Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘É preciso romper a passividade diante da mídia’

Desenvolver a capacidade crítica de crianças e adolescentes para que possam romper com a passividade diante da mídia. É o que pretende Wagner Bezerra, autor de O segredo da caverna: A fábula da TV e da internet, livro que usa a alegoria da caverna, do filósofo grego Platão, para falar sobre a relação entre mídia e sociedade. No mito filosófico, habitantes de uma caverna vivem presos a correntes e desconhecem a realidade por trás das sombras projetadas em uma parede. Na fábula dirigida ao público infanto-juvenil, esse desconhecimento é interpretado como inércia do espectador diante do que o autor chama de ‘lixo’, veiculado pela TV ou pela internet.

A proposta do livro, segundo Bezerra, é torná-lo uma ferramenta para que educadores, pais e as próprias crianças e adolescentes possam discutir a relação da sociedade com os meios de comunicação. O segredo da caverna, lançado recentemente pela Cortez Editora, é a reedição de Acorrentados: A fábula da TV, publicado em 2005 (confira aqui). O texto foi atualizado abrangendo a forte presença da internet na vida de crianças e adolescentes e recebeu as ilustrações de Silvana de Menezes.

Wagner Bezerra é publicitário. Escritor nas áreas de Educomunicação e Alfabetização Midiática, é autor do livro Manual do telespectador insatisfeito, publicado pela Summus Editorial, em 1999. Foi diretor e roteirista de programas de educação a distância, como TV Escola e Plantão da Língua Portuguesa, produzidos na TVE/RJ entre os anos de 1996 e 1998. Graduou-se em Marketing pela Universidade do Norte do Paraná (Unopar), com especialização em Políticas Públicas pela Escola de Políticas Públicas e Governo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em entrevista concedida por telefone ao e-Fórum, Wagner Bezerra analisa as relações entre a filosofia de Platão e a sociedade contemporânea. Fala ainda sobre o cenário da educomunicação e a dificuldade de se discutir o conteúdo midiático no Brasil.

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Em O segredo da caverna: A fábula da TV e da internet, o senhor recorre à filosofia para falar de comunicação. O senhor acredita que a filosofia pode facilitar a compreensão das crianças e dos adolescentes sobre comunicação?

Wagner Bezerra – A Filosofia como ciência, não. Mas a alegoria da caverna do filósofo Platão, sim. Porque essa alegoria oferece uma analogia muito direta entre o desafio do homem em relação ao conhecimento e o desafio do consumidor de mídia contemporâneo em relação ao que lhe é oferecido. No mito da caverna de Platão, o homem está diante do desafio de romper com o que lhe é comum para buscar o conhecimento em novas possibilidades. A relação do fenômeno televisivo, e mais recentemente da presença da internet na vida moderna, contém aspectos muito próximos daquilo que Platão nos oferece.

Um exemplo específico é o doxa, expressão de Platão na alegoria da caverna que significa opinião. É o pensamento que fica apenas na primeira impressão. Na fábula de O segredo da caverna, o doxa é um personagem vilão. Ele quer fazer com que o povo acorrentado permaneça aceitando como verdadeiro tudo o que ele projeta no interior da caverna. Ele quer fazer parecer que aquelas imagens são as únicas possibilidades de lazer, de entretenimento, de informação e até a cultura daquele povo. Na analogia entre a filosofia de Platão e a fábula do livro, o espectador médio diante da TV, e em alguns casos diante da internet, age como o povo acorrentado, permanecendo por longos períodos em estado de contemplação sem que haja interação.

As semelhanças não param por aí. Brinco com os demais personagens e os demais conceitos que compõem a alegoria da caverna, como o eidos. Na filosofia de Platão ele seria a concepção adquirida pela atividade de questionar, e não pela ação de simplesmente consumir. Na fábula, o eidos é um personagem que encontra a heroína Episteme com o livro do conhecimento no momento em que ela rompe com as correntes imaginárias do doxa e chega até o mundo externo da caverna. O eidos oferece a Episteme as novas possibilidades de conhecimento.

Na filosofia de Platão, a episteme é o contrário do doxa. Para ele, a episteme é o conhecimento que se demonstra ou se adquire pelo debate, pela conversa. A Episteme do livro leva muito tempo para romper com as suas correntes, a exemplo do telespectador nas tardes de domingo da TV aberta. Ele assiste às mesmas opções, à mesma programação, por muito tempo. Até se sente incomodado, mas não vai buscar outras fontes de informação e lazer.

Outras expressões da filosofia de Platão também fazem parte da história, como a fotofobia e o mimetisto, que é a capacidade de imitação.

‘Desenvolver a capacidade crítica das crianças’

A questão principal, então, é romper com a passividade diante da mídia?

W.B. – Sim. Para alcançar o conhecimento, segundo Platão, você tem que romper com a passividade. Trazendo para o nosso universo literário, a passividade diante dos meios de comunicação seria o grande vilão a ser superado, principalmente por esse público que queremos atingir. Esse é o grande mal: a passividade diante do que é ofertado pela TV e pela internet. Porque ao ser mantida essa relação de passividade, as crianças e os adolescentes não seriam capazes de escolher criticamente o que vão assistir e aí consomem tudo que é transmitido pela mídia. Junto com conteúdos, digamos, positivos para o seu desenvolvimento cognitivo, esse público infanto-juvenil vai consumir aquilo que a gente chama de ‘lixo’ midiático.

O livro vai trabalhar nessa questão, no desenvolvimento da capacidade crítica das crianças e dos adolescentes para que eles próprios se tornem consumidores de mídia mais críticos e, consequentemente, mais capazes de dissociar o lixo televisivo e o da internet – podemos colocar aí as altas doses de sexo e violência, daquele conteúdo positivo que vai estar também veiculado na programação da TV e na internet.

‘A sociedade vai ter que responder’

Na primeira versão do livro, o senhor sustentava que a televisão é ‘100% educação’. Ela ainda desempenha esse papel? A internet alterou esse quadro?

W.B. – Buscando o arquétipo filosófico, mas sem querer ficar fazendo filosofia com essa questão, eu tenho pensado nessa relação utilizando uma metáfora. Me parece que nos cinquenta ou sessenta anos aproximadamente da presença da televisão em nossas vidas, e com o tão recente fenômeno da entrada da internet no nosso cotidiano, a relação da sociedade com a mídia eletrônica se assemelha àquela imagem do menino que, em pleno breu, se encanta com os vaga-lumes. Tudo que brilha entretém, tudo que emite luz nos faz estacar, conectar e receber tranquila e entusiasticamente o que é ofertado pelos meios. Com tão pouco tempo de existência do fenômeno midiático em nossas vidas, nós seríamos ainda caçadores de vaga-lumes. Condenados a imitar Narciso diante do lago. Queremos nos ver refletidos naquilo que brilha, naquela luz que é ofertada, tanto pela TV quanto pela internet.

Para transformar isso em educação, basta um telespectador ou um internauta diante da tela. Por quê? O que é educação para inúmeros teóricos e para muitos educadores? Educação é a informação da qual se atribui sentido. A informação no seu estado bruto, ao ser recebida por um espectador ou por um internauta, que naquele momento lhe atribui sentido, é transformada imediatamente em educação. Do meu ponto de vista, e esse tema eu pretendo desenvolver na academia como pesquisador, todo o fenômeno televisivo e toda a emissão de internet, a relação entre espectador e TV, a relação entre internauta e internet – tudo isso é pautado apela educação. Seja qual for o conteúdo, o formato, tudo o que é veiculado se transforma em educação na medida em que o internauta e o espectador são capazes de atribuir sentido àquilo que consomem.

Agora, o que nós vamos fazer com a maior escola de todos os tempos é uma questão que a própria sociedade vai ter que responder. Que conteúdos serão ministrados nos seus diversos formatos, nas suas diversas faixas de programação, nos seus diversos sites de relacionamento, nos portais, o que vai ser veiculado por esses meios é uma questão que a sociedade vai ter que discutir e responder em um determinado tempo, em um determinado momento. Na minha visão, esse fenômeno já acontece desde que foi inventado o tal de aparelhinho que veio se chamar televisão.

‘O `jogo de soma zero´’

Em sua opinião, por que o conteúdo da mídia é um tema pouco discutido no Brasil?

W.B. – O Brasil vive um momento muito singular no cenário mundial. Nós nos tornamos a quinta economia do mundo, de acordo com nosso PIB (Produto Interno Bruto). Isso nos impõe não só o bônus, mas o ônus de alguns entraves em relação ao nosso desenvolvimento como povo. Um desses paradigmas que precisam ser superados é o da educação.

