Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como regulamentar o Marco Civil?

Termina [terminou] nesta terça-feira (31) o prazo para enviar contribuições ao Ministério da Justiça sobre o Marco Civil da Internet. Para quem não acompanhou o tema, o Marco Civil é a lei que define direitos e deveres na rede brasileira. Foi aprovado em abril de 2014. Só que a aprovação não encerrou a questão. A presidente ainda precisa editar um decreto regulamentado a lei. As contribuições recebidas pelo Ministério da Justiça servirão para orientar o texto presidencial.

Vários pontos polêmicos do Marco Civil estão aguardando a regulamentação. Por exemplo, a lei protege a privacidade e exige que serviços de internet obtenham o consentimento “livre, expresso e informado” do usuário para ter acesso a seus dados pessoais. Mas o que significa “livre, expresso e informado”? Esse ponto precisa ser definido pelo decreto. Dessa definição depende um grande número de atividades e negócios na rede, o que gera grande responsabilidade de se encontrar uma definição equilibrada.

Mas há um ponto que, ao meu ver, não merece nenhuma regulamentação. A presidente deveria deliberadamente se omitir sobre ele. Trata-se da obrigatoriedade de que as empresas que prestam serviços na rede guardem todos os registros de acesso dos usuários por no mínimo seis meses.

Esse dispositivo entrou no texto no último momento, por pressões policiais e de alguns advogados. Na prática, ele acaba no Brasil com o princípio da presunção de inocência. Todos os usuários da internet brasileira serão vigiados previamente, e o registro de todas suas conexões será armazenado.

Dispositivos vigilantistas

Esse modelo de guarda prévia de dados foi adotado por países europeus no começo dos anos 2000, na esteira do 11 de Setembro (ironicamente, nem os EUA adotaram algo similar). Só que o modelo foi revertido. A Corte de Justiça da União Europeia revogou em 2014 a Diretiva de Retenção de Dados, afirmando que ela representava “interferência séria nos direitos fundamentais relativos à vida privada e à proteção aos dados pessoais”.

No Brasil, o Marco Civil condicionou a materialização do dever de guardar dados à existência da regulamentação, a ser feita pelo decreto. Se há regulamentação, o dever de guardar dados é aplicável. Se não há, não é. Isso foi reconhecido por decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo, que disse com todas as letras: “O referido dispositivo legal consubstancia norma de eficácia contida, vez que dependente de disciplina regulamentar”.

Desse modo, como forma de observar a Constituição –que elege a privacidade e a presunção de inocência como princípios fundamentais –, a presidente Dilma deveria em seu decreto simplesmente não tratar desse ponto da lei.

Isso impediria a eficácia desses dispositivos vigilantistas do Marco Civil. E evitaria que sua inconstitucionalidade tenha de ser afirmada pelo Judiciário brasileiro, como já aconteceu na Europa.

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Ronaldo Lemos é advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro