Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Decreto repleto de falhas e inconsistências

Análise produzida pela Secretaria-executiva do FNDC revela as fragilidades
jurídicas e impropriedades técnicas criadas com a edição do decreto que institui
o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre. Ambiguidades podem dar
margem a interpretações que levem ao questionamento judicial em vários
pontos.


Acompanhe os principais problemas da norma de transição da televisão
brasileira:

















































Texto do decreto Fragilidades ou contradições
identificadas

Art. 1º – O presente decreto dispõe sobre a implantação do Sistema Brasileiro
de Televisão Digital Terrestre na plataforma de transmissão e retransmissão de
sinais de radiodifusão de sons e imagens.


Art. 2º – Para os fins deste decreto, entende-se por:


I – SBTVD-T – Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre – o conjunto
de padrões tecnológicos a serem adotados para transmissão e recepção de sinais
digitais terrestres de radiodifusão de sons e imagens.


No primeiro artigo, o texto trata da plataforma de transmissão e
retransmissão dos sinais de TV e omite a recepção.


No artigo seguinte, ao definir o SBTVD-T, exclui o serviço de retransmissão e
inclui a recepção dos sinais.

II – ISDB-T – Integrated Services Digital Broadcasting Terrestrial – serviço
de radiodifusão digital terrestre, integrado por padrões tecnológicos
internacionais definidos na União Internacional de Telecomunicações – UIT. Os
padrões tecnológicos na área das telecomunicações e radiocomunicações são
desenvolvidos e definidos pelos consórcios que os criaram. No caso do ISDB, o
consórcio chama-se DiBEG e é liderado pela Sony, NEC e a emissora estatal NHK. A
UIT, organismo de padronização de tecnologias e protocolos ligado à ONU, apenas
homologa o padrão.
Com isso, o Brasil fica refém da disposição das empresas e do governo
japonês em incorporar os pleitos do País parceiro (esta interpretação é
solidificada pelos termos do acordo de implementação, que se limitam a uma
declaração de intenções no que diz respeito às obrigações do Japão)
Art. 4º – O acesso ao SBTVD–T será assegurado, ao público em geral, de forma
livre e gratuita, a fim de garantir o adequado cumprimento das condições de
exploração objeto das outorgas.

Este artigo permite a interpretação de que a interatividade proporcionada
pelo SBTVD-T deverá também ser livre e gratuita.


Não fica claro se radiodifusores, ou empresas de telecomunicações, poderão
cobrar do telespectador pelo uso do canal de retorno, infra-estrutura sem a qual
só possível oferecer somente a chamada interatividade local, que não viabiliza a
inclusão digital.


Art. 5º – O SBTVD-T adotará, como base, o padrão de sinais do ISDB-T,
incorporando as inovações tecnológicas aprovadas pelo Comitê de Desenvolvimento
de que trata o Decreto nº 4.901, de 2003.


§ 1º – O Comitê de Desenvolvimento fixará as diretrizes para elaboração das
especificações técnicas a serem adotadas no SBTVD-T, inclusive para
reconhecimento dos organismos internacionais competentes.

O parágrafo 1º deste artigo estabelece que a incorporação das tecnologias
desenvolvidas pela pesquisa nacional será submetida ao reconhecimento de
organismos internacionais, o que torna incerta e sem prazo definido a adoção
destas inovações.

§ 2º – O Comitê de Desenvolvimento promoverá a criação de um Fórum do SBTVD-T
para assessorá-lo acerca de políticas e assuntos técnicos referentes à aprovação
de inovações tecnológicas, especificações, desenvolvimento e implantação do
SBTVD-T.


§ 3º – O Fórum do SBTVD-T deverá ser composto, entre outros, por
representantes do setor de radiodifusão, do setor industrial e da comunidade
científica e tecnológica.

Não há garantias de participação da sociedade civil, dos trabalhadores do
setor e de representações dos telespectadores no Fórum do SBTVD-T, o que reforça
o corte tecnicista e pouco democrático do decreto.

Art. 6º – O SBTVD-T possibilitará:


I – transmissão digital em alta definição (HDTV) e em definição padrão
(SDTV);


II – transmissão digital simultânea para recepção fixa, móvel e portátil,
e;


III – interatividade.

