Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

De onde parte o tiro?

À altura da proximidade do referendo, centenas de artigos já se ocuparam do tema. Difícil, pois, arriscar alguma originalidade. De outro lado, nada escrever sobre a questão poderia passar a idéia de absoluta omissão, o que, de resto, não representaria nenhuma atitude ilegítima. Afinal, a generosidade da democracia é tão elástica que também abriga os omissos. Não é, porém, esse o caso. O que efetivamente me leva a escrever sobre o assunto do referendo é um certo incômodo que, desde a primeira hora, em relação ao fato passei a vivenciar. A rigor, a sensação do desconforto não me deveria habitar, já que sempre fui (e assim permaneço) fervoroso defensor da democracia participativa na relação direta da desconfiança quanto à democracia representativa. Então, não se tratando de contradição, cabe explicar a razão.

O estranho incômodo

Se a observação não se reveste de algum equívoco, sou levado a crer que, até bem pouco tempo, a questão do armamento não constava nas conversas dos brasileiros. Eis que, a partir de uma ‘ordem’ (como sempre, no Brasil, tudo provém em escala descendente), cada cidadão se viu ‘obrigado a escolher’ entre ‘x’ ou ‘y’. Quando recordamos decisões que já foram tomadas no Brasil, sem a mínima consulta à população, sinto calafrios. Imaginarmos, por exemplo, que se aprovou – via Congresso – o projeto sobre transgênicos e biossegurança, é de estarrecer.

Os ‘doutos’ parlamentares, de costas para a população, decidiram e ponto final. A mídia, por sua vez, afora matérias de acompanhamento das discussões no âmbito do legislativo, não interferiu, limitando-se a registrar o ritmo natural do trâmite congressual. A propósito da reforma da previdência, o hábito não diferiu. No tocante à implantação da lei que transformou fumantes em assassinos em potencial, nenhuma consulta se verificou. Até hoje, o país ignora o que majoritariamente a população pensa sobre aborto, pena de morte, política de drogas, dívida externa e privatizações.

A julgar pelo elenco de temas, em votações praticamente distantes dos eleitores, bem se pode deduzir quão poderosos são nossos ilustres parlamentares na capacidade de definirem sobre o destino das vidas alheias. Agora mesmo, a classe política está para decidir a assinatura definitiva dos termos da ‘Convenção-Quadro’. Esta consiste em proibir o plantio de tabaco. A gravidade da questão, no Brasil, é que, em sendo aprovada no Congresso, a conseqüência será a de proibir que agricultores brasileiros plantem tabaco. O projeto, porém, não prevê que a proibição se estenda a grupos estrangeiros. O debate está circunscrito a políticos e agricultores, sem que estes tenham direito de veto. A mídia, igualmente, não noticia.

As considerações até aqui formuladas conduzem para a seguinte pergunta: por que, quanto ao problema do armamento, os parlamentares resolveram passar para o eleitorado a obrigação de decidir? Terão eles sofrido alguma recaída quanto à condição de ‘sábios’ plenipotenciários? Bem, considerando que, em qualquer parte do mundo democrático, a indústria bélica é o setor que maior injeção de recursos aplica em campanhas políticas, talvez se comece a compreender a real natureza do referendo. A classe política brasileira não quis bancar o veto que envolve um dos mais expressivos patrocinadores. Com o resultado, contra ou a favor, a classe política estará preservada perante os olhares do ‘patrão’. A mídia também não procurou saber a respeito.

Possíveis interesses

É sabido que o Brasil, por características culturais difusas, padece de certo complexo de inferioridade. Esta condição de origem leva, por vezes, o país a arroubos que apenas reafirmam o sintoma. Enquanto, por exemplo, em outros centros avançados, os maços de cigarro trazem estampadas frases de advertência, o que é aceitável (é bem verdade que outras igualmente deveriam constar em rótulos de bebidas alcoólicas), no Brasil se atingiu a gaiatice, mesclada de impulso sádico com tempero de hipocrisia, da inclusão, além das frases, das horripilantes imagens. É o exemplo máximo do grotesco que faz o restante do mundo entender menos ainda quanto ao que somos.

A digressão momentânea a respeito do tema específico foi absolutamente intencional. O propósito era o de propiciar o desdobramento da reflexão. Vale registrar que, curiosamente ou não, há décadas, se verifica no Brasil, sempre com pleno apoio da classe política, o endosso a campanhas cuja origem se dá fora do país. Assim, já tivemos, em períodos passados, a demonização de vários produtos, a exemplo do açúcar, sal, café, carne vermelha, chocolate, tabaco e, agora, armamento.

Por coincidência (ou não), todos os listados exerciam forte impacto na economia nacional, bem como na área de exportações. A mais recente incluía a soja que acabou redundando em alto prejuízo, graças à aprovação dos transgênicos. As demais atividades perderam as primeiras posições para outros mercados. Há décadas, abriram-se ramificações diversificadas e concorrências que envolveram a linha de produtos light e diet, consumo maior de chá, culinária vegetariana que, por sua vez, se ampliou para a disseminação de cardápios também orientais. Nada contra. Apenas os dados servem para demonstrar que, por trás, de campanhas, há sempre grupos outros à espreita dos resultados. A mídia, sequer por meio indireto, aborda tais questões.

Dados mais recentes revelavam a expansão dos negócios do setor armamentista nacional. Não é que, justo nesse contexto favorável, surge o referendo? Bem, talvez seja mais conveniente imaginar que uma coisa nada tem a ver com a outra. Pelo menos, assim parece pensar a mídia, considerando seu absoluto silêncio sobre tantas situações. Enfim, o referendo está consolidado. Muitos aguardam, com ansiedade, o veto. Tomara que, além do comércio ilegal de drogas e de armas, atividade crescente no país, o referendo não acabe intensificando a própria ilegalidade.

Se passar a aprovação do comércio de armas, tudo continuará o que era antes. Se passar a proibição, é possível que aumente a rede de tráfico ilegal. A julgar pelos termos do estatuto do desarmamento, segmentos especiais continuarão amparados pela lei. Espera-se que tais segmentos não usufruam vantagens extraordinárias, comercializando ilegalmente tanto armas quanto munições. É pagar para ver.

Apenas para que não paire dúvida quanto às intenções do articulista, cabe esclarecer que o próprio jamais pôs a mão numa arma e, em situação a tornar o uso imperioso, seguramente seria um dos primeiros a morrer, dado o absoluto repúdio a qualquer tipo de arma e, principalmente, para o que dela decorre. Como se sabe, o tiro não parte da mão. O dedo só aperta o gatilho depois de o cérebro dar o comando. Quem mata, pois, é a mente. Contra o ímpeto da mente, não há referendo possível.

Aguardemos o cenário que a classe política reservou para a vida (ou a morte) do país… Ao término do artigo, identifiquei a razão do incômodo: a sensação de obrigatoriamente ter de comparecer para externar uma opção absolutamente inútil.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro).