Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Cuidado com o Tio Sam

Os editoriais da grande mídia estão temerosos em avaliar o que realmente está acontecendo na avenida do samba, com Tio Sam fantasiado de papel pintado-dolarizado-falido, soltando fogo pelas narinas, atravessando a bateria, especialmente quando o governo dos Estados Unidos decide apostar contra a sua própria moeda, seu próprio poder monetário. O que significa isso?


Keynes, genial, destaca que o poder monetário impõe jogos cambiais de modo a produzir senhoriagem crescente no comércio internacional para as moedas que são referências internacionais, capazes de impor relações de trocas sempre favoráveis para si e prejudiciais aos outros. Marx ressalta que é no comércio internacional, onde desembocam o excedente de produção global, correspondente aos estoques problemáticos nacionais em geral, que se dá a deterioração nos termos de troca, gerando crises expressas em desequilíbrios monetários. Lenin, depois da Primeira Guerra Mundial, percebeu, claramente, para espanto de Keynes, que as maiores propagandistas do movimento socialista internacional são as crises monetárias. Estas, disse, ao desgastarem violentamente o poder de compra das moedas, predispõem as pessoas a condenarem, radicalmente, os regimes políticos – seja de direita, de esquerda ou de centro.


Nas crises monetárias, como a que afeta os Estados Unidos, sob olhar ainda indiferente da grande mídia, como se fosse algo trivial, emerge tudo o que, aparentemente, se encontra acomodado: capitalismo, socialismo, comunismo, anarquismo, terrorismo, social-democracia, democracia etc, conforme construídos pela inteligência humana ao longo da história. Zorra geral. Emergência política vulcânica.


Explodir pontes


Keynes coincidiu com Guimarães Rosa. Rosa disse que viver é perigoso. Keynes acrescentou que a economia é uma ciência muito perigosa. O pensamento não pode ser devidamente exposto. Ora, por que o Banco Central Europeu se negou a acompanhar o Banco Central dos Estados Unidos quando este decidiu, em meio a pressões inflacionárias crescentes, diminuir as taxas de juros para sustentar o consumo interno, como forma de evitar a recessão?


A velha Inglaterra, sábia, esperta, matreira, utilitarista, cínica, com seu Banco da Inglaterra que já viveu os áureos tempos da dominação monetária internacional sob a libra, no século 19, apostaria todas suas fichas nos primos americanos, que estão com o dólar à deriva, ou buscaria aproximação com algo mais consistente – por exemplo, o euro? A moeda européia fica entre dois fogos: o dólar, de um lado, pegando brasa; a Rússia e a China, de outro, detentoras da bomba atômica, como Tio Sam, aproximando-se estrategicamente no compasso dos descaminhos do império.


Quando o Titanic vai rumo às geleiras, qual o preço pela lealdade será cobrado pelos ingleses, agora, sabendo que outrora, quando da emergência do dólar, sobrara para os herdeiros do Rei Arthur somente sarcasmos destilados pelos vitoriosos da guerra sobre o primo que empobrecera?


Se Tio Sam aposta contra seu próprio poder monetário, que poder lhe sobrará senão as bombas atômicas, que bancam o Estado industrial militar norte-americano, assim denominado, em 1960, pelo ex-presidente Eisenhower? Teria fôlego para continuar sustentando autoritariamente o unilateralismo, com o qual se acomodou o mundo midiático, apostando na força atômica, ou terá chegado a hora do multilateralismo?


Por que a mídia grande não vai fundo nesse debate? O capitalismo americano passa apenas por uma pequena turbulência, que requer olhar de mera moderação do jornalismo investigativo, ou o negócio é mais negro do que a asa da graúna?


Se Tio Sam aposta contra o dólar, fragilizando-o em nome do combate ao aquecimento econômico, mesmo correndo o risco de explodir as pontes, inviabilizando sua volta, é porque, como destaca o economista Eduardo Starosta, da Consultoria Estplan, tem algum jogo por trás de tal manobra. Qual? Ou seria uma tentativa kamikaze? 


Calote global à vista?


Não se esqueça que nos momentos dramáticos Tio Sam dá, sempre, uma de artista – e apronta. Em 1974, quando o Bundesbank, sob comando do socialista alemão Willy Brant, quis fazer um saque de 10 bilhões em barras de ouro depositadas nos Estados Unidos, dada sua preocupação com os depósitos em dólares no caixa bancário, que poderiam ser afetados pelo déficit americano bombado pela guerra do Vietnam, o governo Richard Nixon não vacilou: deu tremendo beiço na praça global, desvinculando o dólar do ouro.


Quem tinha dólar em caixa dançou, vendo sua cotação flutuar violentamente. Delfim Netto, na ocasião, todo poderoso czar da economia, esfregou as mãos quando indagado sobre as conseqüências para o endividamento brasileiro em dólar: ótimo, a dívida cairia.


E agora? No dia seguinte – quarta-feira (31/1) – à redução da taxa de juros, pela segunda vez, pelo BC americano, o mercado pipocou. O BC europeu não mexeu um músculo. A desconfiança na saúde econômico-financeira dos EUA, sob o dólar furado pelos excessivos déficits fiscal e comercial americanos, continua crescente. Os banqueiros estão em pânico. Pedem um colo estatal de qualquer jeito para livrá-los do perigo de calote da classe média endividada a ser salva pelo populismo cambial bushiano. Nunca foram tão antineoliberais, avessos ao discurso da grande mídia brasileira. Se o neoliberalismo continuar nas páginas dos editoriais, a grande mídia corre perigo de perder anúncios, pois estaria jogando contra os banqueiros.


