Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dois argumentos chinfrins no debate

Uma das possibilidades imediatas que a TV digital traz é o aumento no número de canais. Em teoria, a possibilidade de mais vozes, mais concorrência, mais espaço para pluralidade e diversidade. Não basta o aumento de canais para alcançar essas mudanças, mas é certamente um passo importante. No entanto, as emissoras abertas, obviamente, não querem mais canais. E na tentativa de manter o mercado fechado, atêm-se a dois argumentos: o primeiro, de que não há verbas publicitárias para sustentar mais canais; o segundo, de que não haveria qualidade na produção audiovisual brasileira para ocupar novos espaços. Os argumentos são apenas uma tentativa de manter como está um mercado que é escandalosamente fechado. E o pior é que o governo está embarcando nessa.


O problema começa na maneira como são organizadas as concessões para transmissão de televisão. Hoje há limite no número de emissoras porque não há espaço para mais de sete canais transmitirem em TV aberta. Como não há espaço para todos, o Estado se responsabiliza por determinar quem, e por quanto tempo, irá ocupar os espaços disponíveis. A concessão é necessária, ao menos teoricamente, porque o espectro eletromagnético é escasso. No entanto, as concessões têm sido usadas muito além de suas funções técnicas.


Seria de esperar, por exemplo, que, se a escassez é um limitante, justamente por isso o Estado se preocupasse em garantir que a utilização desse espaço fosse a mais democrática possível. A realidade, contudo, mostra o oposto. As emissoras conseguiram transformar as concessões nas capitanias hereditárias da atualidade. Uma vez obtida, ela dura 15 anos, mas só não é renovada se 2/5 do Congresso votarem contra, em votação nominal. Virtualmente impossível. Enquanto isso não acontece, a concessão segue nas mesmas mãos. Além disso, o contrato de concessão não estabelece praticamente nenhuma obrigação para a emissora, que utiliza como bem entende, e sem nenhuma transparência, uma concessão que é pública.


A segunda barreira está na abertura dos canais a produções independentes (leia-se: de qualquer outro grupo que não a própria emissora). Não há nenhuma obrigação das emissoras transmitirem programas de outros realizadores, o que favorece a verticalização de todo o processo. O mesmo grupo produz e distribui, e em alguns casos é dono inclusive da infra-estrutura física que leva a imagem até a casa do telespectador. Essa estrutura favorece a concentração e mantém as mesmas empresas sozinhas no mercado ad eternum.


Do ponto de vista econômico, a situação é completamente absurda: não há condição para concorrência, há constante abuso de posição dominante, as barreiras de entradas são gigantescas e tem havido um reforço ano a ano da concentração, com características típicas de monopólio. Condições que, reunidas, são de causar arrepio em qualquer liberal. A Constituição de 1988 proibiu monopólios e oligopólios na radiodifusão, mas não houve regulamentação alguma desses artigos, e tudo segue como dantes.


Como a digitalização pode mudar esse quadro


Até aqui, nenhuma grande novidade. Esse é o quadro que temos faz décadas na televisão brasileira, e que nenhum governante quis ou teve coragem de enfrentar. Ao contrário, os governantes sempre se beneficiaram dessa moeda de troca. Acontece que a digitalização traz a oportunidade de abrir o mercado para mais canais. E isso poderia ser feito inclusive sem colocar a mão no vespeiro que são as concessões atuais, sem enfrentar nenhuma das questões colocadas acima. Mas as emissoras dizem que não dá. Não há dinheiro e não há qualidade, afirmam.


O primeiro argumento reflete simplesmente a apreensão das emissoras, que hoje vendem sua audiência aos seus anunciantes. A questão real é que o bolo publicitário, em princípio, seria dividido com novos parceiros. Nada mais natural; é o que acontece em qualquer outro setor. Se um investidor percebe que há oportunidades no mercado de sabão em pó ou de chocolates, por exemplo, ele lança um novo produto no mercado. Naturalmente, ele parte em desvantagem em relação aos que já têm sua marca consolidada, mas se o produto for bom certamente vai atrair consumidores. Não cabe aos que já estão no mercado dizer que não querem concorrentes. Cabe, ao contrário, ao governo, estimular a concorrência e combater práticas monopolistas e de abuso de liderança.


Do seu lado, as emissoras alegam que a fragmentação das verbas publicitárias levaria ao enfraquecimento dos canais, que perderiam a capacidade de investir em produções inovadoras e diferenciadas. Esse argumento é delicado, porque se levado a cabo sustenta monopólios e oligopólios. Segundo algumas primárias leis econômicas, o que acontece é o contrário: a eficiência econômica é garantida pela concorrência, que por sua vez impulsiona a inovação. Além do mais, se concentração garantisse diversidade, estaríamos assistindo a um festival de produções inovadoras e de qualidade, o que é bem raro na TV brasileira.


Mais do que isso: é impossível prever a dinâmica de um mercado ampliado, com novos atores. É possível e provável que o atual bolo publicitário aumente. Sem contar que, no fim das contas, o risco maior será dos novos concorrentes. Para quem já está no mercado há mais de 40 anos, a tradição e a força da marca garantem espectadores (e anunciantes) por um bom tempo.


O segundo argumento é o que diz que não haveria produção de qualidade para suprir esses novos canais. Em primeiro lugar, vale a pergunta: por que critérios seriam as TVs abertas que existem hoje um exemplo de qualidade? Indo além, seria importante analisar o enorme contingente de produção independente de qualidade no Brasil, hoje sufocado pela falta de espaço para veiculação. Não é à toa que esses realizadores estão buscando diretamente países como o Canadá e a França para negociar suas produções; nas bandas de cá, não há espaço.


Além disso, é preciso reconhecer que mesmo a produção existente (e sufocada) acontece contra a lógica de mercado. Afinal, como investir sabendo que não há como escoar a produção? Quem é louco de colocar dinheiro em produtos que não terão como atingir o telespectador, por conta da estrutura atual do mercado? As emissoras de TV, em sua polarização com as empresas de telecomunicações, tentam nos fazer crer que a defesa de seus interesses é a defesa do interesse nacional. Não é verdade. Ao manter um mercado fechado e com essas enormes barreiras de entrada, o Brasil sufoca a sua própria criatividade.


Por mais pluralidade e diversidade


Para atingir mais pluralidade e diversidade no conteúdo é preciso derrubar as barreiras de entrada hoje existentes. O número de concessões disponíveis (e conseqüentemente o número de canais) é apenas uma delas. Outra questão essencial é o custo para se montar uma emissora de televisão. Embora os custos de produção tenham diminuído brutalmente com a digitalização, os de transmissão ainda são altos. Hoje, cada programadora, que é também emissora, tem de construir o seu próprio sistema de transmissão. Isso não faz sentido algum, é um desperdício de dinheiro que poderia ser investido em produção, e aumenta as barreiras de entrada.


Para isso há soluções simples: diversos países adotam a figura do operador de rede; um ator único que distribui o sinal de todas as programadoras. Na prática, um prestador de serviço – público ou privado – transmite o conteúdo de todas as concessionárias. Uma taxa é cobrada por isso, mas os custos caem vertiginosamente. Assim os produtores poderiam concentrar a maior parte de seu capital na própria produção, gerando novos conteúdos. Além do que, nesse processo de digitalização, se mantido o atual esquema, diversas emissoras pequenas do interior terão dificuldade de se adaptar, uma vez que será preciso trocar todo o equipamento de uma hora para outra. Correm o risco de ser engolidas.


Outra barreira atual, já citada, é o fato de não haver espaço para produção independente. Hoje não há espaço para um produtor que não é contratado por uma emissora para exibir seus programas. Mesmo no caso de se aumentar o número de canais, isso é problemático, porque implica o fato de que para veicular um programa é preciso possuir um meio de comunicação.


Há também a barreira da divulgação. Disponibilizar conteúdo na internet é muito diferente de transmiti-lo em rede nacional num canal aberto de TV. Além do número de pessoas com acesso à televisão ser cerca de seis vezes maior do que o número de pessoas com acesso à internet, o menu de opções disponíveis na TV é menor. Isso faz com que as chances de seu programa ser visto em uma emissora de TV aberta sejam muito maiores do que as de ele ser achado em um site perdido entre outros milhões na internet.


Uma solução simples para essas duas questões seriam canais abertos que não pudessem disponibilizar conteúdo próprio. Caberia aos programadores negociar programa a programa com diferentes produtores, montar a grade e negociar publicidade, que seria dividida com os realizadores. No processo de revisão do seu serviço público de radiodifusão, o Reino Unido está anunciando a intenção de construir o Public Service Publishers (PSP), que teriam exatamente essa função. No caso de lá, os PSPs atuariam não só como exibidores de TV, mas como distribuidores de conteúdo em diversas plataformas.


Democracia e criatividade


Gerar pluralidade e diversidade no conteúdo da TV brasileira é, portanto, um objetivo que inclui muitas frentes. A digitalização traz possibilidades diversas para isso, e se perdermos essa chance no momento da definição do novo cenário, será muito difícil recuperar mais à frente. O aumento no número de canais é uma necessidade óbvia. Acatar os argumentos chinfrins de que não é possível aumentá-los porque não haverá financiamento suficiente, ou porque não há qualidade, significa sucumbir à pressão de partes interessadas que não aceitam de forma alguma competir com outras vozes.


A existência de mais vozes no espaço público é essencial para democracia. A liberdade de expressão não pode depender da posse de uma capitania hereditária, como é o caso das concessões no atual formato. Pluralidade e diversidade são ao mesmo tempo condição e expressão de uma comunicação democrática. Além disso, criatividade não é (apenas) um processo espontâneo. Precisa de condições favoráveis para surgir e de condições ainda mais favoráveis para se consolidar. É preciso implantar medidas que estabeleçam essas condições para o desenvolvimento do enorme potencial criativo que o país prova ter mesmo nas condições mais adversas. Democratizar o acesso aos meios de comunicação é essencial para a cultura brasileira.


Não bastassem esses aspectos, a estrutura que vigora é ainda economicamente ineficiente e injusta. Não dá para continuarmos com um mercado absolutamente fechado, sem possibilidade de concorrência, cada vez mais concentrado e com as empresas dominantes ditando as regras. A estrutura atual do mercado de televisão brasileiro é social, política, cultural e economicamente injustificável.

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Pós-graduando em Regulação e Políticas Públicas de Comunicação na London School of Economics and Political Science (LSE) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social