Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Delimitação conceitual das TVs estatal, pública e privada

Em artigo para este Observatório (‘A televisão que não ousa dizer o nome‘), Gabriel Priolli levanta oportunamente o problema da delimitação conceitual entre a televisão pública e estatal, exigência posta pelo princípio constitucional da complementaridade dos sistemas de radiodifusão.

Realmente, constitui um enorme desafio traçar as fronteiras entre a televisão pública e estatal. Tal tarefa decorre de imposição da Constituição do Brasil de 1988 que, contudo, até hoje não foi cumprida pelo legislador. Vale dizer, o marco regulatório dos serviços de televisão por radiodifusão, representado basicamente pela Lei nº 4.117/62, não diferencia os conceitos e, conseqüentemente, sequer estabelece regimes jurídicos diferentes.

A questão aqui não é saber se precisamos de televisão estatal ou pública. Isso porque a Constituição impõe três sistemas de radiodifusão (público, privado e estatal) que precisam ser organizados pelo legislador e, assim, serem prestados pelos poderes estatais, sociedade civil e pelo mercado. Enfim, trata-se de obedecer à normatividade do texto constitucional.

Normas e procedimentos

O princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão (privado, público e estatal), contido no art. 223 da Constituição, exige um novo modelo de disciplina dos serviços de televisão para além do paradigma clássico, voltado unicamente para o serviço público de televisão por radiodifusão, associado à reserva da atividade em favor do Estado.

O novo modelo, que ora se defende, considera que os serviços de televisão devem ser classificados como: (i) serviço público privativo do Estado (sistema de radiodifusão estatal), (ii) serviço público não privativo (sistema de radiodifusão público) e (iii) atividade econômica em sentido estrito (sistema de radiodifusão privado).

A Constituição impõe a complementaridade entre os setores de televisão por radiodifusão privado, público e estatal, o que, evidentemente, implica harmonia e colaboração entre as estruturas de comunicação social. Em outras palavras, garante-se o equilíbrio apropriado entre os campos de comunicação social com funções diferenciadas, porém, complementares, uma vez que as diferenças de fundamentos, evitando-se, assim, distorções arbitrárias no processo de comunicação social.

Trata-se de uma manifestação particular do princípio do pluralismo no campo da comunicação social por meio da radiodifusão em prol da estruturação policêntrica do sistema de radiodifusão, isto é, em favor da diversidade das fontes de informação e da multiplicidade de conteúdos audiovisuais para a sociedade brasileira. Vale dizer, a interpretação da referida norma constitucional deve ser feita com base no princípio do pluralismo nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdo audiovisual diverso). Assim deve ser porque tal norma tem por função a oferta equilibrada de programas de televisão nos setores privado, público e estatal, cabendo ao Estado a adoção de normas e procedimentos para cumprir tal tarefa, que logo a seguir serão expostos.

Distribuição dos bens

A organização dos sistemas de televisão por radiodifusão há de ser feita pelo Estado, no exercício de sua função regulatória (art. 174), conforme os objetivos da regulação. Há, aqui, uma forte conexão entre o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão e o conceito de regulação. A idéia de complementaridade representa a negação de uma relação de hierarquia entre os sistemas de radiodifusão; e, por conseqüência, requer a funcionalidade integrada dentro do sistema de comunicação social.

O princípio da complementaridade exige, ainda, a fixação de critérios de facilitação do acesso prioritário às freqüências do espaço eletromagnético pelo setor público e pelo setor estatal. Isto porque, em face da hegemonia da radiodifusão privada em nosso país, há o dever de que as freqüências disponíveis para uso de canais de televisão sejam, preferencialmente, outorgadas aos setores estatal e público (aqueles responsáveis pela prestação de serviços públicos privativos e não privativos do Estado), pois em relação aos mesmos existem maiores exigências em favor dos interesses públicos e das obrigações constitucionais. Trata-se de uma medida de correção das oportunidades comunicativas no interior da comunicação social, sendo que a própria noção de regulação é que ampara tal medida de planejamento administrativo quanto à gestão do espaço radioelétrico, voltada para o equilíbrio entre os sistemas.

Enfim, a atribuição prioritária de freqüências justifica-se em razão da prestação do serviço público. Este, é importante destacar, não se limita à correção das falhas estruturais e (ou) conjunturais do sistema de radiodifusão privado (mercado de televisão). A sua função consiste em atuar mesmo quando o sistema comercial, hipoteticamente, funciona bem. Vale dizer, a existência do regime de serviço público de televisão não está atrelada às falhas do mercado (um paradigma liberal); ao contrário, sua causa originária encontra-se em razões que o transcendem, alcançando bens não-econômicos que necessitam de difusão perante o público em geral, daí a exigência do desempenho da função estatal de distribuição dos bens, por exemplo, culturais.

Educação e cultura

Os serviços públicos consistem em importante mecanismo de garantia dos direitos fundamentais. Alerte-se, contudo, que não se trata do único meio de satisfação dos mesmos. Nesse sentido, o serviço público de televisão é uma das formas de realização dos direitos à liberdade de expressão, liberdade artística, informação (inclusive informação jornalística), culturais, à educação e à comunicação social, entre outros.

No sistema de radiodifusão estatal, há maior espaço para a realização do direito dos cidadãos à informação de caráter institucional e, ao mesmo tempo, de cumprimento do dever do Estado em termos de comunicação institucional. Isto implica a possibilidade de criação e manutenção de canais de televisão para atendimento da referida obrigação.

Com efeito, apesar de a Constituição diferenciar os sistemas de radiodifusão estatal e pública, na prática há a confusão conceitual entre a televisão estatal e a televisão pública.

Daí a necessidade de delimitação do conceito de televisão estatal. Esta constitui uma modalidade de serviço público privativo do Estado, sendo que uma de suas finalidades é assegurar a comunicação social de caráter institucional, nos termos do art. 37, §1º da CF, a respeito dos atos e (ou) fatos relacionados ao Poder Executivo, ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário.

O poder público tem deveres a cumprir no que tange à educação e à cultura. Em razão disso, a televisão estatal não se reduz à realização da comunicação institucional. Nesse sentido, é possível que um canal de televisão integrante do sistema estatal veicule tanto conteúdos relacionados à informação institucional quanto à educação e à cultura.

Sem autonomia institucional

A conceituação da televisão estatal deve estar vinculada à titularidade exclusiva e o controle do Estado sobre a programação. O núcleo de sua definição corresponde às idéias de competência estatal quanto à organização e prestação do serviço de televisão por radiodifusão. Daí, a incompatibilidade entre a livre iniciativa e o sistema estatal.

Já o sistema de radiodifusão público possibilita a concretização dos direitos à educação e à cultura por intermédio das televisões educativas e, especialmente, no caso das televisões comunitárias, o exercício direto pelos cidadãos das liberdades de expressão e de comunicação social. Em outras palavras, o sistema público é o âmbito, por excelência, para a realização dos direitos sociais relacionados à educação e à cultura.

A televisão pública é uma das modalidades de serviço de televisão, integrante do sistema de radiodifusão público, caracterizada como um serviço público não-privativo do Estado cuja função primordial é a execução de serviços sociais relacionados à educação, à cultura e à informação, realizada por organizações independentes do Estado, com a participação e o controle social, que não integram a administração pública e que não possuem fins lucrativos, submetidos a um regime de direito público de modo preponderante.

Em verdade, uma verdadeira televisão pública, independente do governo, ainda está para ser criada, eis que a modelagem jurídica tradicional não garante tal autonomia institucional. Nesse sentido, a denominada televisão ‘pública’ criada pela MP nº 398/2007 é, em verdade, uma televisão estatal, eis que criada, mantida e controlada pela União.

Organizações sociais

O critério essencial para a caracterização da televisão pública é a independência diante do poder público, assegurada mediante a participação e o controle social, particularmente o poder de auto-organização interna com a indicação de seus administradores e, sobretudo, a nomeação de seu presidente, vedando-se que o chefe do Poder Executivo (seja presidente da República, seja governador do Estado) escolha o responsável pela direção da entidade. Em verdade, trata-se de uma verdadeira garantia constitucional de acesso dos cidadãos e dos grupos sociais ao meio de comunicação social consubstanciado na televisão por radiodifusão.

Quanto às emissoras de televisão educativas, algumas considerações precisam ser feitas.

Elas encontram-se, em sua grande maioria, no âmbito da estrutura das administrações públicas.

Em função disso, infelizmente, elas estão sob a influência dos governos que procuram imprimir uma determinada visão ideológica quanto ao conteúdo da programação de televisão. Para evitar isto, faz-se necessária a independência dessas estações de televisão para se tornarem de fato e de direito televisões públicas não-estatais, não vinculadas à esfera governamental.

Daí porque um dos caminhos para essa garantia de autonomia é a sua respectiva transformação em organizações sociais (exemplo: Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – ACERP, que possui contrato de gestão com a União) ou organizações civis de interesse público (exemplo: Associação de Desenvolvimento da Radiodifusão de Minas Gerais, que possui termo de parceria com a Fundação TV Minas Cultural e Educativa), as quais integram o terceiro setor, voltado para a execução de atividades não-exclusivas do Estado, justamente os serviços sociais relacionados à educação e à cultura.

Prestação de serviços

Evidentemente que a mudança da clássica forma jurídica fundação de direito público ou de direito privado adotada pela televisão educativa para um modelo de organização social ou organização civil de interesse público por si só não garante a autonomia da entidade em face do governo.

Com efeito, a finalidade da televisão educativa não é, por óbvio, promover a figura do governante de plantão. Se ocorrer o uso abusivo do meio de comunicação social em favor de pessoas ligadas ao governo haverá a violação da norma constitucional que impõe a realização da publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos em termos educativo, informativo ou de orientação social, vedando-se a utilização de nomes, símbolos e imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos. A par da violação à referida norma, poderá ocorrer ofensa à Lei de Improbidade Administrativa, na medida em que recursos públicos oriundos dos contribuintes destinados à operação da televisão educativa servirão ao custeio da atividade promocional do governante. Daí porque, em ocorrendo desvios na gestão da emissora, deve ser promovida ação judicial para a apuração da responsabilidade das pessoas envolvidas.

Além dissso, do ponto de vista do direito positivo, faz-se necessária a revisão do conceito de televisão educativa, eis que desatualizado diante do processo de evolução histórico-social. O Decreto-lei nº 236/67 dispõe que a ‘televisão educativa se destinará à divulgação de programas educacionais, mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates’ (art. 13).

Por óbvio, não é possível limitar o papel educativo de uma emissora de televisão à veiculação de ‘aulas, conferências, palestras e debates’, sob pena de comprometer a própria finalidade educacional. Daí porque tal regra há de ser revisada para garantir a autonomia à emissora de televisão para definir os meios pelos quais atenderá ao conteúdo educacional.

E mais, defende-se que as televisões educativas no âmbito da radiodifusão não devem se restringir às universidades, tal como ocorre no modelo dos serviços de TV a cabo. Pelo contrário, é imprescindível estender a faculdade de prestação de serviços às instituições de ensino superior. Em que pese a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tratar, de modo diferenciado, as duas entidades, não existe razão jurídica que justifique a exclusão delas do sistema de radiodifusão público. Em outras palavras, a finalidade educacional, mediante a atividade de televisão por radiodifusão, pode ser atendida tanto pelas universidades quanto pelas instituições de ensino superior.

Direitos fundamentais

A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados sugere a adoção da obrigatoriedade da vinculação das emissoras com fins educativos a instituições de ensino. É um caminho, porém não suficiente para garantir a sua respectiva autonomia em face dos governos. Nada impede que, apesar de vinculada a uma instituição de ensino, a televisão educativa sirva aos propósitos políticos do governante.