Ao colocar como possibilidade as características presentes neste artigo, o
Estado brasileiro abre mão de fazer política pública e deixa à livre escolha do
mercado a oferta ou não de recepção móvel, portátil e dos serviços interativos,
tornando incerta a inclusão digital prevista nos objetivos do decreto
4.901/2003.

Art. 7º – Será consignado, às concessionárias e autorizadas de serviço de
radiodifusão de sons e imagens, para cada canal outorgado, canal de
radiofreqüência com largura de banda de seis megahertz, a fim de permitir a
transição para a tecnologia digital sem interrupção da transmissão de sinais
analógicos.


§ 1º – O canal referido no caput somente será consignado às concessionárias e
autorizadas cuja exploração do serviço esteja em regularidade com a outorga,
observado o estabelecido no Plano Básico de Distribuição de Canais de Televisão
Digital – PBTVD.


§ 2º – A consignação de canais para as autorizadas e permissionárias do
serviço de retransmissão de televisão obedecerá aos mesmos critérios referidos
no § 1º e, ainda, às condições estabelecidas em norma e cronograma específicos.


O caput e o parágrafo segundo deste artigo, dão margem para o questionamento
judicial do instituto da consignação uma vez que é dispositivo constitucional a
outorga de serviços de radiodifusão e sua aprovação pelo Congresso Nacional. Ao
colocar no mesmo plano os serviços de transmissão e retransmissão de televisão,
o decreto introduz tratamento equânime, não previsto em lei, para modalidades
diferentes (transmissão e retransmissão). O Plano de Distribuição de Canais TV
do país prevê que temos 269 emissoras de TV com 5.704 emissoras de RTV ativadas.
Em fase de ativação temos 167 emissoras de TV e 4.066 de RTV. Ainda existem
vagos 3.194 canais de TV e 2.668 canais para RTV.


O texto pode trazer insegurança aos retransmissores: haverá freqüência
disponível no espectro? Por outro lado, esses retransmissores poderão pedir
isonomia com relação ao tratamento dado às concessionárias como, por exemplo, na
possibilidade de inserção local de publicidade.


Também é passível de questionamento o objeto da consignação uma vez que hoje
um canal de 6 MHz serve para transmitir apenas um programa e, com a tecnologia
digital, a mesma largura de banda poderá transportar pelo menos quatro programas
diferentes. Quando houver a devolução do canal analógico, ao final do período de
transição, na prática os radiodifusores acabarão assumindo a concessão de um
mínimo de quatro canais, chegando ao máximo de oito canais sem passar por um
processo licitatório oneroso, como prevê a legislação.


Já o parágrafo primeiro do mesmo artigo cria outro impasse uma vez que 40%
das emissoras de televisão do Brasil estão com outorgas vencidas e outras tantas
incorrem em irregularidades como interferência em outros canais, dívidas com a
União e exibição de conteúdo inadequado. Se permitir a transição das emissoras
irregulares, o Estado estará incorrendo em ilegalidade e afrontando o próprio
decreto assinado pelo presidente da República.


Art. 8º – O Ministério das Comunicações estabelecerá, no prazo máximo de
sessenta dias a partir da publicação deste Decreto, cronograma para a
consignação dos canais de transmissão digital.


Parágrafo único – O cronograma a que se refere o caput observará o limite de
até sete anos e respeitará a seguinte ordem:


I – Estações geradoras de televisão nas Capitais dos Estados e no Distrito
Federal;


II – Estações geradoras nos demais Municípios;


III – Serviços de retransmissão de televisão nas Capitais dos Estados e no
Distrito Federal, e;


IV – Serviços de retransmissão de televisão nos demais Municípios.


Texto abre margem para a interpretação jurídica de que o Ministério das
Comunicações não tem atribuição para conceder canais sem a prévia aprovação do
Congresso Nacional.


Um novo cronograma de distribuição dos canais, a ser estabelecimento pelo
Minstério, poderá colidir com o Plano Básico de Distribuição de Canais de TV
Digital já aprovado pela Anatel e contribuir para a desorganização ou a
manutenção do congestionamento do espectro de radiofreqüências.


Art. 9º – A consignação de canais de que trata o art. 7º será disciplinada
por instrumento contratual celebrado entre o Ministério das Comunicações e as
outorgadas, com cláusulas que estabeleçam ao menos:


I – prazo para utilização plena do canal previsto no caput, sob pena da
revogação da consignação prevista;


II – condições técnicas mínimas para a utilização do canal consignado.


