Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Decisão do governo só agrada a quem vai lucrar

Além da cúpula do governo federal, dos ‘donos da mídia’ e de um seleto grupo de pesquisadores e industriais, a opção pelo padrão japonês de televisão digital não encontra outros entusiastas no Brasil. Entidades, especialistas e parlamentares lamentam a forma parcial e privilegiada que imperou no final de um processo de debate que poderia ter sido conduzido pelo interesse público.

O decreto e o termo de implementação assinados em 29/6 pelo presidente Lula instituindo o Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre serviram para consolidar a adoção do padrão japonês ISDB-T na transição da tecnologia analógica para a digital. Para o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), os documentos vieram coroar um processo insuficiente e truncado, construído e sabotado pelo próprio governo.

‘A digitalização da comunicação foi avaliada como uma mudança com menor dimensão do que realmente tem, e afirma uma política pública que vem atender exclusivamente aos interesses privados, especialmente os da Rede Globo’, analisa Celso Schröder, coordenador-geral do FNDC. Segundo ele, que participou do Comitê Consultivo do SBTVD até o mesmo ser desmantelado pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, o decreto do SBTVD possui um viés estatizante e patrimonialista porque sinaliza para a construção de uma rede estatal de informação que fortalece a prática do ‘coronelismo eletrônico’ enquanto privilegia a manutenção do status quo da radiodifusão brasileira.

Para o professor da Universidade de Brasília, Murilo César Ramos, o decreto formaliza uma decisão que já tinha sido tomada, na prática, no início dos anos 2000, e que vem agravar o quadro de fragmentação regulamentar e dispersão política que caracteriza o ambiente normativo do rádio e da televisão no Brasil. ‘É mais uma peça jurídica que se acopla à ultrapassada Lei nº 4.117, de 1962, e que, como todas as outras, ao longo desses 42 anos, favorece claramente os interesses privado-comerciais sobre o interesse público. Desde a descaracterização da outorga de televisão como concessão de serviço público à ausência de relações contratuais efetivas e transparentes, o que leva à privatização de fato do espectro radioelétrico, bem público escasso e, pior, finito’, avalia.

Já Alexandre Kieling, diretor-técnico da Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU), considera que, independente da questão da modulação, a incorporação das pesquisas brasileiras no sistema é uma vitória importante que valoriza o esforço da academia. ‘O governo começa a trabalhar com a visão de política industrial de médio e longo prazo, e isso é um avanço. Esperamos um saudável trabalho, democrático, e que a regulamentação ao passar pelo Congresso siga a mesma linha de avanços obtida na Lei da Cabodifusão, no que se refere aos espaços para as tevês universitárias, comunitárias e institucionais’, diz.

Texto frágil

Segundo um especialista no ramo, que prefere não se identificar, o principal problema do decreto de transição para a TV digital é o fato de misturar no mesmo instrumento jurídico assuntos que seriam melhor tratados por resoluções da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) ou do Ministério das Comunicações. Por exemplo, a própria definição tecnológica pelo ISDB-T como padrão base para o SBTVD, as definições relativas aos prazos para implantação do sistema brasileiro (que ficariam melhor em uma regulamentação do Ministério das Comunicações) e a criação de canais a serem explorados diretamente pela União, o que deveria fazer parte de um outro instrumento jurídico. Também aponta que a existência do operador de rede é apenas implícita, ‘e mesmo assim apenas no que diz respeito aos canais consignados à União’.

Takashi Tome, pesquisador em TV digital, avalia, por exemplo, que o artigo 5º do decreto, que diz ‘a base será o ISDB-T’ pode significar qualquer coisa: desde 100% ISDB até, ‘ultra-otimisticamente’, 0% ISDB. ‘Fazendo uma analogia com os automóveis: podemos ter comprado apenas o motor (modulação ISDB-T), ou podemos ter comprado o carro inteiro. … No caso da adoção do motor ISDB, a camada de transporte – a parte de sinalização, que ficaria entre o hardware (ISDB) e o middleware (brasileiro) – se ele for mais pra japonês, teremos dificuldade para colocar os nossos aplicativos. Se ele for mais pra brasileiro – de preferência totalmente brasileiro – aí, tudo bem, a gente tem o controle da situação’, diz. Esses detalhes, parece, deverão ser definidos pelo fórum técnico previsto nos parágrafos 2º e 3º do mesmo artigo do decreto.

Políticos lamentam

Para o deputado Orlando Fantazzini, líder do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o governo federal desconsiderou por completo o debate sobre a TV Digital proposto pela sociedade. ‘Lamentavelmente, o governo não tem coragem e nem vontade de enfrentar as concessionárias de comunicação que têm um lobby poderosíssimo no Congresso Nacional. A atitude do Governo Federal é autoritária e não atende aos interesses nacionais ao desconsiderar por completo os investimentos feitos para desenvolver a tecnologia nacional’, afirmou.

O deputado Raul Pont, secretário-geral licenciado do Partido dos Trabalhadores, acredita que o decreto ficou devendo às principais questões da democratização da comunicação. O deputado diz que tentou encaminhar junto ao partido e também à Casa Civil a necessidade de continuação do debate, uma demanda recebida da sociedade civil. ‘Eu não li o decreto ainda, mas as informações que recebo através dos noticiários são de que o conteúdo do acordo com o Japão agrada aos empresários porque vem reforçar o atual sistema. Esperávamos que estivessem propostos novos ingredientes, que viessem acabar com a concentração dos meios de comunicação, essa era uma oportunidade de fazer isso’, afirmou. Ele inclui nas suas preocupações o fato de a implantação do rádio digital no Brasil vir a ter o mesmo desfecho, favorecendo as empresas já estabelecidas e dificultando o ingresso das emissoras comunitárias e educativas.

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Jornalista, da Redação FNDC