Talvez a solução passe pela definição clara da finalidade da televisão educativa e a aplicação de sanção de cancelamento do ato de outorga, se desviada desse fim. Outra alternativa é prever como hipótese de perda do mandato eletivo o abuso nos meios de comunicação social. No período eleitoral, já há essa previsão para fins de proteção da normalidade e legitimidade do pleito na Lei Complementar nº 64/90 (art. 22); falta estender a sanção para alcançar todo o período de exercício do cargo público. Outra possibilidade para evitar o caciquismo político é prever a hipótese de perda do mandato de deputados e senadores para aqueles que possuírem direta ou indiretamente estações de rádio e televisão.

O enraizamento da democracia na sociedade brasileira depende do combate à excessiva interferência política sobre os meios de comunicação, evitando-se a sobreposição do interesse pessoal acima do interesse republicano.

Por outro lado, quanto à televisão comercial, observe-se que no sistema privado há maior autonomia privada das emissoras de televisão quanto à execução dos aludidos direitos em função de sua liberdade de radiodifusão e, conseqüentemente, sua liberdade de programação. Os princípios constitucionais catalogados no art. 221 da CF, relacionados à produção e à programação das emissoras de rádio e televisão, consistem em manifestação especial dos direitos fundamentais à liberdade de expressão artística, à educação, à cultura e à informação jornalística, livre iniciativa e dignidade da pessoa humana, o que será visto mais à frente em item específico.

Pluralismo democrático

A televisão privada é aquela de titularidade dos agentes econômicos que oferecem uma programação voltada para o atendimento de sua finalidade lucrativa.

Atualmente, já prevalece a lógica de mercado no sistema de radiodifusão privado, porém a doutrina e a jurisprudência tratam, ainda, como serviço público privativo do Estado. Um conceito só se justifica se ele refletir a realidade dos fatos e do direito. Mostra-se inadequado insistir na manutenção da utilização de uma noção clássica, sendo que as realidades constitucional, social e tecnológica apontam para a necessária atualização de seu sentido.

Assim, o conceito do passado deve ser transformado e adaptado, conforme as circunstâncias do presente, com vistas à regulação setorial que produzirá efeitos para o futuro. De um lado, possibilita-se a sua permanência (no âmbito dos sistemas de radiodifusão estatal e público); de outro lado, viabiliza-se a sua mudança (com o seu afastamento do sistema de radiodifusão privado).

Por sua vez, o eixo de estruturação dos três sistemas de radiodifusão consiste na liberdade de comunicação. Esta manifesta-se de modo especial no campo da comunicação social (arts. 220 a 224, da CF); no entanto, não se confunde com a liberdade de comunicação pessoal ou de âmbito coletivo (art. 5.o, IX, CF). Com efeito, é sintomático que o princípio da complementaridade esteja contemplado no capítulo constitucional dedicado à Comunicação Social. Portanto, em virtude disso, os ‘sistemas de comunicação de massa’ atuam como mecanismos de realização das liberdades comunicativas asseguradas aos cidadãos e à sociedade. Tais liberdades servem tanto à autodeterminação individual quanto à autodeterminação democrática do povo brasileiro. Daí a imprescindibilidade da pluralidade das fontes de informação em um país proclamado como Estado Democrático de Direito em garantia da livre formação da opinião pública.

Enfim, o serviço de televisão é uma atividade que deve ser compartilhada entre o Estado, a sociedade e o mercado, de modo a possibilitar a realização dos direitos fundamentais à informação, à cultura, à educação, entre outros. O pluralismo democrático na comunicação social somente será garantido mediante a estruturação policêntrica dos sistemas de radiodifusão, assegurando-se a existência de emissoras de televisão públicas, estatais e privadas.

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Advogado, doutor em Direito pela USP, Joinville, SC