Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Deixar a vida para entrar no espetáculo

Psicanalistas, psicólogos e criminologistas vêm apontando traços comuns no perfil desses sujeitos que, de repente – e de uma vez –, descarregam suas armas contra adolescentes dentro da escola. Os assassinos são sempre do sexo masculino. São retraídos. São jovens. São suicidas. Os hábitos também são comuns. No período anterior ao crime – que pode se estender por meses ou mesmo por anos –, eles mantêm, em geral, uma rotina reclusa, sobre a qual não gostam de conversar. Freqüentam sites sobre armas e também sobre fundamentalismos, religiosos ou políticos. Procuram se adestrar em práticas militares. Depois, quando é tarde demais, descobre-se que deixavam pistas, algumas até conscientemente, indicando tendências destrutivas. Acontece que essas pistas não eram notadas. Aí, dizem alguns psicólogos, estaria o gatilho de tudo: eles não eram notados. Eles não conseguiam ser notados.


Nesse ponto, a análise dos perfis psicológicos, que é da competência dos psicanalistas e criminologistas, encontra nexo com o estudo das linguagens e da comunicação social. Se é verdade que o gesto monstruoso tem ao menos parte de sua origem no impulso agora incontrolável de se fazer notar – o que é matéria para os psicanalistas –, o lugar em que esse gesto procura se instalar, para que seu autor seja finalmente olhado, é a manchete de jornal – e isso é objeto dos estudos da comunicação. Esse tipo de homicida teria sua gênese, como todos os outros, no perfil psicológico, mas o seu gesto final seria da ordem do espetáculo. Por isso, é possível que parte da compreensão desses crimes ainda venha a ser completada pelos estudos da mídia, uma vez que, nesse caso, o desejo de matar se confunde com o desejo de platéia.


Na civilização da imagem – que é a nossa –, a invisibilidade pode ser um inferno em vida. Não ser visto, ou, mais que isso, não conseguir ser ao menos visível, equivale a não existir. Um adolescente perseguido pelo fantasma da invisibilidade talvez se sinta como se, olhando-se num grande espelho, ao lado dos colegas, não conseguisse ver refletida a sua própria imagem ao lado das imagens dos outros. Num tempo em que todas as representações só existem quando passam pelas imagens – imagens reconhecíveis e valorizadas pela comunidade a que se pertence –, livrar-se da invisibilidade é uma questão de vida ou morte.


O terrorismo em causa própria


É óbvio que são muitos os criminosos que, pela violência, buscam uma revanche. Aqui, no entanto, existe uma particularidade mórbida: o vetor desse acerto de contas é, invariavelmente, a chamada ‘mídia’. Esses rapazes que matam seus pares aos montes e, assim, tentam trocar a insignificância pelo superestrelato, que dá picos de audiência e bate recordes de vendagem nas bancas, não estariam saciados e não se sentiriam vingados se cometessem suas atrocidades no escuro, longe das platéias. De escuridão e invisibilidade, já basta sua biografia. Em seu apogeu de sangue, o fundamental é ser vistos. As mortes são um atalho – necessário, por certo, mas não passam de um atalho – para a fama total. Assim, seu acerto de contas não dispensa os holofotes.


A constatação é perturbadora. Por tudo o que se pode observar nesses crimes, os homicídios só acontecem porque seus autores desejam ser olhados – e, se é que alguma certeza pulsa nos descaminhos do desejo, eles têm a certeza de que serão olhados. Eles não calculam, racionalmente, o crime indescritível como se ele fosse uma estratégia. Bem ao contrário, eles internalizaram, inconscientemente, a lógica da visibilidade midiática como se esta fosse a única lógica possível da existência. Com suas atrocidades, esses pobres meninos monstruosos suplicam uma esmola ao imenso olhar que transborda pelo mundo. Por isso, eles se dirigem à mídia na hora de matar. É com ela que negociam. É com ela que conversam, seja por meio de uma carta-testamento ou de um vídeo que em seguida vai parar no YouTube. Sim, eles sabem que serão olhados, mas não sabem que matam por isso.


Não obstante, as crianças que morreram numa escola do Realengo, no Rio de Janeiro, no dia 7 de abril de 2011, morreram por isso e para isso. Suas vidas foram o atalho para o assassino carente de olhar. Morreram como se fizessem uma abertura de um grande show, cujo clímax é o suicídio de seu algoz. Nesse ritual, o assassino firma um pacto: em troca da fama que sempre quis ter, ele mata e também se mata. Eis o que vai redimi-lo. Não há vida depois da morte: há o espetáculo e isso lhe basta. Ele é o terrorista em causa própria. Sim, um terrorista, pois o terror que inspira não se esgota com ele: depois dele, virão outros. O medo aumenta.


A forma vazia da morte múltipla


Falei há pouco de um nexo entre o psiquismo desses rapazes e as representações imaginárias nos meios de comunicação. Esse nexo nos ajuda a entender o que ainda desconcerta analistas que não vêem nesses crimes uma dimensão específica que eles têm: a dimensão de um ato de propaganda, que procura tomar de assalto o olhar do mundo.


