do papa Bento 16 ao Brasil, a Igreja Universal do Reino de Deus, que controla a Rede Record, acusou a TV Globo de porta-voz dos católicos. O diretor de comunicação da Globo, Luis Erlanger, respondeu que a atenção dada à visita do papa foi proporcional à importância do fato.


O Observatório recebeu, no Rio, o monsenhor Sérgio Costa Couto, da arquidiocese do Rio de Janeiro e vigário-geral dos Católicos de Ritos Orientais, e o pastor Nilson do Amaral Fanini, da Igreja Batista; o jornalista Gabriel Priolli, em São Paulo; e a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), em Brasília.


No editorial que abre o programa [ver íntegra abaixo], Alberto Dines referiu a Operação Navalha e disse caber à mídia ajudar no combate à corrupção nos governos. Citou a declaração do presidente da República em defesa do Estado laico e avaliou ainda existir muito a ser feito no sentido da laicização da radiodifusão brasileira.


A Igreja Católica tem 3 redes de TV no país, além de 215 emissoras de rádios e 14 concessões prestes a ser efetivadas. Um de seus projetos no momento é aumentar o alcance da TV Aparecida para mais 12 praças. O projeto católico de utilizar a mídia para tratar de questões religiosas teve impulso na década de 1990, quando a igreja precisou fazer frente ao crescimento das confissões evangélicas. No campo da televisão, a Igreja Universal do Reino de Deus detém 22 emissoras, 19 das quais vinculadas à Rede Record.


Em entrevista gravada, o editorialista do jornal O Globo, Luiz Paulo Horta, comentou que a igreja católica está apenas engatinhando quando se trata de divulgação através da mídia. Neste quesito, ‘a igreja evangélica avançou muito mais’, disse. Antes da TV, era o rádio a fazer o papel de púlpito eletrônico e ainda hoje essa mídia tem importância capital na comunicação religiosa no país. A crescente relevância dos canais de radiodifusão sob controle de igrejas gerou parcerias entre políticos e religiosos – a chamada ‘bancada da fé’, que tem atuação influente no processo de liberação de concessões de emissoras de rádio e TV.


Direito das minorias


Dines apresentou a deputada Luiza Erundina – também presidente da subcomissão especial da Câmara dos Deputados que analisa as mudanças nas normas de apreciação de outorga e renovação de concessões de radiodifusão – e pediu que ela explicasse como funcionava o processo de concessões e como atua a subcomissão que dirige.


Erundina afirmou que as concessões têm relação direta com o sistema político, já que o acesso à informação deve ser garantido pelo governo e pelo Estado. Por isso, os métodos de outorga de canais devem ser democráticos e todos os procedimentos apresentados claramente à população. Erundina disse que não há fiscalização sobre isso, da mesma forma como ninguém fiscaliza a obrigatoriedade constitucional de difusão plural de opiniões e culturas. De outra parte, além da ocorrência de casos variados de propriedade cruzada, há uma enorme concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos. A deputada resumiu o problema numa frase: ‘Há um vazio regulatório’. E isto é grave.


Dines pediu ao monsenhor Sérgio Costa para ‘esquecer um pouco a teologia e nos fixar na filosofia’, e perguntou se fazia sentido numa sociedade moderna a existência de TVs de cunho religioso – o que comparou a um retorno ao Estado teocrático pré-revolução francesa.


O monsenhor disse que perigoso de fato é o discurso em favor do controle de conteúdos. ‘Antes de ficar assustado como padre, fico assustado como cidadão’, afirmou. Disse que se a mídia fosse apenas religiosa, boa parte dos programas hoje exibidos não estaria no ar. Explicou que as concessões para a igreja católica são poucas, e para TVs de pequeno porte. Afirmou ainda que ninguém quer a volta de um Estado amarrado à religião, ‘até porque o Estado usou muito mais a religião do que o inverso’. ‘Queremos é a independência’, disse.


O apresentador do programa disse existir a necessidade de o Estado ser laico, mas que em contrapartida há uma boa quantidade de concessões de radiodifusão sob controle de grupos religiosos – católicos e evangélicos, principalmente. Dines pediu a Nilson do Amaral uma avaliação dessa situação.


O pastor disse que as emissoras e os programas ‘contribuem de uma forma espetacular para a nação’ em se tratando de moral, e disse que o homem é pecador e precisa desse tipo de contribuição. ‘São esses programas religiosos que aproximam o homem de Deus e de Jesus Cristo’, disse.


Dines pediu a Gabriel Priolli uma análise sobre a manifestação do pastor e sobre da questão do laicismo no Estado brasileiro.


Priolli explicou que a mídia religiosa é um ponto complexo e que, como lembrou a deputada Erundina, é preciso critérios mais claros em relação às concessões. A solução, para ele, seria criar nichos de transmissão que dessem espaço para todos os tipos de opinião. Entretanto, o que vem acontecendo, segundo Priolli, é o inchaço de emissoras influenciadas por determinadas religiões. ‘Isso é um problema se estamos falando num Estado laico, onde todos temos direitos iguais’, avisou.


O apresentador lembrou que quando a mídia impressa era a mais influente, era normal ter uma página nos fins de semana dedica à opinião de uma figura religiosa da alta hierarquia. Dines comentou que isso era permitido porque na mídia impressa não há participação do governo. No caso das emissoras de rádio e TV, o que existe ali é uma concessão pública. ‘Ela é pública por natureza e, mesmo fazendo concessões a dois grupos, está prejudicando outras minorias.’


Debate restrito


Alberto Dines pediu que Luíza Erundina explicasse como é possível evitar essas discrepâncias, passíveis de suscitar futuros conflitos. A deputada disse que as concessões públicas devem estar a serviço da sociedade e não de determinados grupos. ‘Inclusive a própria Constituição estabelece que elas devem ter um caráter educativo’, lembrou. Para Erundina, o governo e a sociedade devem estabelecer uma política de democratização dos meios de comunicação de massa.


O apresentador perguntou ao pastor Nilson Fanini se seria possível um programa na TV Record que falasse do movimento batista tradicional. Nilson afirmou que já houve um programa com essas características na emissora. [Em 1988, Fanini comprou a falida TV Rio, canal 13, em seguida a vendeu para a Universal do Reino de Deus, do pastor Edir Macedo, que já controlava a Record de São Paulo. A ex-TV Rio se tornou a Rede Record Rio.]


Dines questionou o monsenhor Sérgio Costa: ‘É possível ser pluralista dentro de um canal que tem compromisso em seguir certos paradigmas e normas [religiosos]?’. O prelado disse que os canais não só devem ter um compromisso como também um perfil. ‘Aí, vai assistir quem quiser. Hoje temos uma variedade muito maior do que há 30 anos’, disse. ‘É possível existir pluralismo democrático dentro do respeito de uns pelos outros, isso é democrático. Mas é preciso tomar cuidado com as palavras laico e laicismo. Laicismo é a patologia do laico’, observou.


O apresentador rebateu dizendo que poderia fazer uma análise de ‘laico’ e ‘laicismo’ do ponto de vista etimológico, que o laicismo é a prática de uma atitude laica, ‘mas o problema não é etimológico, é político. A mídia é leiga’, afirmou. E comentou que a Opus Dei, uma ramificação da igreja católica, tem grande influência na mídia ibero-americana. Explicou que, com a concentração de controle na mídia, a organização interfere de maneira muito intensa no Brasil. Dines pediu a Gabriel Priolli que dedicasse um minuto a comentar esse aspecto.


Priolli disse ver a Opus Dei da mesma maneira que as demais ordens religiosas, neste caso com um poder maior, mas preferiu enfatizar o problema da democracia no debate religioso: ‘O problema não é tanto as igrejas dominarem canais de TV, o problema é restringirem o próprio debate religioso’. Exemplo disso, para ele, é o tratamento que recebem, nos canais evangélicos, religiões de matriz africana como candomblé e umbanda, freqüentemente insultadas.


Mais diversidade


No penúltimo bloco do programa, um telespectador de Linhares (ES) perguntou a Gabriel Priolli: ‘Na sua opinião, qual o principal objetivo da religião na mídia? Os ganhos religiosos, sociais ou políticos?’. O jornalista respondeu que era um pouco de tudo isso, mas, sobretudo, os religiosos, porque o objetivo é conquistar o maior número possível de pessoas. ‘O que é completamente legítimo’, sublinhou. ‘O problema é quando falta democracia no debate inter-religioso.’ Priolli disse ainda que as religiões deveriam debater mais entre si porque alguns dos principais problemas da humanidade de hoje passam pela questão religiosa.


De Curitiba (PR) foi perguntado a Alberto Dines sobre a postura adotada pela mídia durante a cobertura da visita do papa Bento 16 ao Brasil. ‘Acusar a Globo por ter dado um tempo exagerado ou a Record por ter dado menos tempo não faz sentido’, disse. ‘Isso está ligado ao faro jornalístico e à segmentação de público.’ Dines disse que sua preocupação é com a ideologia do Estado brasileiro, que é laica – condição esta recentemente reafirmada de maneira enfática pelo presidente da República.


O último bloco foi dedicado aos comentários finais dos convidados. Luíza Erundina reafirmou que os meios de comunicação de massa devem estar à disposição da sociedade e não de determinados grupos. Monsenhor Costa Couto elogiou a democracia do programa e disse que era importante ter um número maior de canais. O pastor Nilson do Amaral Fanini pediu a Deus que abençoe a todos os telespectadores. E Gabriel Priolli disse que o que a TV brasileira precisa é de diversidade, em todos os campos.


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A urgência de uma radiodifusão leiga


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 417, exibido em 22/5/2007


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Estamos novamente submetidos ao vexame da corrupção e da fraude nos mais altos escalões da República. Desta vez, as denúncias não partiram da imprensa, mas vieram do próprio governo, por intermédio da Polícia Federal. Nesta Operação Navalha, a imprensa não deve resignar-se a um papel passivo. Se não pode investigar com a mesma eficácia dos federais, cabe a ela pressionar o Legislativo a abandonar a atitude fisiológica e corporativa para empenhar-se urgentemente no debate sobre a reforma política. Alguém precisa dar um murro na mesa e dizer ‘basta!’ – e este alguém deve ser a imprensa.


O presidente Lula foi enfático: o Estado brasileiro é um Estado laico. A proclamação foi elogiada pela situação e pela oposição. Mas não é bem assim: num Estado efetivamente laico nossos tribunais não deveriam exibir símbolos religiosos, eles denotam preferências em matéria de fé, incompatíveis com a independência da magistratura.


Dias depois, o presidente Lula retomou a questão do laicismo do Estado brasileiro ao afirmar que a futura rede pública de televisão será leiga, secular. É também uma boa notícia e uma admirável intenção. Mas não basta que a futura rede pública seja laica. É preciso não esquecer que todo o sistema de radiodifusão no Brasil é teoricamente público, já que as emissoras funcionam no sistema de concessões do Estado a empresas privadas ou entidades.


Contra cisões fatricidas


Se a futura TV pública vai ser leiga, por que razão não devemos estender o conceito de secularismo a todas as concessões para radiodifusão? As 34 emissoras de TV reconhecidamente religiosas – protestantes ou católicas – por acaso, não confrontam o laicismo preconizado em tão boa hora pelo presidente da República?


Há alguns anos tivemos uma guerra santa na TV brasileira quando um pastor da Rede Record ofendeu as devoções dos telespectadores católicos. A Rede Globo reagiu e, de repente, quase voltamos aos tempos das cruzadas. Agora, em função da cobertura da visita de Bento 16, esboça-se uma nova guerrilha religiosa entre os mesmos cruzados: a Globo e a Record. Desta vez a Igreja Universal do Reino de Deus vai contar com a ajuda da TV Guaíba do Rio Grande do Sul e provavelmente da TV Alterosa, de Minas Gerais.


A questão do laicismo do Estado brasileiro ganha agora um sentido de urgência. Deixou a esfera da ciência política e da teoria democrática para converter-se numa convocação contra cisões fratricidas que, alimentadas pelas religiões, só tendem a se agravar. É preciso não esquecer o potencial de destruição dos modernos arsenais da comunicação de massa.