Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Desilusão de ótica

Houve um tempo em que o pior insulto que um fotógrafo podia receber, ao mostrar uma imagem, era a de que ela estava “fora de foco”. Apresentar uma foto que não estivesse nítida era um palavrão visual que marcava, por muito tempo, a falta de habilidade em manejar um equipamento e a insensibilidade em mostrar um pedaço de papel contendo alguma coisa nebulosa. Uma habilidade que, se supunha, um bom profissional deveria administrar com a mesma maestria com que um bom espadachim maneja seu sabre ou um bom escritor sua pena.

A tecnologia digital suprimiu a possibilidade de perder a foto decisiva por falta de prática na hora de focar, com a objetiva autofoco e uma avalanche de recursos – sejam eles embutidos nas câmeras, sejam na pós-produção – que permitem a qualquer um fotografar. E quando digo “qualquer um” é isso mesmo que quero dizer; qualquer pessoa pode produzir uma imagem, não é preciso nem prática nem habilidade para apertar o botão de qualquer aparelho e desse ato surgir uma imagem. Se ela é uma boa foto ou não, é outra historia. Mas esse não é o ponto. O ponto é que, hoje, a pior suspeita que se pode levantar sobre um fotógrafo é a de que ele manipulou sua imagem. O palavrão, hoje, se chama photoshop. E o fotógrafo que se atrever a deixar rastros de seu uso, no seu trabalho, passa a ser visto como amador.

Devo lembrar, porém, que a manipulação de imagens não é novidade. Mesmo nos desenhos das paredes da caverna de Lascaux os animais têm uma das quatro patas levantada para dar a percepção de que estavam se movimentando pelas pradarias perigordianas.

A supressão da memória

O pintor francês Ingres imaginou a tela de sua autoria “Napoleon I on his Imperial Trone” (1806) como uma maneira de enaltecer o imperador e, na sequência, conseguir apoio oficial para futuros trabalhos. Infelizmente, Ingres caprichou tanto no retrato que Napoleão, mesmo com seu ego inflado e sonhos de conquistador a se perder no horizonte, rejeitou o trabalho, achando que o pintor tinha passado da conta. Um caso de puxa-saquismo artístico que custou caro a Ingres; nunca recebeu uma encomenda oficial.

Outro pintor, o inglês John Singer Sargent, caiu em desgraça entre a alta sociedade da capital francesa depois de apresentar o retrato de Amelie Gautrau, o famoso Madame X, no Salão de Paris em 1884. O escândalo foi provocado pelo fato de uma das alças do vestido de madame Gautrau aparecer, na tela, displicentemente caída. O escândalo “deixou o artista pasmado e a modelo banhada em lágrimas”. E o que era para ser o ápice de uma ascensão social anunciada – a senhora Gautrau era conhecida pela excelência de suas roupas e sua beleza, e imaginava que aquela tela a tornaria o talk of the town parisiense – se transformou, no século 19, em um exemplo de crash and burn digno do mercado de celebridades de hoje. Sargent refez o quadro e, na tela que pode ser contemplada no Museu de Arte Metropoliano de Nova York, duas alças – finíssimas, é verdade – cobrem os ombros de madame Gautrau.

Cair em desgraça era o que levava os dirigentes do Partido Comunista russo, ou do chinês, a desaparecer, como por milagre, das fotos oficiais depois de certo tempo. Na medida em que os camaradas iam entrando em declínio político, as caras deles sumiam das fotos. O fenômeno de supressão da memória era feito pelos retocadores que, com um pincel e um estilete, seguiam os caprichos históricos de Stalin ou Mao Tse-tung.

A ferramenta não faz o mecânico

A tecnologia digital, além de facilitar o ato de fotografar, tem de compensar de alguma maneira a quantidade de imagens erradas que são jogadas para o ar, por segundo, no mundo. Para isso existem mais de 80 ferramentas e plug ins dentro do photoshop. Com elas você pode retocar uma imagem, substituindo uma área por outra, ou copiar um pedaço da superfície retratada por outra. Ou, ainda, pode diminuir, e aumentar, partes do corpo, ou alterar o formato das roupas vestidas. Não consigo imaginar aonde Méliès poderia ter chegado se tivesse tido acesso na sua época a alguma coisa parecida. Mas posso contemplar, um dia sim, outro também, o que são capazes de fazer mentes sem talento no acabamento das imagens atuais.

A ideia por trás do photoshop não é a otimização da mentira, mas melhorar a luz e atenuar eventuais condições adversas em que a foto tiver sido feita. No aplicativo está reunido todo o conhecimento necessário para que as pessoas, os lugares, os objetos saiam bem na foto, o mesmo conhecimento que por muitos anos foi dominado por poucos e agora está ao alcance de qualquer um. Não podemos esquecer que a Playboy foi lançada em 1953 e as mulheres dentro das páginas dela sempre pareceram, apesar de quererem ser as garotas da vizinhança, perfeitas.

Mas, assim como o hábito não faz o monge, a ferramenta não faz o mecânico. Uma boa imagem não é conseguida a partir de instrumentos de aperfeiçoamento, e sim em função de um bom equipamento e de uma boa luz. O uso do programa que corrige os erros de português do Word, que estou usando neste momento, não implica que o texto será melhor ou pior, apenas mais legível.

O enganador em seu lugar

As aparências podem enganar, mas não durante muito tempo. Um sorriso – verdadeiro photoshop da simpatia estampada no rosto – só convence se as intenções são verdadeiras. O mesmo se pode dizer de uma foto. E os exageros das imagens maltratadas afundam como a propaganda enganosa que tentam empurrar através da retina dos consumidores.

A manipulação de imagens, não se enganem os puristas, não é nenhuma novidade. A novidade é o espanto que essa manipulação possa provocar nas pessoas e a suposta vitimização do consumidor que, para algumas mentes legislativas, parece ser incapaz de analisar sozinho as informações que recebe. Como se tudo tivesse de ser mastigado, tirando a possibilidade de discernir o certo do errado e de se supor a ausência de uma inteligência própria no indivíduo, que funcionaria melhor quando substituída por uma coletiva, em que uns poucos dizem, e decidem, o que é bom para todos. Daí para a infantilização das pessoas, e que elas sejam tratadas como crianças, é um passo.

A propaganda através de imagens poderá ser enganosa, com ou sem photoshop, porque a honestidade é um aplicativo mental que depende de cada um. Ninguém altera a imagem do frasco do produto, que vai ser encontrado fisicamente no supermercado ou no balcão de vendas; o que se extrapola é o tamanho do sonho, o tamanho do intangível.

Quem quiser burlar o próximo o fará como sempre foi feito, com lei ou sem lei. Cabe uma outra lei, a do mercado, colocar o enganador em seu lugar.

***

[J. R. Duran é fotógrafo, autor do livro Cadernos etíopes (Cosac Naify) e editor da Rev. Nacional (Burti)]