Por outro lado, a sociedade está às voltas com o desenho da nossa regulação dos meios de comunicação. Alguns aspectos ainda não foram sequer discutidos. O brasileiro médio, os formadores de opinião, os políticos, o Congresso Nacional, o governo federal e as entidades de classe ainda não chegaram a um consenso daquilo que precisa ser regulado e regulamentado nas comunicações. A ausência desse consenso impede, por exemplo, que se discuta conteúdo.

Discute-se tudo, a parte técnica, a legislação no que diz respeito à propriedade cruzada, as novas tecnologias da informação, agora quanto ao conteúdo que é oferecido à sociedade pelo meio virtual, pelo meio televisivo, ainda há um dogma no Brasil. Setores da sociedade não cansam de se levantar com bandeiras já gastas e rotas trazendo a questão da volta à censura, quando a sociedade implora que se discuta o conteúdo que lhe é ofertado. Essa é uma discussão que não avança. Em formulação de políticas públicas, a gente chama isso de ‘jogo de soma zero’.

A TV e a internet no Brasil são tão avançadas quanto a tecnologia ou a teledramaturgia em relação ao aparato técnico, à qualidade do produto audiovisual que nós oferecemos. Enquanto essa qualidade não se tornar aliada no nosso próprio desenvolvimento com relação ao entrave da educação, nada avança. Permanece o jogo de soma zero. O Congresso está repleto de donos de emissoras e conglomerados de informação, colocando a discussão sobre o conteúdo como censura, na falácia de que discutir conteúdo é ferir o direito de livre expressão.

‘A criança e o adolescente mais críticos em relação à mídia’

O livro propõe algum caminho para resolver essa questão?

W.B. – Enquanto isso não se resolve, nós podemos tornar a sociedade, especialmente as crianças e os adolescentes, capazes de vivenciar a oferta de conteúdo sem se preocupar com a solução desse cabo de guerra entre governos, produtores e concessionários da produção televisiva. Sem se preocupar com que se chegue finalmente a esse termo comum que permita ao marco regulatório lançar luz sobre o conteúdo.

O que o livro propõe é deixar de lado todo o maniqueísmo que essa discussão traz. O livro não quer – eu, como pesquisador, não busco – dizer quem está certo ou está errado, ou sequer dizer que tipo de conteúdo da TV ou da internet faz bem ou faz mal. É fato público e notório que existe o que nós chamamos de lixo midiático e perceber o que é esse lixo, onde ele se encontra, e ser capaz de consumir o produto positivo, que trabalha a favor do desenvolvimento cognitivo é o que desejamos, na medida em que a criança e o adolescente se tornem mais críticos em relação à mídia. Quanto mais crítico o público infanto-juvenil se torna, mais ele próprio é capaz de dissociar o lixo midiático que é ofertado no atual modelo. Principalmente na televisão aberta e em grande volume na internet, muito por ser uma ferramenta nova e culturalmente fascinante, presente em todos os segmentos sociais e em todas as faixas etárias, como acontece aqui no Brasil.

‘Os dependentes da mídia somos nós’

A sua abordagem sobre as características da mídia é quase apocalíptica. Mas a TV, a internet e as redes sociais também não libertam?

W.B. – Certamente. E é importante perceber que ao lado do lixo midiático, nós devemos não só combater, mas enxergar com clareza, há conteúdos pertinentes. Conteúdos capazes de nos oferecer possibilidades infinitas de conhecimento em todos os meios. Na televisão eu poderia citar vários exemplos, inclusive na televisão aberta, de conteúdos cidadãos. Há programação cidadã em larga escala na TV aberta, na TV fechada e na internet.

Mas ao lado disso tem o lixo midiático. E ele intoxica. Ao lado da mídia cidadã, da TV cidadã, você vai ter exemplos muito tóxicos de produtos televisivos. Eu diria que a barbárie da mídia é o formato do reality show Big Brother Brasil, já na sua 11ª edição. Flagelo da mídia é os milhões de telespectadores que engolem esse lixo televiso. Traficante da mídia, se você quiser fazer essa metáfora, são os anunciantes que financiam a entrega da droga televisa nos lares brasileiros. E os dependentes da mídia somos nós. É nisso que habita a importância da dissociação dos conteúdos para que nós, como sociedade, e eu levo insistentemente a questão para o segmento infanto-juvenil, possamos escolher com propriedade e criticamente aquilo que vamos consumir. Se eu sou aquilo que eu consumo, que eu leio, que eu vejo, que eu acesso, eu preciso assistir, acessar, ler, com um olhar preferencialmente crítico.

‘A discussão da alfabetização midiática seria muito valiosa’

Qual o cenário da educomunicação no Brasil comparativamente a outros países?

W.B. – Essa é uma discussão que caminha a passos largos em Portugal, no Reino Unido, nos Estados Unidos, na Inglaterra, no Chile. Enquanto isso, o Brasil apenas engatinha em relação a esse debate. Visto que, por exemplo, no país inteiro só existe um curso de graduação, na Universidade de São Paulo, em Educomunicação. Só por esse dado você pode avaliar o quanto nós estamos atrasados nessa discussão, ainda reféns desse maniqueísmo, do medo da volta à censura.

Você tem estudos consistentes em língua portuguesa e no Reino Unido sobre alfabetização para os meios, que eu chamo de alfabetização midiática. Existem propostas de transformar o ensino de alfabetização para a mídia, no Reino Unido, por exemplo, em disciplina regular. No Brasil há projetos de lei criando disciplinas para o ensino fundamental. Nenhuma delas fala em alfabetização para os meios, em alfabetização midiática, nem em educomunicação. O ensino para o trabalho diário, crítico ou não, com os meios de comunicação do ponto de vista conceitual, da análise do conteúdo, do aparato técnico a da apropriação do discurso, já acontece em outros países, mas aqui eu não tenho notícia.

No ensino público, onde está o segmento mais vulnerável aos dispositivos pedagógicos da mídia, não há nenhum projeto pedagógico nesse sentido. Na escola pública é onde estão o menino e a menina cuja família não tem acesso a TV por assinatura, por exemplo, que amplia o cardápio de possibilidades de conteúdos diversos. Essa família da camada mais pobre da sociedade é refém de um mix de entretenimento, via televisão e internet, bastante restrito. E talvez nem tenha internet, visto que, mesmo com todo o avanço, ela não atinge mais do que 60% da população. A discussão do ensino para a alfabetização para os meios seria muito valiosa a uma população contingenciada pela televisão aberta como única fonte de entretenimento midiático.

Como eu falei antes, existe o curso de graduação da USP, certamente deverão existir núcleos de pesquisa em pós-graduação, talvez alguma coisa também pulverizada em graduação nas universidades pelo Brasil afora, mas projetos pedagógicos consistentes para criança e adolescentes, eu não tenho notícia. Pelo menos não voltados ao ensino público.

‘O livro se aproxima do público infanto-juvenil’

Qual será a estratégia para o relançamento do livro O segredo da caverna?

W.B. – No lançamento desse livro eu abdiquei de fazer um evento social e optei por uma estratégia diferente, que é ir até as escolas públicas, oferecendo uma reflexão atualizada entre mídia e sociedade. Introduzindo a alfabetização para os meios, em especial a TV e a internet, no cardápio literário do público infanto-juvenil. É muito importante também que os educadores se apropriem desse tema e não o vejam como uma questão técnica. Por isso o primeiro lançamento do livro foi em uma escola primária pública no município de Panguaçú, que fica no interior do Rio Grande do Norte. Pretendemos provocar pequenos lançamentos por escolas de todo o Brasil. Os interessados podem procurar a editora Cortez pelo e-mail cortez@cortezeditora.com.br.

Acorrentados: A Fábula da TV foi publicado por uma pequena editora chamada Letra Legal em 2005. Poucos meses após o lançamento, a editora fechou e sumiu com os exemplares impressos desse livro, e de outros autores também. Fiquei com aquele sentimento de completa frustração por não atender à demanda dos leitores, de todo o segmento literário e de quem está interessado na alfabetização para a mídia, tema do qual eu sou autor há mais de dez anos. Publiquei, de forma pioneira, o Manual do telespectador insatisfeito, pela Editora Summus, em 1999. Foi um dos primeiros livros a dar um sentido mais amplo e essa discussão, que era muito acadêmica, e ele cumpriu o seu papel.

Mais adiante, entendi que a criança e o adolescente seriam o público prioritário nessa discussão, por ser o segmento vulnerável frente à ação educadora da mídia. Quando eu escrevi Acorrentados, o objeto da relação entre mídia e sociedade seria a televisão, agora não tem como deixar a internet de fora dessa discussão. Então, a editora Cortez se interessou pelo projeto e O segredo da caverna ganhou as ilustrações da Silvana de Menezes, autora consagrada com mais de 16 títulos publicados. Com isso, o livro ganhou uma forma gráfica muito interessante – eu revisei o texto e ele de fato agora se aproxima do público infanto-juvenil.

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Da Redação do FNDC