Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Discussão sobre controle vem do século 17

Os debates em torno da tensão entre liberdade de imprensa, abusos e a necessidade de se pensar a questão do controle da mídia e seu papel na democracia não são novidade. Essa dicotomia alicerça discussões sobre a imprensa que vigoraram na França do século 17 aos primeiros decênios do século 19. Encarar a liberdade de imprensa como uma das mais importantes liberdades, por vezes a liberdade fundamental, é herança do Iluminismo e dos liberais; Voltaire, Rousseau e Diderot compartilhavam esse ideal. Desde os primórdios da imprensa, ela era considerada um dos pilares dos Estados que se fundavam sob a reivindicação de liberdade, da publicidade e da razão.

Na concepção do Iluminismo, ao assegurar a publicidade, o controle dos atos do poder público e o triunfo da verdade e da razão, a liberdade de imprensa favoreceria a aplicação de todas as demais liberdades. De outro lado, a ausência desse direito, a imposição da censura e da autorização prévia significaria a destruição de todas as demais liberdades.

Os possíveis inconvenientes causados pela liberdade de imprensa – como ‘a revolta’, os ‘tumultos populares’, ‘a calúnia’, ‘a difamação’ – seriam minúsculos diante das vantagens e não justificariam qualquer medida de restrição da imprensa. Convém lembram que, no início da segunda metade do século 18, a França, berço do Iluminismo, vivia sob a égide da censura e da autorização prévia.

Prerrogativa acordada pelo rei

Na Enciclopédia, editada entre 1751 e 1772 sob a direção de Diderot, o verbete ‘Imprensa’ responde a esses questionamentos:

‘Os inconvenientes dessa liberdade são pouco consideráveis em relação às suas vantagens, que deveria ser o direito comum do universo. No verbete ‘Libelo’, esse tema é retomado e complementado com a diferenciação entre países que permitem e que proíbem a liberdade de expressão: ‘Geralmente, todo país no qual não é permitido pensar e escrever seus pensamentos deve necessariamente cair na estupidez, na superstição e na barbárie. (…) Na democracia, não convém coibir os libelos, pois quem os pune criminalmente são os governos absolutistas e aristocráticos’ [os verbetes ‘Imprensa’ e ‘Libelo’ são do cavaleiro de Jaucourt, que foi autor de 17 mil artigos sobre os mais variados assuntos].

No fim do século 18, a Inglaterra era um exemplo de relativa liberdade de imprensa. Mesmo se a imprensa era ainda submetida à caução, a censura tinha sido abolida em 1695, o que resultou em uma floração de publicações. Na França, a liberdade de imprensa era associada pelos seus defensores ao crescimento econômico da Inglaterra. O poeta Mirabeau, por exemplo, afirmava: ‘Tirem da Inglaterra essa preciosa liberdade que ela desfruta, e em breve, essa nação florescente não será mais que um objeto de piedade para todos aqueles em que ela excita a inveja e merece a admiração’ [MIRABEAU, apud BELLANGER, Claude, GODECHOT, Jacques, GUIRAL, Pierre, TERROU, Fernand (dir.) Histoire Générale de la Presse Française, volume I : Des origines à 1814. Paris: PUF, 1969, p. 414].

É exatamente a obra de um inglês que Mirabeau resgata para pedir a liberdade de imprensa no momento da convocação dos Estados Gerais de 1788. Quando em 1644, John Milton publica Areopagitica. Pela liberdade de imprimir sem autorização nem censura, o parlamento do seu país tinha acabado de restabelecer a autorização prévia para a publicação de livros e a impressão era uma prerrogativa acordada pelo monarca às editoras autorizadas. Nessa época, liberdade de imprensa significava a liberdade de imprimir todo tipo de material sem censura nem autorização e, sobretudo, a liberdade de expressão dos pensamentos, opiniões e idéias.

Palavra emancipada

Na sua obra Escritos Políticos [MILTON, John. Écrits politiques. Editions Belin, 1993], Milton prescreve uma liberdade de criação e descreve as vantagens da latitude da escolha e os perigos da censura. Areopagitica é uma reivindicação da liberdade de consciência. Milton sugere que o fim da censura e o acesso a todas as opiniões e a todos os argumentos representam a possibilidade de fazer escolhas utilizando a razão e a própria consciência. Um conhecimento sem as limitações da censura tornaria as pessoas capazes de reconhecer a verdade.

Em 1788, Mirabeau aproveita a tácita supressão da censura prévia no momento da Convocação do Conselho dos Estados Gerais – que convida ‘todos os sábios e pessoas instruídas’ para manifestar sua opinião – e lança um libelo pela liberdade de imprensa. Tratou-se de uma versão francesa do texto de Milton, no qual Mirabeau apagou as indicações históricas ou religiosas e atualizou as posições de Milton nas áreas em que o pensamento do Iluminismo havia prolongado as teses do século 17. Isso se deu, sobretudo, em relação ao necessário vínculo entre a liberdade de pensamento e o bom estado da sociedade, e a ideia de avanço na história – Mirabeau emprega a palavra ‘progresso’. O subtítulo original, For the Liberty of Unlicensed Printing, se torna Sur la liberté de la presse.

No limiar no século 19, a Revolução Francesa assegura o princípio da liberdade de expressão. Assim, a Declaração dos Direitos do Homem reconhece, no artigo XI, que ‘a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem. Todo cidadão pode então falar, escrever, imprimir livremente, salvo a responder pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei’. Para os defensores da liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de expressão era indiscutível. Dever-se-ia discutir a noção de ‘abuso’ analisando se seria melhor impedir os excessos e restringir a liberdade de expressão ou emancipar completamente a palavra.

Imprensa e democracia

Em 1806, Benjamin Constant, cuja obra é considerada o início da reflexão liberal sobre o jornalismo, analisa esse impasse:

‘O arbitrário (…) contra o pensamento poderá sufocar as verdades mais necessárias, assim como reprimir os erros mais funestos. (…) A liberdade de imprensa sendo o único meio de publicidade é, consequentemente, quaisquer que sejam as formas de governo, a única salvaguarda dos cidadãos. (…) A liberdade de imprensa remedeia dois inconvenientes; ela esclarece a autoridade quando ela se engana, e no mais, ela a impede de fechar voluntariamente os olhos’ [CONSTANT, Benjamin. De la liberté chez les Modernes. Paris: Livre de Poche, 1980, p. 473; 477].

Circunscrever o uso da palavra sob o argumento de que ela pode prejudicar a reputação de alguém, incitar a revolta popular ou a derrubada do poder, é, segundo Constant, mais maléfico do que os males que ela pode trazer. Por outro lado, se o Estado tem a autonomia de proibir a manifestação de opiniões, ele vai também impedir a publicidade dos seus atos e a adoção de leis conforme o desejo geral. Mas Constant não se mostra incondicionalmente favorável à liberdade de imprensa. Para ele, faz-se necessária a adoção de uma legislação para os delitos de imprensa, particularmente ‘contra a calúnia, e a provocação à revolta’.

Na esteira de Constant, Alexis de Tocqueville [TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique, volume I. Paris: Gallimard, 1961, p 185; 188] acredita que os desvios são um pequeno e, às vezes, necessário mal para informar bem o público: ‘Eu amo [a liberdade de imprensa] pelos males que ela impede mais do que pelos bens que ela faz. (…) Para colher os bens inestimáveis que assegura a liberdade de imprensa, é necessário saber se submeter aos males inevitáveis que ela faz nascer’.

A partir do século 19, o jornalismo europeu adquire novas facetas. O aperfeiçoamento das técnicas de impressão e a introdução da publicidade permitem o aparecimento da imprensa popular, com grandes tiragens. O processo de industrialização e o crescimento do público implicam em encarar o jornalismo sob outras perspectivas, para além da dicotomia entre liberdade e abuso. Mesmo assim, estava forjada a aproximação entre a imprensa e a democracia, os progressos da primeira estando intrinsecamente associados aos da segunda. É nesse ponto que a noção de liberdade de imprensa aparece como mito fundador do jornalismo, uma construção discursiva que permite alijar esta atividade de qualquer controle, tendo em vista o papel que desempenharia para funcionamento da democracia.

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Doutora em Ciências da Informação e da Comunicação pela Universidade Paul Verlaine-Metz (França) e professora do departamento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia, da UFRN