Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Do Japão se quer o exemplo, não o padrão

Neste artigo, estou fazendo um apelo ao sentimento de brasilidade que ainda resta em alguns jornalistas e editores, chamando atenção para a importância desse momento e da necessidade de a mídia esclarecer à população o que é do seu interesse. A TV digital é potencialmente o maior instrumento de inclusão social.


O dia 16 de maio de 2006 foi uma data histórica para o processo de implantação da televisão digital no Brasil. Aconteceu na Câmara dos Deputados o maior evento público, congregando participantes dos vários setores que representam os interesses na nova tecnologia: o Seminário Internacional TV Digital: Futuro e Cidadania – obstáculos e desafios para uma nova comunicação.


Como uma das pesquisadoras do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), particularmente do assunto que ficou fora de quase todas as pautas – a inclusão social, tenho a dizer que, pela primeira vez na história das telecomunicações no Brasil, a sociedade brasileira participou da construção de um processo deliberativo de uso de uma tecnologia. Isso que o tecnólogo francês Pierre Lévi chama de micropolítica em ato, o que é condição para a existência de uma tecnodemocracia. Se vamos ou não ganhar a parada não importa tanto quanto o enorme aprendizado de ação cívica para os agentes do mercado, os agentes do Estado, para os acadêmicos e para grupos diversos organizados da sociedade civil, que ocuparam a cena e provocaram incansavelmente os debates sobre o tema.


Nas inúmeras oportunidades que tivemos de participar de reuniões no Ministério Público Federal com representantes do Ministério das Comunicações e Anatel, em audiência pública, no Ministério Público de São Paulo, com representantes da Rede Globo, Abert e dos padrões de tecnologia e setores da sociedade civil, bem como em debate com o próprio ministro das Comunicações na UFMG, e ainda em inúmeros outros eventos em sindicatos e universidades, percebi que, mais do que o entendimento de uma nova tecnologia, o que estava acontecendo era a conquista de um novo mecanismo de aprendizado da democracia. Todos estavam aprendendo em primeiro lugar a serem democráticos, o que significa ouvir o que o outro, o diferente, tem a dizer, antes de rebaixá-lo ou desqualificá-lo numa escala de valor hierarquizada segundo o poder de vocalização de interesse na esfera pública.


Em cada reunião, seminário ou audiência subseqüentes percebia uma mudança no discurso dos representantes do mercado e do Poder Executivo, que estão claramente em acordo quanto à escolha do padrão de tecnologia japonês, em detrimento do padrão brasileiro, que teimam em fingir que não existe, que não é lucrativo, que não é bom o suficiente, e que poderia apenas dar pequenas e insignificantes colaborações. Ao serem confrontados com conhecimentos da matéria tanto do ponto de vista tecnológico como das leis e da regulação do setor, esses atores começaram a cuidar melhor das afirmações, mudando a retórica, que passou a incorporar a grife do SBTVD como ponto de partida, imediatamente negada pela afirmação inequívoca de que a única modulação que interessa ao país é a do ISDB japonês.


Sistema sabotado


Isso é mentira e está provado. No dia 12/5, foi realizada a primeira integração dos subsistemas desenvolvidos por universidades e centros de pesquisa que integram os consórcios do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, rodando no transmissor de ‘modulação inovadora’, criado pelo consórcio liderado pelo Inatel, de Santa Rita do Sapucaí, em Minas Gerais. Nas palavras do professor Luciano Mendes, coordenador da pesquisa no Inatel:




O transmissor desenvolvido pelo consórcio MI-SBTVD foi alimentado por um vídeo de informações interativas desenvolvido pela UFSC, recebido pelo protótipo do receptor do MI-SBTVD e entregue ao terminal da USP, onde se instalava o Middleware da UFPB. Com um controle remoto, um telespectador pôde interagir com o programa de forma intuitiva. Assim, pela primeira vez na história de nosso país temos um sistema de grande complexidade como este para TV digital, totalmente concebido e desenvolvido por pesquisadores brasileiros, tornado realidade.


Esse feito poderia ter sido apreciado em Brasília, no Congresso Nacional (Anexo II), durante o seminário citado, caso não tivesse sido sabotado pelo próprio ministro Hélio Costa, que desautorizou as transmissões, na faixa permitida pela Anatel.


Documentos à disposição


Mas eu pergunto: como a imprensa vem repercutindo tudo isso? De forma burocrática, factual, dando visibilidade apenas à movimentação dos grandes interessados (teles x radiodifusores) e, principalmente, nas grandes redes abertas de televisão, onde foram veiculadas, quase que exclusivamente, as declarações do ministro Hélio Costa. A Rede Globo de Televisão, que tem a maior audiência do país, não fez uma matéria em rede aberta sobre os consórcios e as inúmeras pesquisas realizadas com os parcos 50 milhões de reais, em menos de um ano de execução, o que é um recorde de criação e inovação tecnológica no país. Isso não é um fato?


A TV digital poderá alavancar políticas sociais, como as de saúde, educação e assistência social, democratizar o acesso a informações relevantes para a vida das pessoas, conectando seus televisores à rede internet, hoje restrita a parcos 11,4% da população. Esclarecer a população significa revelar a natureza da própria tecnologia digital que, ao contrário da tradição analógica, que depende de emissores preferenciais, é plural, horizontal e descentralizada como deverá ser a política para o novo sistema. Todas as características da TV digital apontam para a multiplicação de novos atores comerciais, estatais e públicos. Essa última, a dimensão pública, é ainda pouco compreendida e menos ainda exercida, num país sem cultura cívica e que tem na formação do Estado a herança da apropriação privada de interesses econômicos e da elite política e intelectual do Brasil.


A meu ver, é incompreensível que a imprensa não pesquise os documentos que estão à disposição em inúmeros sites (Intervozes, FNDC, SBTVD.org, entre outros) comprometidos com a divulgação do SBTVD, em documentos assinados por especialistas que têm competência e autoridade para discorrer sobre o tema. Apenas a mídia dita alternativa tem fornecido informações, sobretudo os boletins eletrônicos Prometheus, Tela Viva e o do Fórum do Audiovisual, o que é restrito porque são veículos que circulam apenas entre especialistas e conectados. Os debates que vêm ocorrendo em universidades e sindicatos são importantes, mas continuam circunscritos aos grupos de interesse profissional e técnico e da militância política e da comunicação.


Processo de cooperação


Isso é pouco diante da dimensão dos impactos decorrentes da mais radical mudança num meio de comunicação, caso seja possível estabelecer uma política pública para a TV Digital a partir dos seguintes princípios que podem servir para um debate mais profundo com toda a sociedade:


1) Permitir o acesso da tv digital a todos os brasileiros;


2) Priorizar a interatividade e o modelo de serviço para permitir a inclusão social;


3) Envolver todo o sistema de comunicação pública e educativa do Estado brasileiro para que a população possa compreender e participar do processo mudança;


4) Envolver todos os setores da administração pública que possam ser beneficiados pelo SBTVD, como os ministérios da Saúde, Educação, Justiça, Cultura, Ciência e Tecnologia, Indústria e Comércio, Assistência Social, para que o SBTVD esteja a serviço das outras políticas;


5) Priorizar o governo eletrônico;


6) Estabelecer um modelo de negócio que amplie a participação dos atuais operadores e viabilize a entrada de novos serviços e programadores públicos e privados por meio de formas associativas, coletivas e cooperativas;


7) Envolver todos os aparelhos estatais, escolas públicas, bibliotecas, centros de saúde como potenciais pólos de produção e circulação de informações do SBTVD;


8) Garantir o acesso de qualidade à TV digital, por meio de terminais, a custos compatíveis com a renda da população, considerando o atual parque de equipamentos analógicos implantados e o desligamento da transmissão analógica daqui a 15 ou 20 anos;


9) Incentivar a indústria nacional de componentes de micro-eletrônica e de produção de equipamentos para o SBTVD;


10) Estimular o processo de cooperação industrial e tecnológica da TV digital com os países do Mercosul e da América Latina;


Apenas o protecionismo


Defender o aprofundamento das pesquisas do SBTVD é uma questão de bom senso, num país que tem sido pautado de fora para dentro, com respeito a suas vocações para a tecnologia. O SBTVD demonstrou aquilo que ninguém esperava, principalmente o governo. Temos competência não apenas para criar o nosso próprio sistema, como também para aprimorar os já existentes e produzir equipamentos e componentes para o DVB, para o ATSC e, por que não, para o ISDB. O novo padrão (MI) desenvolvido pelo consórcio do Inatel em Minas Gerais é superior ao japonês, e pode perfeitamente ser adquirido pelos seus representantes, já que ele corrige seus defeitos e amplia suas possibilidades. Segundo relato de Takashi Tome, do CPqD, responsável pelo teste de transmissão no evento de Brasília, o estande do SBTVD foi o mais visitado e, quando as pessoas descobriam que as inovações eram brasileiras, enchiam-se de orgulho e admiração.


Do Japão, queremos copiar apenas o protecionismo a sua indústria e a seu desenvolvimento tecnológico, que transformaram um país destruído na Segunda Guerra Mundial numa das maiores potências tecnológicas do planeta.

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Professora e pesquisadora de televisão e cinema do Curso de Pós-graduação e do Departamento de Comunicação Social/Fafich-UFMG; pesquisadora do SBTVD a convite do CPqD para o Ministério das Comunicações em 2004