Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A porrada nossa de cada dia

Primeiro, a notícia de que haverá uma luta beneficente em frente ao Palácio do Planalto e, depois, outra de que mulheres disputarão um torneio de mixed martial arts (MMA). Neste último caso, o promotor do espetáculo avisa que não é “aquela coisa de briga de mulher”, mas de profissionais do ringue, coisa muito séria. Mesmo que não tenha havido maiores repercussões do assunto neste Observatório da Imprensa ou em colunas de jornal, não é difícil imaginar o que pensa disso gente de primeiro time como Alberto Dines, Zuenir Ventura e Ancelmo Góis, para mencionar apenas alguns dos jornalistas que têm criticado esse tipo de espetáculo em ascensão no gosto do público e da mídia.

Como não lhes dar razão? O cenário é assustador: num ringue, que pode assumir forma octogonal a depender da empresa promotora, homens fortíssimos, reinterpretações pós-modernas dos gladiadores romanos, trocam socos e pontapés até que um deles, às vezes coberto de sangue, desmaie ou dê as batidinhas convencionais de desistência (tap out). O MMA é o reality show da porrada.

(Não é, aliás, sem algum arrepio que grafo “porrada”, pois me lembro bem que, no auge da ditadura militar, o finado Tarso de Castro foi levado à polícia política porque havia empregado, em uma nota no Pasquim, essa palavra. Nos porões, a porrada dava o tom aos “diálogos”, mas só como passagem ao ato: como fala, era proibida).

Danos irreversíveis

Apesar de tudo, há algumas ponderações a se fazer. A primeira é que esse tipo de espetáculo existe há mais de um século no Brasil. Está documentada em jornal arquivado na Biblioteca Nacional a luta promovida por um empresário, no fim da primeira década do século 20, entre um campeão japonês de judô e um capoeirista de Niterói, em que este último nocauteou o visitante, em menos de um minuto, com o famoso “rabo-de-arraia”. Depois, foi carregado em triunfo pelos estudantes.

Nada de MMA, a coisa se chamava mesmo “vale-tudo” e não tinha regras. Ao longo de todo o século, no Rio e na Bahia, o vale-tudo era vezeiro nos ringues, com público numeroso e alguns momentos que merecem o nome de “épicos”. Desta natureza foi a luta no início dos anos 1950 entre o extraordinário mestre de jiu-jitsu Hélio Gracie e seu ex-aluno Waldemar Santana. A revista O Cruzeiro apoiava Gracie, a massa se dividia. Após três horas e quinze minutos de combate ininterrupto, Hélio perdeu. Por exaustão, há quem diga. Há também quem, tendo assistido ao prélio no Automóvel Clube, no Rio, ainda consiga hoje narrar aquela noite como um bom romancista.

Violência e mais violência, alguém poderá objetar. Sim, mas haverá também especialistas para defender o ponto de que o boxe pode ser ainda mais violento do que isso. É que, no popular esporte bretão, codificado por um nobre (aliás, pai daquele jovem catamito que levou Oscar Wilde à prisão), bate-se apenas da cintura para cima, de preferência na cabeça, o que termina provocando danos cerebrais irreversíveis na maioria ao cabo de algum tempo. No caso da luta livre, por mais violento que se afigure o prélio, os golpes se espalham ao longo do corpo.

Horário nobre

Na realidade, o MMA de agora não é exatamente um vale-tudo. Certo, não é a encenação teatral do catch-as-catch-can, que ainda hoje tem uma legião de fãs e já mereceu uma notável análise de Roland Barthes numa de suas “mitologias”.

O MMA tem várias regras, tem um juiz que pode interromper a luta a qualquer instante e representa um capítulo interessante no que se poderia chamar de antropologia das artes marciais. Sim, isso existe, está inscrito na história das mais diversas nacionalidades como um modo de neutralizar a fúria narcísica da agressividade, contendo-a com regras num espaço ritualístico e estetizando-a. Os educadores conhecem o potencial educativo desses ritos.

Ninguém jamais se preocupou muito com esse assunto no espaço público. Por que agora a comoção? Uma resposta hipotética é que o espetáculo da violência disseminou-se na mídia, passando a ser visto por novas frações de público, como crianças e mulheres. Mais ainda, a coisa chegou à Globo, ainda em horário tardio, mas nada indica que não possa adiantar-se na grade de programação, aparecendo à beira do jantar.

Admitamos que seja patética a possibilidade de estetização do ato de violência dentro do horário “nobre”. Violência pode ser ato e estado (instituição). É preciso levar em conta a hipótese de que a porrada física do MMA possa ser de fato menos violenta do que o espetáculo da violência institucional e moral a que assistimos, dentro e fora do horário “nobre”, quando as figuras da República vêm a público tentar explicar a corrupção do dia a dia.

 

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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]