Esse tipo de crime é concebido e encenado como atentado midiático – e isso é o que ele tem de mais central. O seu formato é padronizado, ou, para sermos exatos, industrialmente padronizado. Assim como há gêneros de filme, todos eles industrialmente padronizados, assim como também foram industrialmente padronizados os gêneros de orientação sexual, os gestuais e estereótipos religiosos, de estilos musicais, as manifestações políticas, esse tipo de assassinato de múltiplas vítimas simultâneas se articula como linguagem midiática.


Tanto é assim que essa modalidade de crime obedece a um protocolo em sua forma: os disparos são rápidos e se prolongam até que venha a resistência, trazendo consigo o olhar da sociedade alarmada. Além da forma, porém, não há mais nada. Essa modalidade de crime não tem conteúdo nenhum. Ele é uma forma vazia, que se alastra pelo mundo na mesma onda em que a indústria do entretenimento abraça os continentes. É aparência vazia. Tem o formato e o ritmo milimetricamente delineados pelo espetáculo – e não tem sentido.


Visto pela psicologia, o seu protagonista mata os semelhantes para matar seus próprios demônios, que cortaram seu acesso à razão. Visto como um fenômeno de comunicação, porém, ele assume outra figura. Ele irrompe na cena porque matou e também porque se matou. Ou, então, ele matou e se matou para, finalmente, aparecer. Ele morreu para existir naquela instância de representação que o ignorava. E isso é tudo.


Gostava de música americana


Alguém então perguntaria: mas então esse é um formato de crime tipicamente americano? A resposta seria sim, ele é americano na mesma medida em que o rock é americano, em que o filme de ação é americano, em que o paradigma de juventude da nossa era é um pouco inglês, um pouco francês, vá lá, mas é fundamentalmente americano, assim como a democracia de massas é tipicamente americana. Ele é americano assim como as narrativas que nos amarram são predominantemente americanas. Ele é americano, por certo, mas não isso não significa que ele seja culpa dos americanos, por favor.


A tendência de que essa modalidade de crime se banalize está definitivamente instalada. No curso da banalização, ela irá se diluir como forma até perder o interesse. Antes disso, no entanto, os jornalistas terão de se ocupar, ainda outras vezes, e sempre tragicamente, de horrores análogos. É possível que eles se indaguem, às vezes, se devem dedicar tanto destaque a essas coberturas. É possível que se questionem: será que tanta manchete, tanta capa de revista, tanto horário nobre, será que tudo isso não vai encorajar outros criminosos com o mesmo perfil? Será que outros, que também se torturam ao não ver sua imagem refletida no brilho do olhar das meninas da escola, não vão empunhar uma metralhadora para pleitear seu lugar de destaque na galeria infame que nós mesmos, jornalistas, ajudamos a fabricar? Se é dever da imprensa noticiar os males que se fazem às escondidas, da corrupção ao genocídio, é dever dela amplificar as matanças que só foram perpetradas porque desejavam a atenção dos holofotes?


Mesmo assim, o jornalismo continuará a noticiar o que se vê impelido a noticiar, e virão outros para a mesma galeria. Não há o que o jornalista possa fazer. Ou há pouco, muito pouco: omitir um nome aqui, atenuar a dramaticidade ali, tudo isso é pouco. No mais, não cabe ao jornalismo resolver esse problema. Aliás, o jornalismo não dispõe de mandato – nem da ontologia, nem da epistemologia – que lhe permita equacionar tamanho problema.


Esse problema apenas passa pelo jornalismo, mas não começa nem se resolve no jornalismo. Ele ultrapassa o campo exíguo da imprensa e mergulha nos subterrâneos de uma sociedade que não se cansa de perguntar se há felicidade do outro lado do muro do ideal do bem, que aprendeu a idolatrar a força dos que dizem viver além da lei, que acredita que a dimensão mais sublime da ética está nos grunhidos de Marlon Brando como capo mafioso, que entende a vida como se a vida fosse um filme, no qual é melhor ter o papel de bandido do que não ter papel nenhum. Se a fama vale mais do que a alma e do que a vida, por que não dissecar e expor os interstícios da personalidade dos que matam para virar notícia póstuma? O que pode haver de mais intrigante, fascinante e repulsivo que isso?


Assim, as estrelas do mal são notícia. Os que sacrificam os nossos inocentes são a nossa esfinge: não temos como ignorá-los; não temos como não noticiá-los. Mas teremos como superá-los? Iremos escapar deles?


A celebridade do que existe de mais vil


O jornalismo não dispõe de argumentos para se recusar a dizer o nome desses criminosos todos. Não tem como não dar a foto. Não pode sonegar às pessoas o que as pessoas querem saber. E têm o direito de saber. Agora: que é perturbador, é muito perturbador. Um sujeito vai lá, mata uma porção de crianças, e ainda ganha de presente a fama adorada, e vazia, pela qual matou – e morreu. E sabemos todos que virão outros.

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Jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM