Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

É viável um modelo híbrido a partir do padrão japonês

Se há apenas um ano (2005) alguém perguntasse sobre minha preferência sobre o modelo de TV digital terrestre (TVD-T) mais adequado para ser adotado no país, como doutora em Comunicação e pesquisadora na área de mídias digitais não teria dúvida em apontar – como realmente apontei em alguns artigos – o modelo europeu.

Em defesa do padrão europeu havia vários fatores. Entre eles, a possibilidade do uso do código aberto, do modelo standard de TV digital, da possibilidade de interatividade ou do uso da multiprogramação prometida pelos europeus. Mas principalmente contava favoravelmente a chance de utilizar um modelo de TV digital terrestre híbrido, em conjunto com a tecnologia para TV digital desenvolvida pelos consórcios brasileiros formados por universidades, fundações e institutos de pesquisa.

Contra o padrão europeu – e naquele momento eu não tinha as informações suficientes sobre o tema – pesava o fato de estarem relacionados com as companhias telefônicas, que passariam também a produzir conteúdos para mídias digitais concorrendo diretamente com as empresas de radiodifusão brasileiras. Vale recordar que as companhias telefônicas são empresas transnacionais cuja concorrência, sem critérios claros, poderia ser predatória até mesmo para os grandes grupos nacionais de radiodifusão (imagine-se então o que ocorreria com os grupos regionais ou locais!).

Dois padrões

Contra o padrão europeu pesava também o fato de não terem conseguido comprovar através de testes junto às universidades brasileiras as condições de uso do modelo proposto teoricamente para multiprogramação e interatividade, esta última diretamente relacionada à produção de conteúdo e a participação dos telespectadores no tipo de produto pensado e realizado para TV digital. Como se as justificativas acima não bastassem, os testes realizados no Brasil pelo consórcio que representa o modelo europeu deixaram a desejar quanto à robustez desse sistema. Isso porque nosso país tem proporções continentais e exige um padrão tecnológico que resista a diferenças geográficas para atender os sinais de TV do Brasil em um modelo de recepção aberto e gratuito.

Nesse aspecto, o modelo japonês começou a ganhar terreno e se mostrou mais robusto quanto à transmissão e recepção dos sinais. Quanto à camada de modulação utilizando a tecnológica OFDM – a mesma que os europeus utilizam –, os japoneses apresentam uma inovação conhecida como one segment, que permite maior flexibilização do uso da banda de 6 MHz. O modelo japonês utiliza apenas um dos segmentos da banda (1/13 do canal de transmissão para plataformas móveis e portáteis e os restantes 12/13 para transmissão de HDTV), mas a TV digital híbrida brasileira poderá se beneficiar desta flexibilidade para montar um uso mais democrático das bandas de freqüência.

Até então, em defesa do padrão japonês havia pouca gente, entre elas algumas diretamente relacionadas às empresas de radiodifusão, o que – por si só – já seria um ponto negativo para qualquer pesquisador em alerta contra possíveis interesses escusos dessas transações. No caso específico do posicionamento da Rede Globo em defesa do padrão japonês, pesavam os indicativos de que o grupo estaria comprometido com empresas daquele país. Além disso, o fato de o consórcio japonês – conhecido como Arib – até aquele momento não incluir um modelo standard, mais simples, barato e acessível para a população, significaria a manutenção da exclusão digital para a maior parte dos cidadão brasileiros. Uma situação que, com o correr das negociações entre Brasil e Japão, se modificou. O consórcio japonês abriu a possibilidade de uso dos dois padrões: standard e de alta definição (HDTV), além do uso de um sistema operacional em código aberto.

Momento histórico

Durante um ano acompanhei de forma indireta as negociações com os japoneses e europeus e escutava relatos de quem estava vivenciando o processo de negociação em nome do governo brasileiro. Acompanhei também as modificações nas propostas dos dois modelos que foram se adequando, com o decorrer das negociações, aos interesses nacionais, assim como os diferentes modos de pensar e propor um modelo de TVD-T dentro do próprio governo brasileiro, onde as posturas mais democráticas e preocupadas com a inclusão digital estavam centralizadas na Casa Civil e no Ministério da Cultura.

