Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Chegou a notícia sem palavras

A nota de Fernando Lauterjung para Tela Viva News passou quase despercebida na semana passada, em meio ao copioso noticiário sobre a medida provisória que instituiu a nova televisão do governo federal. De Cannes, onde cobria o Mipcom – maior mercado mundial de programação de TV –, ele informou sobre o No Comment TV, um serviço lançado na internet pelo canal de notícias Euronews.


‘Trata-se de um canal online que contará com pequenos vídeos jornalísticos sem narração ou qualquer tipo de comentários. Serão usadas apenas ‘imagens que falam por si’, evitando assim a editorialização do conteúdo. Num primeiro momento, o canal estará disponível com exclusividade no YouTube. Após algumas semanas, estará também no site www.nocommenttv.com . A idéia é usar a plataforma do YouTube para trazer público para o serviço. Além de assistir aos vídeos, o usuários poderá votar nos preferidos, indicar vídeos e até enviar seu próprio conteúdo, que será selecionado e até editado pelo Euronews’.


Não é o momento de enfatizar aqui, como fizemos em artigo anterior, o risco que as emissoras como Euronews correm, ao estimular seus telespectadores a serem internautas, gastando no computador o tempo que poderiam empregar diante do televisor. É possível que, em vez de ‘trazer público para o serviço’, eles o percam para uma infinidade de outros serviços, tão ou mais atrativos, que a rede mundial oferece. O que interessa examinar, nesse caso, é a proposta de um canal de telejornalismo em estado bruto, sem edição de conteúdo e sem a interferência de qualquer narração.


Se uma grande empresa de mídia aposta num formato como esse, o que ele pode nos dizer, senão sobre uma possível exaustão do cidadão comum com o discurso telejornalístico? Não estará o cidadão cansado de ser tangido de um lado para outro, como ser irracional, pela tal ‘editorialização do conteúdo’? Não será essa expressão um eufemismo para narrativas ideologizadas, parciais, tendenciosas, que procuram ajustar os fatos a moldes explicativos genéricos, fabricados nas redações, em coerência com a linha editorial dos veículos, que é determinada por interesses corporativos antes de quaisquer outros?


Pior: não será este um sinal inequívoco da progressiva desnecessidade do jornalista, como intermediário de informação?


‘Jornalismo cidadão’


O fenômeno do ‘jornalismo cidadão’, com a emergência do consumidor comum de informações no papel de produtor de conteúdos, aponta claramente nessa direção. Milhões de pessoas, sobretudo jovens, despendem mais tempo atualmente em sites de relacionamento e blogs anônimos do que no consumo de informação jornalística, seja nas mídias impressas ou nas eletrônicas. É por essa via que são notificados dos fatos correntes. Os circuitos regulares do jornalismo já não detém a exclusividade na produção de notícias e agora arriscam-se até a perder a primazia, atropelados por redes complexas e agilíssimas de comunicação interpessoal.


Até agora, entretanto, o ‘jornalismo cidadão’ atingia o jornalismo profissional muito mais no terreno do comentário, da análise, da opinião. É tal o número de blogs amadores e de intervenções do leitor nas áreas de interatividade dos sites de imprensa que já rivalizam, há tempos, as observações sobre a realidade feitas por gente que é selecionada, treinada e paga para fazê-las, como atividade de trabalho, e as feitas por gente comum, de qualquer ramo de atividade, interessada apenas em trocar idéias e polemizar. Muitas vezes, são mais atraentes e instrutivos os comentários aos textos profissionais do que eles próprios.


A No Comment TV traz o problema para o campo da reportagem. Ela dispensa o jornalista narrador, o ‘repórter de texto’, deixando para o espectador a tarefa de compreender o significado das imagens e de relacioná-las com outras informações. Aceita que o espectador pode ser tão ou mais informado que o repórter, ou que possa se inteirar de qualquer fato com uma busca competente na web. O consumidor da notícia passa a ser, então, o seu próprio redator, o construtor do sentido do fato.


Construção da notícia


Obviamente, esse telejornalismo sem palavras não prescinde das imagens. O que ele opera é apenas a substituição do repórter pelo cinegrafista e o editor de imagens, na produção das notícias. As escolhas da câmera – o que mostrar, o que ocultar, o ângulo do qual se filma, o som que se capta – somam-se às escolhas do editor no ordenamento das cenas, para construir uma narrativa. Mas esse discurso é muito menos perceptível para o público do que o da palavra falada.


Uma aura de neutralidade ainda cerca a imagem, ainda que nada seja neutro na sua produção. Livre da narração, o espectador tem a sensação de um ‘contato direto’ com a realidade dos fatos, sem intermediários, sensação que é falsa mas intensa. Ele não precisa que alguém lhe diga o que seus olhos estão vendo, embora os olhos não mostrem o cinegrafista que produz aquelas imagens, nem o editor que as ordena.


O telejornalismo sem palavras pode ser um sonho de consumo para o cidadão da era digital, informado por osmose apenas por viver num ambiente impregnado de mídias e por socializar-se virtualmente, trocando conhecimentos com gente igual a ele, de qualquer parte do globo. Se o formato chegar às transmissões esportivas, onde reinam o palavrório vazio e o comentário asnático, pode ser mesmo um grande sucesso de audiência. Mas que seja apenas um alerta aos jornalistas, para as dramáticas mutações que a profissão está atravessando e para a profunda crise de seu papel social.