Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Brasil precisa dizer não à invasão cultural

O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) manifesta-se publicamente contrário à forma como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão do Ministério da Fazenda, autorizou a junção da operadora de TV paga por satélite DirecTV com sua concorrente Sky Brasil, no último dia 25/5, deixando o país em situação vulnerável ao grupo de mídia mais conservador e agressivo do planeta.

No entender do FNDC, ao permitir a entrada ofensiva do mega-empresário Rupert Murdoch (controlador do conglomerado News Corporation, um dos avalistas da invasão do Iraque por meio dos seus veículos de mídia espalhados pelos Estados Unidos, Europa e Oceania) no mercado brasileiro de mídia audiovisual, o Estado cometeu um dos maiores atentados à soberania nacional. O FNDC considera paliativas as restrições impostas pelo Cade à fusão e aponta equívocos no âmbito legal, afronta à Constituição Federal e ameaça à introdução da tecnologia digital. Para o Fórum, mais do que um risco à competitividade dos mercados locais de comunicação, o que está em jogo é a própria idéia de segurança nacional em um ano eleitoral. Eis o texto do manifesto:

Fusão Sky-DirecTV deixa o País vulnerável ao grupo estrangeiro de mídia mais conservador e agressivo do planeta. O monopólio privado garantido com a anuência do Estado brasileiro é só o começo de uma ofensiva que vai muito além da questão comercial, atingindo diretamente a cultura e a soberania nacional.

As entidades signatárias deste manifesto, integrantes do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), declaram-se frontalmente contrárias à forma como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão do Ministério da Fazenda, autorizou a junção da operadora de TV paga por satélite DirecTV com sua concorrente Sky Brasil na última quinta-feira. No entender do FNDC, o Estado cometeu um dos maiores atentados à soberania nacional do Brasil desde o caso Time-Life, ocorrido na década de 60. A aprovação da fusão, cercada de restrições paliativas, não apenas legitimou um monopólio privado como deu aval para a invasão estrangeira da cultura nacional por um aliado íntimo da família Bush: o grupo News Corporation, controlado por Rupert Murdoch, um dos avalistas da invasão do Iraque por meio de seus veículos de mídia, espalhados por Estados Unidos, Europa e Oceania. Ao considerar a fusão apenas pela perspectiva econômica, o Estado brasileiro está cometendo, pelo menos, três equívocos:



1. No âmbito legal, a aprovação da fusão legitima uma série de anomalias existentes na criação do serviço de TV por paga por satélite, surgido no Brasil por uma situação ‘de fato’ e mantido até hoje cercado de irregularidades. A principal delas é que o DTH foi indevidamente criado através das Portarias nº 87 e nº 88, de 23 de abril de 1996, do Ministério das Comunicações, com a distribuição de autorizações para os grupos Globo e Abril, antes mesmo da sua regulamentação. Isso só veio a ocorrer, de forma precária, através da Norma nº 008/97, baixada pela Portaria nº 321, de 25 de maio de 1997, na qual o nome do serviço foi alterado para ‘Serviço de Distribuição de Sinais de Televisão e de Áudio por Satélite (DTH)’.

A fundamentação do serviço também é atribuída ao Decreto 2.195, de 8 de abril de 1997 que, entretanto, sequer o cita. Objetivamente, só a Portaria nº 321, com a Norma nº 008/97, traz especificações sobre o serviço DTH. Sem passar pelo Congresso Nacional, o DTH ganhou perfil de serviço de telecomunicações e acabou sendo implantado sem observar a maioria dos dispositivos constitucionais que regem a radiodifusão sonora e de sons e imagens (rádio e TV aberta). Muito menos foram respeitados artigos da lei da TV a Cabo, outro serviço de telecomunicações por assinatura aprovado meses antes por uma construção da sociedade civil. Desta forma, premissas básicas que regulam o cabo no Brasil – uma atribuição social para o serviço, a criação dos canais básicos de utilização gratuita e a limitação de 49% do capital acionário a sócios estrangeiros – foram deixadas de lado.

Sem dar satisfação à sociedade, o ex-ministro Sérgio Motta liberou os dois grupos a sair operando os serviços Sky e DirecTV. Na época, por trás do primeiro já estavam Murdoch, a família Marinho e o grupo britânico Liberty Media. A composição da DirecTV, controlada na região pela Galaxy Latin America, envolvia o grupo Abril, por meio da TVA, a Hughes Eletronics, o grupo venezuelano Cisneros e a mexicana MVS Multivisión.



2. A situação atual afronta ainda mais a Constituição Federal pelo fato da recomendação do Cade ter retirado do sócio nacional da Sky – as Organizações Globo – o poder de veto ou decisão unilateral sobre conteúdos nacionais distribuídos pela empresa resultante da fusão.