E, entre outras observações, segui defendendo que o modelo de televisão digital terrestre (TVD-T) brasileiro a ser escolhido deveria ser híbrido, como acabou acontecendo no Decreto nº 5902, de 29/6/2006, já que não temos condições tecnológicas de desenvolver todos os aplicativos. Isso significaria preservar e divulgar a pesquisa tecnológica nacional, incluir seu uso no modelo final, além de garantir o intercâmbio de pesquisas e estudiosos a partir do padrão escolhido, que poderia se tornar referência para outros países, como os latino-americanos.

Este era (e segue sendo) um momento histórico na pesquisa tecnológica brasileira que não poderia ser desperdiçado. O governo federal apostou na capacidade de nossa expertise em desenvolver diferentes tecnologias para TV digital, algo que nunca havia sido feito até então em tamanha proporção, envolvendo cerca de 1.500 estudiosos de todo o país.

Fortalecimento industrial

Os pesquisadores mostraram a capacidade das diferentes instituições em realizar projetos, ainda que isso tenha ocorrido com o atraso no repasse de verbas da Finep às diferentes instituições em até oito meses. Ainda assim, os consórcios nacionais mostraram que, se estimulados, podem contribuir para o desenvolvimento tecnológico nacional, como aconteceu com a produção de softwares aplicativos e de middleware, a exemplo do projeto Ginga, de características universais que permite a ‘leitura’ de conteúdos e aplicativos gerados para os middlewares proprietários de cada um dos padrões de TV digital (MHP, da Europa; ACAP e OCAP, das TVs abertas e a cabo nos EUA; e Arib, no Japão), assim como o uso inverso. Eles permitem que a indústria brasileira disponha de competência para desenvolver uma competitividade internacional em tecnologias de ponta.

O que mudou nesse meio tempo? No fim de 2005, os estudos técnicos continuaram a ser feitos pela comissão interministerial formada por representantes da Casa Civil, do Ministério das Comunicações, da Cultura, das Relações Exteriores, do Planejamento, da Economia e de Ciência e Tecnologia. Tais estudos mostraram que de nada adiantaria escolher um modelo de TV digital que não estivesse vinculado ao desenvolvimento da indústria eletroeletrônica brasileira.

A aposta do governo federal na área tecnológica foi a de garantir o desenvolvimento da indústria nacional de semicondutores. O primeiro passo foi dado com o acordo nipo-brasileiro de TVD-T num projeto de cooperação internacional que vai permitir a capacitação de recursos humanos, a ampliação de centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D), assim como a revitalização do parque industrial eletroeletrônico, até então relegado à simples condição de montador de equipamentos importados. A médio e longo prazo – para além da existência deste ou daquele governo –, significa o fortalecimento de uma política industrial e tecnológica que garanta a exportação de materiais produzidos no país e a geração de novos empregos.

Híbrida, livre e gratuita

As duras negociações entre representantes do governo brasileiro e do consórcio de países ligados ao modelo europeu (DVB) e também por integrantes do governo brasileiro e representantes do consórcio japonês (Arib) foram feitas a partir de visitas técnicas aos países europeus e ao Japão, assim como de visitas recebidas pela equipe interministerial no Brasil. Essas negociações, realizadas entre 2005 e 2006, incluíam entender a lógica e a cultura tecnológica dos dois modelos e seus governos, até então pouco analisadas pela representação brasileira, embora a comissão interministerial fosse subsidiada pelos pesquisadores da Fundação CPqD.

O resultado dessas negociações foi a conquista de termos que podem ser considerados bons para o Brasil, para o desenvolvimento do modelo híbrido de TV digital terrestre e para o desenvolvimento da uma indústria nacional no setor, modificando radicalmente a situação do setor eletroeletrônico brasileiro: restrito à montagem de produtos idealizados e integrados no exterior, partirá para a condição de produtor de materiais arquitetados e desenvolvidos para serem utilizados no país e com vistas a sua colocação no mercado internacional .