Por que o preço do petróleo não cai, nem os dos alimentos? Energia! O preço da energia mantém-se alto para compensar o cadente poder monetário americano, para bancar a equivalência cambial internacional deteriorada em seus termos de troca frente ao dólar tatibitate. Os árabes não são burros. Petróleo e alimentos viram moedas que se auto-realizam no rastro da bancarrota da moeda americana, cujo dono não acredita mais nela, jogando juros baixos contra ela, deixando-a na chuva frente ao equilíbrio monetário geral. Quem, então, vai acreditar? Talvez, os editorialistas da grande mídia, acríticos relativamente ao conteúdo real da crise em curso.


Chuvas e trovoadas


Não dá para fugir da conclusão óbvia: o unilateralismo americano, emergente depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, entra em baixa. A tese do ‘fim da história’, de Francis Fukuyama, filósofo americano que mereceu fugaz fama mundial, vai para o brejo. Ele imaginara o fim da história com a proclamação eterna institucionalizada, petrificada, da democracia burguesa neoliberal puxada pelo poderio americano. As ideologias, de esquerda e de direita, haviam sido detonadas, preconizara. Tudo se acomodaria com a eternização neoliberal-burguesa-fukuyaminista. Como diria Hélio Fernandes, ha-ha-ha.


George W. Bush jogou a tal eternidade na lata de lixo ao apostar contra si, ou seja, contra o dólar, desvalorizando-o mediante juros baixos, em nome da promoção do consumo barrado pela crise bancária-monetarista. Tudo contrário aos livros-texto de economia, ditados pelas universidades famosas americanas, consumidos acriticamente na periferia capitalista como princípio único de validade universal, a pontificar, de forma arrogante, nos editoriais midiáticos. Mas queimar tais pontes significa que tudo está sendo feito na porra-louquice, ou, como insiste em perguntar Eduardo Starosta, tem uma manobra que está prestes a evidenciar, jogando farinha no ventilador?


Martin Wolf, no Financial Times, do alto da sua visão capitalista do falido império britânico novecentista, saca que talvez a capacidade de endividamento americano, para bancar um status quo inflacionário, seria infinita. Sonho ou realidade? Se nem Gisele Bündchen acredita mais nas verdinhas, que dirão os banqueiros no momento em que Bush segue o exemplo da bela modelo brasileira?


Por que a aparente tranqüilidade? A mídia nacional está excessivamente romântica e compassiva diante do vendaval monetário que se alastra do norte para a planície e montanhas globais. Repetem, acriticamente, o que Condolezza Rice disse em Davos, que todos se acalmem e acreditem na potência americana. Ora, se Tio Sam dá o xeque-mate sobre si mesmo, por que não duvidar? A dúvida é o exercício da aprendizagem. Por que crer que o capitalismo neoliberal seja dado absoluto e não meramente relativo, sujeito a chuvas e trovoadas, sendo movimento histórico social exposto às mudanças dialéticas?


Passou batido


Como ficarão os países capitalistas da periferia sul-americana? Continuarão debatendo pela mídia conservadora a necessidade de adiar a união continental em nome dos interesses antagônicos que os dividem, ou farão o mesmo que fizeram os europeus, depois da guerra, cuidando para a montagem do euro como arma estratégia contra o domínio cambial absoluto sob o dólar? A história mostrou a correção estratégica européia, certeira ao montar seu muro monetário-cambial.


A rigidez mecanicista midiática engessa e impede a dúvida. Pensam na eternidade do momento. Afinal, o padrão-ouro não foi para o brejo? Não substituiu o novo padrão monetário sustentado na moeda estatal inconversível? E essa moeda não está sendo detonada agora? Ou a consistência do dólar é a mesma de quando emergiu como ditador da nova ordem internacional a partir de Bretton Woods, em 1944?


Tem alguma loucura aí: Tio Sam não acredita na sua própria moeda, mas a mídia brasileira fica achando que a salvação está na esperança, sem ousar contar para a sociedade a história real do poder monetário no mundo e sua evolução histórica.


O governo americano jogou todas as suas fichas no imponderável keynesianismo, numa situação inversa à que inaugurou a economia de guerra jogando com a moeda estatal, a partir dos anos de 1940, enquanto fica pregando neoliberalismo para a periferia capitalista. Enquanto diz para os outros combaterem a inflação, aposta ele na inflação, que, como disse Keynes, ‘é a unidade das soluções, o elixir que movimenta o capitalismo’. Como o sistema americano, de acordo com os economistas em geral, corre perigo de cair na deflação, a maior inimiga do capitalismo segundo Keynes, a alternativa louca é seu oposto. E seja o que Deus quiser.


Somente quem ainda acredita no chamado livre mercado, como os editorialistas da grande mídia, propagandeia o que nem os patrões deles acreditam, já que a realidade é, claramente, marcada pelo avanço dos oligopólios.


O cerco que a Microsoft faz à Yahoo! para adquiri-la, a fim de enfrentar competitivamente a Google, dispondo-se a gastar quase 45 bilhões de dólares, mostra que as comunicações online também sucumbem à força dos oligopólios – e entram na dança que ensaia o tempo cujo horizonte encontra-se ainda muito nublado. O que são os oligopólios? A manifestação do capitalismo rumo à superação da concorrência. A história do sistema capitalista demonstrou que a busca nesse sentido levou ao nazi-fascismo – algo que Fukuyama deixou passar batido, evidenciando que o ‘fim da história’ dele pode ser, na prática, o renascimento da história em pleno carnaval.

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Jornalista, Brasília, DF