Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Aperta o cerco contra as rádios comunitárias

Em mais uma atitude repressiva e de sufocamento às iniciativas de democratização da comunicação, a Rádio Heliópolis, símbolo da radiofusão comunitária, foi fechada numa ação conjunta entre a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e a Polícia Federal na manhã do dia 20 de julho. O autoritarismo com que os veículos comunitários têm sido tratados se tornou mais nítido com o aumento dessa prática no governo Lula. Apesar disso, a imprensa permanece inerte diante da situação e perde a oportunidade de tornar pública uma discussão que deveria ser pauta constante de sua cobertura.


Cortada pela Estrada das Lágrimas, a maior favela de São Paulo, Heliópolis, localizada na Zona Sul da cidade, é também a comunidade paulistana mais bem-organizada no que diz respeito à participação de seus moradores e à busca por moradia mais digna. A área que hoje compreende um milhão de metros quadrados começou a ser ocupada na década de 1970, quando 150 famílias foram removidas da Favela de Vila Prudente, e hoje é tida como a segunda maior favela do Brasil e da América Latina.


Uma das grandes conquistas de Heliópolis foi a União de Núcleos, Associações e Sociedades de Heliópolis e São João Clímaco (Unas). Ao centralizar as lideranças da comunidade, a Unas foi responsável por diversos projetos sociais com crianças e adolescentes e por lutar pelo desenvolvimento da região. A rádio comunitária é um exemplo disso, já que sempre objetivou conscientizar e mobilizar a população. Além da programação musical, a emissora promovia atividades, discutia os problemas da região e trazia informações úteis aos moradores, como programas do posto de saúde, abertura de vagas da escola e até uma seção que alertava para documentos esquecidos e crianças que se perderam dos pais.


Triste panorama


A Rádio Heliópolis se tornou referência para outras rádios comunitárias ao integrar a luta em prol de todos os veículos radiofônicos de mesma natureza e com objetivos semelhantes. Ou seja, estimular a cidadania e dar voz às pessoas da localidade. Em contrapartida, o artigo que deveria garantir o direito à expressão é anulado pela lei que criminaliza a atividade comunitária e remonta aos tempos do regime militar brasileiro. Foi amparada nessa lei que a Polícia Federal fechou cerca de 7.600 rádios entre 2002 e 2003. Um número totalmente desproporcional se comparado ao fechamento das quase 2.200 emissoras de 1998 a 2002 – um período mais longo.


A outra contradição dessa história está no fato de que a repressão às rádios comunitárias por parte da Polícia Federal e dos órgãos de fiscalização se deu justamente depois da criação de dois grupos interministeriais instituídos no governo Lula para solucionar os muitos processos acumulados de legalização de emissoras. A truculência das ações contra as rádios já era comum na gestão de Fernando Henrique Cardoso, mas se intensificou no governo seguinte. Uma explicação possível para o aumento da repressão da Anatel e da PF é a reclamação das rádios comerciais legalizadas de perda de audiência para as emissoras comunitárias ilegais.


É plausível afirmar que o caso da Rádio Heliópolis não representa uma ação isolada, mas parte de um movimento, prova de um sintoma. Mais: que os mecanismos que garantem a legalidade não garantem o exercício da cidadania. E que o fechamento da rádio criada há 14 anos para informar as pessoas de seus direitos, da rádio que alcança regiões como São Caetano, São João Climaco, Jardim Patente, Vila Vera, Moinho Velho, Vila Alpina, Vila Prudente, Sacomã, Ipiranga e da rádio que se localiza na comunidade cortada pela Estrada das Lágrimas integra um triste panorama antidemocrático.


***


Rádio Heliópolis é fechada em São Paulo


Reproduzido do Boletim Prometeus, do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs), 11/8/2006


Enquanto os corredores do Ministério das Comunicações vivem abarrotados de lobistas, representantes dos radiodifusores, as rádios comunitárias e seus dirigentes continuam sendo tratados como ‘foras da lei’: os transmissores são lacrados, os equipamentos apreendidos e seus coordenadores são processados criminalmente como se fossem bandidos.


O mais recente capítulo dessa triste e lamentável história foi escrito no dia 20 de julho, na comunidade de Heliópolis, a maior favela de São Paulo, com 125 mil habitantes. Agentes da Polícia Federal e da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) lacraram a Rádio Comunitária de Heliópolis respaldados por uma decisão do juiz Hélio Egydio de Matos Nogueira, da 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo. Na operação foram apreendidos e levados para a sede da Polícia Federal uma mesa de som, dois microfones, uma CPU, um gerador de estéreo e um transmissor. Além disso, foi aberto processo criminal contra João Miranda e Geronimo Barbosa, dirigentes da UNAS (União de Núcleos Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco) e responsáveis pela rádio.


Fundada pela UNAS em 1992, com o objetivo de transmitir informações básicas de cidadania à comunidade, a Rádio Heliópolis é uma referência cultural e política para a população. Além de levar divertimento, a rádio transmite informações sobre os serviços públicos de saúde, educação e cultura.


A Associação Mundial de Rádios Comunitárias divulgou uma Carta de Repúdio e Solidariedade onde critica a decisão do Poder Judiciário: ‘Em um momento em que a capital do Estado de São Paulo é assolada por uma onda de violência urbana, nos espanta perceber que o Poder Judiciário envida esforços e recursos para reprimir uma iniciativa comunitária que, sobretudo, visa fortalecer o tecido social por meio da difusão de valores como a solidariedade e a justiça’.