Se por um lado, o Cade evita que a Globo continue a ditar quem pode e quem não pode produzir conteúdo no Brasil, de outro retirou totalmente do controle da Nação uma forma de limitar a entrada de conteúdo estrangeiro. Da maneira como está, quem impedirá que os noticiários da Fox News – empresa controlada por Murdoch e uma das principais defensoras do avanço militar norte-americano sobre as demais democracias – passem a fazer parte do imaginário brasileiro?

O chamado ‘veto estratégico’, mais do que uma vantagem competitiva para a família Marinho, precisa ser encarado como uma salvaguarda à Nação. Por isso, não poderia estar nas mãos de alguém mas nos braços do interesse público. Promover este esvaziamento das garantias constitucionais por meio de decisões administrativas, permeadas por uma visão economicista, é um verdadeiro atentado ao Estado Democrático de Direito e um desserviço ao Brasil. Caso tivéssemos hoje a mídia brasileira sob controle estrangeiro, especialmente dos conglomerados norte-americanos, não teríamos disponíveis as informações a respeito da crise internacional em curso que, principalmente na mídia impressa, atualmente estão sendo veiculadas e possibilitam a avaliação dos interesses do país diante da emergência de um poder imperial que passou a ser exercido abertamente em escala mundial pelos Estados Unidos. Teríamos, isto sim, a mera mobilização, em território nacional, da agressiva máquina de propaganda que está sendo operada no interior daquele país e em todos os seus veículos espalhados pelo mundo, expressando exclusivamente seus interesses.

Ou seja, mesmo com todos os problemas e limitações verificados na atuação das atuais empresas familiares brasileiras de mídia, a preservação do controle destas empresas no interior do país é fundamental para a afirmação da soberania nacional. O contrário disso é a entrega dos principais meios contemporâneos de produção da cultura e de disseminação de idéias, valores e concepções a interesses estranhos aos do País.



3. O sinal verde para a fusão dado pelo Cade ameaça também a introdução da tecnologia digital na radiodifusão brasileira. Quando entrou no Reino Unido, na década de 90, o BskyB de Murdoch foi tão voraz como vem se apresentando agora a Sky Brasil. Enquanto os serviços de televisão aberta digitalizam sua infra-estrutura lentamente, os satélites da News Corporation passaram a atender todos os países da Grã-Bretanha por poucas libras mensais e entregando nas casas dezenas de canais, além da exclusividade do campeonato inglês de futebol.

Esta concorrência predatória em desigualdade de condições permitiu que Murdoch até distribuísse de graça o decodificador que todos os aparelhos de televisão precisavam acoplar para receber os sinais digitais. Ao conseguirem fazer sua transição, emissoras como a BBC encontraram os lares britânicos dominados pelas antenas do BskyB e sua caixinha conversora. O resultado é que a Sky monopolizou o serviço de DTH na Inglaterra e absorveu 67,5% do mercado de TV por assinatura. Considerando todos os domicílios que tinham acesso a serviços digitais de TV por assinatura e de TV aberta da Inglaterra em 2004, 51% recebiam sinais digitais através da BskyB. Quem garante que isso não se repetirá no Brasil no momento em que a sociedade decide o que fazer com a digitalização da radiodifusão e a infra-estrutura da Sky e da DirecTV já operam com tecnologia digital?

Soberania em questão

Toda esta situação poderia ter sido evitada se o Estado brasileiro estivesse atento aos alertas do FNDC e do Conselho de Comunicação Social. Em 1996, juntamente com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o Fórum representou duas ações populares contra o ministro das Comunicações, Sérgio Motta, e uma denúncia ao Tribunal de Contas da União. Em dezembro de 2004, foi a vez do órgão auxiliar do Congresso Nacional aprovar um parecer onde se posicionava de forma contrária à fusão. Os conselheiros entendiam que ‘devido à extraordinária importância cultural, política e econômica da televisão – nas suas diversas modalidades – pode ser catastrófica sua submissão a vontades contrárias ao interesse público e a interesses estranhos aos do País. As ameaças à televisão, em todas as suas modalidades, constituem ameaças à unidade nacional, à consciência e a vontade da população que majoritariamente tem neste veículo sua única fonte de informação, também são ameaças ao mercado e à economia nacional e, por conseguinte, configuram ameaça à soberania nacional’.

Se não compete ao Cade fazer este julgamento de cunho político, as entidades signatárias deste manifesto reivindicam um posicionamento urgente do Congresso Nacional e do governo brasileiro de forma a encaminhar medidas que inibam a expansão cultural e econômica deste conglomerado de mídia, que se constitui em um braço de propaganda do Pentágono sobre as demais Nações do mundo livre. Mais do que uma ameaça à competitividade dos mercados de comunicação locais, o que está em jogo é a própria idéia de segurança e soberania nacional, ou seja, os alicerces que sustentam estes mercados. Barrar já esta ofensiva ideológica, é assegurar que num futuro próximo não estejamos reféns de um monopólio privado também nas nossas consciências. [Brasília, 2 de junho de 2006.]

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FNDC