Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Depois da guerra, as concessões

Passado um mês da guerra entre Globo e Record, o evento que mais interessa a ambas emissoras encontra-se no Congresso Nacional. Nesse exato momento, a renovação das concessões públicas da Globo em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte, tal como as da Record em Itajaí e na capital fluminense, aguardam a edição do decreto legislativo. Mesmo com toda a troca de acusações entre as duas maiores emissoras do país, não houve qualquer questionamento do assunto por parte dos parlamentares, nesta que é a última etapa do processo, iniciado em 2007 e que só será reiniciado em 15 anos.

A concessão da Record para a cidade de São Paulo, junto a outras 16 emissoras, também se subordinará ao trâmite de renovação de suas licenças no Congresso. Em tempo, a maior parte das outorgas expirou há mais de seis meses. É provável que a ausência do debate sobre o papel da radiodifusão privada na sociedade se repita no processo. Afinal, com a iminência de um período eleitoral, qual deputado, senador ou presidente teria disposição de enfrentar as maiores empresas de comunicação no país?

Mas agora o momento seria propício para um debate efetivo. Nunca tantas denúncias de mau uso de um serviço no campo da comunicação social foram ao ar em horário nobre. Integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) foram acusados pelos crimes de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. O Ministério Público (MP) suspeita que o desvio de R$ 3,9 bilhões beneficiou oito empresas de comunicação, entre elas a rádio e a TV da Record. O fato de a emissora receber cerca de R$ 300 milhões anuais da IURD, 30% do seu faturamento, por um horário de baixa audiência na madrugada, corrobora a suspeita.

Votação nominal

Para desviar o foco dos noticiários policiais, a Rede Record, através dos seus meios de comunicação, iniciou uma série de acusações contra as Organizações Globo, até então maior divulgadora do escândalo evangélico. Segundo a emissora paulista, a TV Globo interferiu a favor de Fernando Collor de Mello em 1989, prejudicando Lula no debate entre os candidatos a presidente, tal como havia tentado fazer com Leonel Brizola na disputa para o Governo do Rio de Janeiro, no que ficou conhecido como ‘caso Proconsult’, em 1982, e com o mesmo Lula, em 2006.

A emissora da família Marinho ainda foi apontada por desviar recursos públicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), quando contraiu um empréstimo para criar a Globo Cabo; desrespeitar a liberdade de manifestação religiosa, ao entrar com câmeras escondidas nos templos da Igreja Universal; e praticar a concentração de informação, contrariando assim o parágrafo 5º, do artigo 220 da Constituição Federal, que veda, direta ou indiretamente, os meios de comunicação de se tornarem objeto de monopólio ou oligopólio.

Ainda de acordo com a Constituição, a forma como as duas empresas discorreram sobre o assunto, privilegiando os seus interesses privados em detrimento dos públicos, já configura uma infração às normas de utilização de uma concessão pública de radiodifusão. Em nada, tal comportamento atende os princípios do artigo 221, que cobra, por exemplo, preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.

Em um país com título de sério, todos esses fatores não poderiam ser desconsiderados em um momento de renovação de outorga. É o direito de acesso a informação e cultura de um povo que está em jogo. O Legislativo é o poder responsável pela avaliação e deliberação do serviço público; porém, cabe ao presidente da República o indicativo de manter ou não a concessão, como vem acontecendo com mais polêmica na Argentina e na Venezuela. Estes, aliás, temas muito mal abordados pela mídia brasileira, às vezes de forma distorcida, sem considerar a amplitude do problema.

A verdade é que, hoje, o sistema de veto, que impede a renovação automática da concessão, tornou-se impraticável por exigir a aprovação de dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal, quando muitos parlamentares são proprietários de veículos de comunicação ou temem o efeito devastador da mídia sobre qualquer base eleitoral. Fica mais fácil, por exemplo, impor barreiras para as licenças das rádios comunitárias e educativas.

Record não é a alternativa

Dentre as várias acusações que as emissoras Globo e Record trocaram, destaca-se o alerta do oligopólio da informação. A emissora de Edir Macedo vangloriou-se por ter exposto a rival perante milhões de brasileiros em horário nobre, despontando assim como protagonista da pluralidade. Paira a dúvida: desprezando a acusação de que a Record cresceu com a contribuição (decisiva) da Universal, poderia a emissora ser considerada uma alternativa no cenário midiático nacional?

A resposta é não. A Record não é alternativa simplesmente porque não se propõe a ser. Ela quer o posto da Rede Globo, seus profissionais, programas, padrão de qualidade e liderança na audiência. Em junho de 2008, a emissora assumiu o referencial da Globo como horizonte, pelo menos na opinião do jornal inglês Financial Times. À época, o diretor da Record Alexandre Raposo afirmou usar ‘o condicionamento que já está presente no telespectador’ como estratégia de crescimento.

A emissora da IURD investiu forte em dramaturgia, telejornalismo, esporte e programas de variedades. Chegou a tentar se livrar do rótulo de popularesca para atrair a elite. No entanto, desde o sucesso de A Fazenda a emissora retoma a linha menos requintada, ganhando, inclusive, importante reforço chamado Gugu Liberato, que fará na emissora exatamente o mesmo que vinha fazendo há mais de 15 anos no programa Domingo Legal, do SBT.

Para ir além da Globo, a Record corre atrás de tudo que dá audiência em alguma emissora, a exemplo das produções mexicanas que marcarem época no SBT e do apresentador Marcos Mión, da MTV. Porém, sem novidades. Apenas mais do mesmo, seja partindo de experiências nacionais que já deram certo, seja copiando-importando-adaptando enlatados estrangeiros, como acontece em Bela, a Feia.

Para completar, Record e Globo têm a mesma linha política quando se trata de discutir os limites da radiodifusão no país. As empresas compõem a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que não só se retirou da organização da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) como também tentou o seu esvaziamento. Algo parecido ocorreu quando as duas emissoras fizeram frente pelo modelo japonês de TV digital ou influenciaram as restrições no uso da multiprogramação no Brasil, para evitar novas fragilizações em seus modelos de negócio.

Se a Record quisesse mesmo ser a alternativa, ela deveria cumprir as obrigações legais implícitas a uma concessão pública de radiodifusão. Desse modo, teria muito mais legitimidade para cobrar publicamente da Globo algo que ela não gostaria de ver em si mesma. Aí sim, talvez, a Record se tornaria aquilo que os movimentos contra-hegemônicos não messiânicos buscam: instrumentos de luta para a transformação da realidade. Mas isso é inviável, considerando o vício de origem da emissora.

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Respectivamente, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos; graduando em Comunicação Social – Jornalismo na mesma universidade