Um governo em contradição


Manter essa atmosfera de irregularidade das rádios comunitárias, tornando-as mais vulneráveis à ação do poder público – sobretudo da Justiça, da fiscalização da agência reguladora e da Polícia Federal –, tem sido a política do Ministério das Comunicações. Cerca de 8 mil processos para implantação de rádios estão parados no Ministério há vários anos. A Rádio Heliópolis, por exemplo, encaminhou há 7 anos a documentação necessária para concessão de outorga ao Ministério.


Contraditoriamente, o mesmo governo que adota essa política no Ministério das Comunicações escolheu em 2005, numa parceria entre os ministérios da Cultura e do Trabalho e Emprego, a Rádio Heliópolis como um dos ‘Pontos de Cultura’ integrantes do programa Cultura Viva. Por meio deste programa, direcionado a instituições que promovam ações para o desenvolvimento social de sua região, o governo federal liberou R$ 150 mil para que a rádio adquirisse equipamentos, como computadores e gravadores digitais, com o objetivo de viabilizar o treinamento de 50 jovens de 16 a 25 anos em comunicação popular.


A escolha da Rádio Heliópolis como ‘Ponto de Cultura’ inaugurou o programa em São Paulo, em solenidade que contou com a presença do presidente Lula e do ministro da Cultura Gilberto Gil.


‘Parte dos equipamentos que a Polícia Federal levou foi comprada com o dinheiro do projeto Pontos de Cultura’, declarou João Miranda, presidente da UNAS e responsável pela rádio, em entrevista à Agencia Brasil.


Mobilização em defesa da Rádio Heliópolis


A reação ao fechamento da Rádio Heliópolis foi rápida. Uma rede de apoio a rádio foi articulada pela OBORÉ – escritório paulista da Associação Mundial das Rádios Comunitárias (AMARC) –, reunindo entidades e parlamentares. A defesa jurídica da Heliópolis e de seus dirigentes coube ao Escritório Modelo da Faculdade de Direito da PUC-SP.


No dia 22 de julho, sábado, a UNAS organizou um encontro em defesa da Rádio Heliópolis. Segundo relato divulgado pela OBORÉ, ‘a quadra de esportes da UNAS estava lotada pelos comunicadores da rádio, por representantes dos diversos núcleos da UNAS e de inúmeras entidades e associações universitárias e comunitárias da cidade’.


A manifestação também ganhou apoio parlamentar com a presença do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de São Paulo, vereador Beto Custódio, do representante do gabinete do deputado federal José Eduardo Cardozo. Também manifestou seu apoio o senador Eduardo Suplicy, em telefonema ao presidente da UNAS João Miranda.


Heliópolis pode voltar como emissora experimental


Nesse encontro foi aprovada uma proposta, negociada pela AMARC com o Ministério das Comunicações e a Anatel, para que a Rádio Heliópolis pudesse voltar a funcionar.


Pela proposta a Heliópolis faria um convênio com a Universidade Metodista de São Bernardo do Campo e ganharia o status de emissora experimental. A vinculação à universidade faria com que a Rádio Heliópolis recebesse uma permissão de funcionamento de ‘serviços especiais para fins científicos e experimentais’ pelo prazo de seis meses, renováveis por mais seis.


Segundo noticiou a Agência Carta Maior, essa proposta voltou a ser discutida em uma reunião no dia 26 de julho, entre os representantes da rádio, da Anatel, da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), da Oboré e da Universidade Metodista (Verena Glass/Agência Carta Maior).


Rádio Alternativa de Mossoró também sofre perseguição


No Rio Grande do Norte a realidade não é muito diferente para as rádios comunitárias. A Rádio Alternativa que funciona no município de Mossoró vem sofrendo perseguições constantes da Anatel.


A principal rádio comunitária da região, que completou 10 anos em março, foi fechada diversas vezes, e seus coordenadores também estão sendo processados. Segundo Ibero Hipólito, coordenador da Alternativa, ‘A emissora já foi lacrada 6 vezes e teve os equipamentos apreendidos duas vezes – outubro do ano passado e 27 de abril deste ano. Desta última vez ficamos ‘detidos’ prestando depoimento no inquérito que foi instalado. Passamos maio e junho com a emissora fora do ar (…) quarta-feira passada (19 de julho) a ANATEL esteve nos ‘cercando de novo’. Só que desta vez tiramos a rádio do ar a tempo. A qualquer momento temos a convicção que podemos ser fechados novamente’.


O coordenador da rádio informou também que o pedido de outorga foi encaminhado pela primeira vez em novembro de 1998. ‘Ano passado saiu um edital de seleção de radcom para Mossoró. Cumprimos com todos os requisitos legais’.


Assim como a Rádio Heliópolis, a Alternativa também é sede de um projeto do governo federal: o Projeto Casa Brasil, que abriga um telecentro comunitário e uma biblioteca – projeto inclusão digital do ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação) vinculado à Casa Civil da Presidência da República.


Assista o videodocumentário sobre o fechamento da Rádio Heliópolis


O projeto Cala-boca já morreu (vinculado à organização não-govenamental GENS – Serviços Educacionais) produziu um videodocumentário sobre o fechamento da Rádio Heliópolis que pode de assistido ou baixado aqui.


Os desdobramentos do caso da Rádio Heliópolis podem ser acompanhados pelo site da Oboré – escritório paulista da AMARC. Manifestações de solidariedade podem ser enviadas para radioheliopolisfm@yahoo.com.br com cópia para esc.modelo@puc.sp.br e unass@uol.com.br [Oboré, Agência Brasil / Radiobrás e Agência Carta Maior]

******

Estudante de Jornalismo, repórter do veículo impresso independente Catarse e do quadro Diálogos Catárticos (Rádio Gazeta), São Paulo