§ 1º – O Ministério das Comunicações firmará, nos prazos fixados no
cronograma referido no art. 8º, os respectivos instrumentos contratuais.


§ 2º – Celebrado o instrumento contratual a que se refere o caput, a
outorgada deverá apresentar ao Ministério das Comunicações, em prazo não
superior a seis meses, projeto de instalação da estação transmissora.


§ 3º – A outorgada deverá iniciar a transmissão digital em prazo não superior
a dezoito meses, contados a partir da aprovação do projeto, sob pena de
revogação da consignação prevista no art. 7º.


Artigo não deixa claro quando se dará um novo processo licitatório onde as
emissoras e retransmissoras terão que não só pagar pelo direito de uso do
espectro como provar que estão qualificadas para tanto. Sem esta previsão, pode
ser interpretado que a União está doando espaço no espectro aos atuais
concessionários.


Todo interessado em um canal consignado em determinada localidade poderá
reivindicar o direito de disputar a mesma freqüência uma vez que o instituto da
consignação é sempre a título precário e temporário.


No parágrafo terceiro, não é estabelecido o que deverá ser feito com o canal
digital em caso de revogação da consignação por descumprimento do contrato ou
desrespeito ao prazo estipulado inicialmente.


Art. 10 – O período de transição do sistema de transmissão analógica para o
SBTVD-T será de dez anos, contados a partir da publicação deste Decreto.


§ 1º – A transmissão digital de sons e imagens incluirá, durante o período de
transição, a veiculação simultânea da programação em tecnologia analógica.


§ 2º – Os canais utilizados para transmissão analógica serão devolvidos à
União após o prazo de transição previsto no caput.

Persiste, no parágrafo segundo deste artigo, o tom dúbio em relação à parte
da banda do canal digital de 6 MHz que não será utilizada para transmissão de
apenas um programa.
Art. 12 – O Ministério das Comunicações deverá consignar, nos municípios
contemplados no PBTVD e nos limites nele estabelecidos, pelo menos quatro canais
digitais de radiofreqüência com largura de banda de seis megahertz cada para a
exploração direta pela União Federal.
Consignação de canais exclusivos à União não aparece como parte do processo
de transição, como no caso dos demais exploradores do serviço de radiodifusão de
sons e imagens. Privilégio reforça a suspeita de que esta figura será mais do
que temporária, sobrepujando a figura da outorga e se consolidando como fato
consumado, gerando direitos adquiridos.

Art. 13 – A União poderá explorar o serviço de radiodifusão de sons e imagens
em tecnologia digital, observadas as normas de operação compartilhada a serem
fixadas pelo Ministério das Comunicações, dentre outros, para transmissão
de:


I – Canal do Poder Executivo: para transmissão de atos, trabalhos, projetos,
sessões e eventos do Poder Executivo;


II – Canal de Educação: para transmissão destinada ao desenvolvimento e
aprimoramento, entre outros, do ensino à distância de alunos e capacitação de
professores;


III – Canal de Cultura: para transmissão destinada a produções culturais e
programas regionais;


IV – Canal de Cidadania: para transmissão de programações das comunidades
locais, bem como para divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos
dos poderes públicos federal, estadual e municipal.


§ 1º. O Ministério das Comunicações estimulará a celebração de convênios
necessários à viabilização das programações do canal de cidadania previsto no
inciso IV.


§ 2º. O Canal de Cidadania poderá oferecer aplicações de serviços públicos de
governo eletrônico no âmbito federal, estadual e municipal.


Texto não especifica qual âmbito do Poder Executivo terá acesso ao canal
referido no inciso I. Se houver utilização compartilhada, o governo federal terá
preferência sobre prefeituras e governos estaduais?


Entidades e instituições não-governamentais somente terão acesso ao Canal de
Cidadania por meio de convênios mediados pelos Poderes Públicos, abrindo margem
para o uso dos canais como instrumento de proselitismo político e religioso.


Canal reservado às comunidades locais ainda poderá ter que dividir espaço com
serviços de governo eletrônico, fazendo com que o acesso a estes canais não seja
um direito pleno do cidadão.


Não está expressos quem serão os operadores dos canais de Cultura e de
Educação.


Não há previsão para o financiamento dos quatro canais criados por este
artigo.

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Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação