Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Linguistas e gramáticos

Os estereótipos são que os gramáticos defendem o português correto, formal, e que os linguistas defendem todas as variantes. Minha impressão pessoal é que o predicado “defensor” até pode ser aplicado ao gramático, mas é incorretamente aplicado ao linguista.

As principais diferenças entre os dois grupos, ou entre os dois grupos de teorias (sem esgotá-las), considerados diversos critérios, são:

Quanto ao corpus: os gramáticos se baseiam em corpora escritos; dizem que seu corpus é literário, mas essa é mais uma jogada do que um fundamento; os “exemplos” poderiam vir dos jornais ou das revistas semanais. Haveria “erros”? Mais ou menos tantos quantos se encontram na literatura, convertidos em exceções. Os linguistas privilegiam os dados orais, o que não quer dizer que sempre gravaram falas; muitos seguiram seu ouvido ou sua avaliação pessoal; a querela da gramaticalidade é o melhor exemplo. Lidam mais com fonemas do que com letras; levam em conta construções que não se encontram tipicamente em textos escritos. Ou seja: linguistas e gramáticos divergem sobre o que é – ou o que pertence a – uma língua. Apelando para uma analogia, é como se alguns biólogos incluíssem e outros excluíssem os animais “nojentos”. 

Quanto a teorias e métodos: para os gramáticos, a autoridade dos escritores é um critério para aceitar construções (e até exceções); para os linguistas, o critério para aceitar construções são os dados: se um fato ocorre sistematicamente, pertence à língua e deve ser descrito pela gramática. Pronúncias como “paiaço” e “muié”; concordâncias como “tu vai” e “os menino”, regências como “assistir o jogo” e “obedecer as regras” etc. são exemplos de pontos de discordância.

Quanto à explicitude e coerência das análises: gramáticas mais exemplificam do que analisam; são menos coerentes. Por exemplo, uma definição de sujeito pode não se aplicar a muitas construções sem que isso seja visto como um problema. As gramáticas não se preocupam em indicar o sujeito de uma interrogativa ou de uma imperativa depois de defini-lo como “o termo sobre o qual se declara” alguma coisa; ou em dizer que “a casa” é sujeito em “A casa tem três quartos” depois de definir sujeito como o que pratica ou sofre uma ação.

Quanto às controvérsias: gramáticos, eventualmente, discordam entre si, mas raramente se lê em uma gramática a crítica explícita de outra. Entre os linguistas, ao contrário, há verdadeiras polêmicas, ora devidas à preferência por uma ou outra teoria (formalistas e funcionalistas, por exemplo), ora devidas à preferência por uma ou por outra análise do mesmo fato (por exemplo, sobre a chamada “passiva sintética”).

Quanto aos erros: gramáticos consideram erros as variantes não “formais” ou não “padrões”; linguistas, não. Um bom exemplo é o caso da colocação dos pronomes. Ainda há gramáticas que consideram erradas construções como “me dá um dinheiro”. Haveria uma regra segundo a qual não se pode começar oração com pronome oblíquo. Algumas, como a de Cunha e Cintra, “aceitam” a colocação de pronomes à brasileira, mas em capítulo à parte, como se pedissem desculpas ao leitor (apesar disso, todos os exames que incluem questões gramaticais seguem as regras portuguesas; a culpa, claro, não é dos gramáticos). Linguistas consideram erros apenas construções que não são comuns em nenhuma comunidade de falantes. Numa frase como “tomei dois caipirrinhas”, um linguista detectará dois erros: um de concordância (duas) e a presença de um “r” que não deveria ocorrer (isto é, que um falante nativo do português não pronunciaria nessa palavra). E explica o fato como interferência de uma língua em outra: falantes que aprendem uma segunda língua cometem frequentemente erros desse tipo – muitos estudantes brasileiros de inglês dizem [tchitcher] em vez de [thitcher], porque seu dialeto transforma o “t” diante de “i” em “tch”, e transferem essa regra para o inglês etc.

Ainda quanto aos erros: gramáticos consideram erros sociais como se fossem estruturais. Por exemplo: a variação de “l” com “r” em palavras como “flamengo /framengo” (tal “troca” nunca ocorre em começo de sílaba!!!) é parte de um processo histórico que derivou, entre outros casos, em “praia” ou “prata” (compare com “plaga” e com o espanhol “plata”). Tais pronúncias são explicáveis e previsíveis estruturalmente (e um linguista não tem dor de ouvido ao ouvi-las). Elas são socialmente estigmatizadas (em geral, caracterizam a fala popular ou rural). É um erro comparável a um de etiqueta ou de moda. Dizer que é um erro (em língua) equivale a dizer que uma saia curta é um erro no campo da moda (ou em moralidade!). É uma avaliação social, não linguística; às vezes, alguém diz que o som “fra” é horrível, mas ninguém o acha horrível em “fraco” ou em “fraque”. No entanto, trata-se do mesmo som, e no mesmo contexto…

Algumas comparações: a diferença entre linguistas e gramáticos é análoga à diferença entre antropólogos e missionários (um quer conhecer, outro quer converter) ou entre botânicos e paisagistas (um estuda as plantas, outro seleciona as “elegantes” – um bom caso de ideologias em confronto). Uma terceira comparação: no campo da moda, há os estudiosos das roupas (na história) e os que emitem juízos – em programas de TV – sobre o que é elegante ou cafona. Observe-se que há programas de TV e colunas de jornal deste último tipo também sobre língua…

Uma nota final: muito frequentemente, os defensores das gramáticas não as conhecem; só conhecem os manuais de redação e as listas de erros e fazem de conta que os dois tipos de obra são iguais. Os manuais de redação obedecem a políticas de escrita; de fato, a políticas de edição. Não substituem gramáticas, cuja função é explicar uma língua – e, eventualmente, ajudar a situá-la no espaço ideológico da nacionalidade, como um trunfo espacial.

Ia esquecendo: os gramáticos são mais conhecidos (pelo menos, é o que se pensa); linguistas ainda provocam perguntas do tipo “o que você faz?” ou “quantas línguas você fala?”, um pouco como os que estudam gens ou neutrinos.

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[Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas]