Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Cultura e educação, o principal

É certo que, no século passado, a novidade tecnológica chamada televisão tenha levado 20 anos para chegar ao Brasil, enquanto a ‘nova tevê’ (digital) registre cerca de nove anos para fazer tal percurso. É igualmente certo que não há grande coisa a objetar ao advento de novidades: videocassete, cd-player, ipod, dvd, videogame, celular, câmara digital – tudo isto, em graus diferentes de velocidade de chegada, é parte inevitável do avanço tecnológico. A forma da consciência coletiva contemporânea é atravessada pela tecnologia, e não se pode ficar na contracorrente da História.


Mas também não se pode deixar de levantar questões sobre como alguns dos setores das ‘elites logotécnicas’ (jornalistas, editores, comentaristas, etc.) posicionam-se culturalmente frente às novidades. Vamos tomar como exemplo uma matéria de revista semanal (Época, número 403, 6/2/2006). Para fazer entender o que mudará com o novo padrão brasileiro de tevê, os jornalistas pedem ao leitor para imaginar algumas cenas:


1) um agricultor assiste à novela sem os chuviscos habituais, ‘com imagem igual à da tv-Globo’;


2) preso no trânsito da grande cidade, um estudante liga o celular e vê ao vivo a sua desejada partida de futebol;


3) alunos de uma escola pública assistem a um programa educativo e tiram dúvidas na hora, ‘como se estivessem num chat de iternet’;

4)
uma dona de casa interrompe uma exibição para clicar no anúncio, ‘decide comprar, mas antes entra no canal do banco e confere o saldo da conta corrente’.


Para a revista, as quatro cenas revelam o valor da decisão política quanto ao novo padrão. O resto da matéria é detalhamento técnico da imagem, do som, da interatividade, dos serviços e do dinheiro que a TVdigital movimentará nas décadas que virão.


Do ponto de vista estritamente informativo, a matéria está correta. E assim tem sido com textos sobre o mesmo assunto que vêm proliferando na imprensa. Discute-se a premência do prazo para a decisão presidencial quanto à importação do padrão de transmissão digital (japonês, americano ou europeu), os muito entusiastas rejubilam-se com a entrada do país nessa nova etapa do progresso tecnológico e, mesmo quando partem de setores do governo federal indicações de que os aspectos técnicos não devem ser os únicos a orientar a decisão política, a imprensa interpreta as exigências de qualidade, competitividade e inclusão social como requisitos técnicos ou mercadológicos.


Como o tanatologista


A questão a se levantar diz respeito à dimensão cultural do novo dispositivo de mídia. Este ângulo, com o qual ninguém parece preocupar-se, é o grande ausente da coleção de aspectos problemáticos suscitados. Ninguém se pergunta realmente sobre o alcance cultural da inovação, exceto talvez pelas possibilidades de regionalização dos programas e da democratização do acesso.


Mas acesso a quê?


Digamos que a resposta seja ‘acesso ao arquivo mundial do conhecimento’ ou então algo como ‘maior mobilização da energia civilizatória’, e assim por diante. Do primeiro caso já se vem ocupando a internet; do segundo, é preciso sempre lembrar que todo o som e a fúria desencadeados pela televisão para exprimir os conteúdos da cultura ocidental têm resultado apenas num diagnóstico sobre a brutal banalização como seu principal efeito. Aliás, o pensador inglês Alfred Whitehead já advertia no início do século passado que ‘energia sem reflexão é brutalidade’. Certo, ele também ponderava que ‘reflexividade sem energia é decadência’.


A reflexão – que gera ciência, tecnologia autóctone, mão-de-obra qualificada e consciência crítica – provém da cultura que pactua com a educação. A revolução da internet e a globalização só se entrelaçam produtivamente no campo da corrida pelo conhecimento, capaz de formar massas instruídas e em aperfeiçoamento contínuo. É o campo em que a China e o bloco asiático vêm investindo maciçamente. Sem claras estratégias culturais e educacionais, os dispositivos digitais podem ter o brilho atraente das novidades, mas serão um pouco como os adornos com que o tanatologista embeleza um cadáver.


A isso deverá estar a nossa imprensa atenta nos trâmites de celebração pública da novidade digital.

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Jornalista, escritor, professor-titular da UFRJ