E foi exatamente durante essas negociações que o modelo japonês terminou por encontrar um espaço em que muitos cientistas não acreditavam, entre eles a autora deste artigo. Revi meu posicionamento ao me dar conta de que a estratégia do governo brasileiro foi de longo prazo, apostando no bem-estar da população de baixa renda ao defender a proposta de uma TVD híbrida, livre e gratuita, que garanta a inclusão digital ainda inacessível para a maior parte da população.

Receptor escalável

Entre os compromissos firmados com o consórcio japonês está a definição do modelo híbrido nipo-brasileiro, que vai utilizar tecnologia desenvolvida pelos pesquisadores brasileiros e também tecnologia japonesa. O Japão, por exemplo, deverá aproveitar a tecnologia para TVD terrestre produzida no país, como o middleware brasileiro Ginga, que, como já mencionamos, harmoniza os diferentes códigos de leitura de dados existentes nos sistemas internacionais de TV digital (europeu, norte-americano ou japonês) ou os filtros corretores de erros que melhoram os sistemas de modulação/codificação de canais na camada de transmissão/recepção de sinais para TV.

Finalmente, mas não menos importante, está o fato de o decreto brasileiro de televisão digital híbrida contemplar um sistema operacional em código aberto, universal, que prevê acessibilidade e portabilidade (pode ser usado em carros e celulares); permite a interatividade e a produção de conteúdos para TV e também a convergência digital (celulares, TV na internet), possibilitando que o país exporte produtos culturais agora também para a TV digital, e não apenas para a TV analógica, como ocorria até então.

Fato importante é a determinação do desenvolvimento, entre outros, da caixinha que vai permitir que se possa receber sinal digital mesmo por televisores analógicos, ou seja, de um conversor básico, conhecido como terminal de acesso ou set top box, de baixo custo, contendo aplicativos residentes mínimos como guias de programação, possibilidade de acesso a serviços de governo etc.. Este receptor deverá ser escalável, isto, é, permitirá que a ele sejam integradas novas aplicações e evoluções sem que seja necessário trocá-lo, sem deixará temíveis legados como aconteceu na Itália e em outros países. Políticas fiscais de incentivo estão sendo pensadas para fabricação destes terminais no Brasil.

Muito trabalho

O decreto presidencial dá prazo de sete anos para que o sinal digital cubra todo o território brasileiro e 10 anos de prazo para que toda a transmissão passe a ser digital no país. Ao fim dos 10 anos, as concessões de canais analógicos deverão ser devolvidas à União pelos operadores privados. Isso significa que elas não poderão multiplicar o número de canais, sendo obrigadas por lei a devolver os sinais analógicos ao governo.

Isso significa que está tudo ok e a luta pela democratização dos meios de comunicação, pela inclusão digital e pela transparência nas negociações sobre TVD se encontram em outro patamar? Não. Mais do que nunca a sociedade brasileira, em seus diferentes níveis – empresários, ONGs, academia, pesquisadores ou instituições da sociedade civil – precisam estar presentes e participar das próximas etapas do processo de TVD-T híbrida. Somente assim será possível garantir sua implantação através dos novos canais culturais, do uso da multiprogramação, da interatividade e da produção de conteúdos digitais nacionais de forma descentralizada das grandes empresas de radiodifusão.

Enfim, ainda há muito trabalho pela frente, principalmente se pensarmos que, para além da TV digital, ainda precisam ser definidos os critérios para implantação do rádio digital no país.

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Doutora em Comunicação pela Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha), pesquisadora na área de mídias digitais, autora, com Takashi Tome e André Barbosa Filho, de Mídias Digitais, inclusão social e convergência tecnológica (ed. Paulinas, 2005) e de Reality shows, a sedução das audiências (ed. Paulus, lançamento em setembro)