Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Babau, teoria da recepção

O título deste artigo também poderia ser ‘Nunca a imprensa foi tão moderna’, mas optei por gosto e espírito carnavalesco pela interjeição familiar `babau´, que quer dizer `acabou-se´, `era uma vez´, há muito aposentada pela dinâmica das representações do dia a dia pós-moderno.

A razão de tudo o que será dito daqui em diante se deve à discussão da página móvel LOG, de O Globo, sobre se deveria ou não ser proibido o carro da escola de samba Viradouro que mostra o holocausto na figuração de corpos mutilados e Hitler sambando nesse cenário de violência.

Dentro do espírito democrático das oportunidades na desigualdade, lá estava o espaço para o contraditório. Uns se diziam a favor, outros contra e, ainda, um terceiro lugar pedia reflexão amadurecida, livre do sentimento primitivo que opõe os hooligans, por exemplo. De todas as falas, as que me chamaram atenção foram as contrárias ao que os autores denominavam de censura.

Como nós jornalistas trazemos na bagagem liberal a informação de que a censura é a mais execrável aporia à liberdade de expressão, as ponderações em torno do tema envolvendo o carro alegórico parecem se colocar como mais um passo avançado nas mediações entre cultura e sociedade. Entretanto, minha recepção não vê assim. Identifiquei na grita o compromisso moderno com os valores burgueses que consolidaram a imprensa no século 19 e a incluíram definitivamente na lista das instituições ideológicas desse modo de vida já composto pelos cafés, tratados sociais e estéticos, sermões, traduções de clássicos, manuais de etiqueta e de moral, como observa o crítico inglês Terry Eagleton.

Com isso noto, mais uma vez, a tentativa de neutralizar conflito por meio de ação comunicativa ou, em outras palavras, de insistir na inutilidade de resolver uma incompatibilidade intrínseca por meio de uma idéia que não encontra sustentação no real. A realidade da hegemonia burguesa vai sempre colocar limite na exposição da dor ou no amor que ela julgar imprópria para a consideração pública. O imaginário sobre o Holocausto já está definitiva e modernamente organizado e pronto. Fora dele, só o dilúvio.

Tempos modernos

Um dos textos chega a criar a tese do ‘princípio justifica o fim’, ou seja: comparando o holocausto à escravidão, diz que a violência é diferente porque o primeiro tinha por objetivo exterminar uma raça, e o segundo, não. Efetivamente, não deixa de ser verdade.Quanto mais escravos nascessem, mais mão-de-obra. No Brasil, a Lei do Ventre Livre só foi promulgada em fins do século 18. O que interessa observar nessa comparação é a presença da censura justificada, sem aparência de aprovação.

A pós-modernidade tem a pretensão de romper o centro das decisões e fazer emergir a heterogeneidade de pensamentos, palavras e obras, a partir da troca igual e comutativa entre emissores e receptores. Nessa oportunidade, a imprensa moderna adotou o prefixo e passou a fazer o público acreditar no `Você decide´. Além disso, circunscreveu a discussão séria sobre censura nesse restrito campo da interatividade superficial.

Resumo da ópera: na hora agá, tome de censura democrática e babau, recepção. Felizmente. Quando Jauss criou a teoria da recepção, junto com Iser, pensava na literatura e na arte, espaços de liberdade de interpretação.Nada a ver, portanto, com a moderna indústria da mediação jornalística ocupada em afirmar e difundir os valores burgueses, longe de ser ‘o campo livre de compreensão dialogada’.

Mas, sonhar não custa nada, dizia o lindo enredo da Mocidade de um carnaval passado, embora se saiba que não é bem assim. Giordano Bruno perdeu a língua antes de ser queimado vivo e Galileu teve que abjurar da irrefutável realidade de que a Terra gira em torno do sol para não ter a fogueira também como destino. Porém, vamos acreditar que a imprensa burguesa quer realmente ser livre e sem censura para informar o que interessa e do modo esclarecedor. Mas o que interessa, e de que maneira esclarece? Os tempos modernos da burguesia respondem claramente essa questão, já a pós-modernidade, não. Por isso, nunca fomos tão modernos.

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Jornalista, doutora em Semiologia pela UFRJ e professora