Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

UIT quer rever quem paga a conta da internet

Uma nova repartição de renda entre operadoras de telecomunicações e grandes utilizadores da infraestrutura de rede é essencial para garantir investimentos de US$ 800 bilhões nos próximos cinco anos porque, do contrário, “vamos direto contra o muro”. É o que diz o secretário-geral da União Internacional de Telecomunicações (UIT), Hamadoun Touré, em entrevista ao Valor, na qual aborda a importância da revisão do tratado global de telecomunicações, prevista para a Conferência Mundial sobre Telecomunicações Internacionais, que ocorrerá em dezembro, em Dubai.

Touré insiste que as Nações Unidas não querem controlar a internet, como acusam grupos americanos. Ao mesmo tempo, alerta para o risco de uma “ciberguerra”, com o número crescente de vírus que atacam países e companhias, com consequências desastrosas para a segurança e a economia globais. Touré comenta também a recente decisão das autoridades brasileiras de suspender a venda de novos serviços por companhias de telefonia celular. Diz que o Brasil cobra imposto demais das teles e não esconde a inquietação com o ritmo de investimentos do país nessa área, tendo em vista a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.

Na conferência de Dubai, o que estará em jogo é crucial para a futuro da segurança e da economia mundiais. As grandes potências do planeta consideram a governança da internet uma questão estratégica prioritária. “Se um país emergente como o Brasil não tiver condições de colocar esse problema no centro de sua ação diplomática e de sua política de desenvolvimento, estará condenado a aceitar decisões tomadas sem ele. É jogo de cachorro grande. Quem não entrar, vai ficar só chupando os ossinhos”, diz Alfredo Valladão, diretor da Associação EUBrasil, que organizará uma reunião a portas fechadas em Brasília, no dia 16 de agosto, para o intercâmbio de informações entre autoridades e representantes do setor privado, tanto do Brasil como da Europa.

Um novo modelo para internet

O atual tratado global de telecom é de 1988, antes da popularização da web. A revisão é exigida pela evolução do setor, com a chegada da internet nas redes de celulares e de novos e poderosos atores e fornecedores de serviços como Google, Facebook, YouTube e eBay, entre outros, que são grandes utilizadores da infraestrutura e não pagam pelo intenso tráfego que geram nas redes. Os principais tópicos para exame incluem regulações controversas, como uma tarifa de telecomunicação internacional entre os países, a necessidade de novas regras de pagamento, segurança na rede, vulnerabilidade e neutralidade da web.

A preparação da conferência tem se concentrado no que algumas entidades e congressistas dos EUA veem como uma tentativa de a ONU tomar o controle da internet. Para certos especialistas, na verdade as questões financeiras superam largamente os interesses. Está em jogo o faturamento colossal da internet. Alguns parlamentares americanos acham que as propostas na mesa de negociações autorizarão as teles a cobrar taxas sobre os enormes lucros do Google e outras companhias, o que consideram “devastador para a economia”.

Uma proposta em estudo é a da Etno, a Associação das Empresas de Telecomunicações da Europa, dirigida por Luigi Gambardella. A ideia é de um novo modelo para internet baseado em um acordo comercial entre empresas, que endossa o conceito de “qualidade baseada na entrega” e, portanto, no “valor” do tráfego, e não apenas no “volume”. Uma “compensação justa” seria cobrada de Google e outros gigantes que utilizam a rede.

Hamadoun Touré examina todas essas questões na entrevista. O secretário-geral da UIT é originário do Mali, com doutorado na Rússia e experiência no setor privado.

A ONU quer centralizar o controle da internet, a partir da conferência internacional de telecomunicações, em dezembro?

Hamadoun Touré– Não, não falamos de governança da internet. Há muito foco em torno desse tema, como se fôssemos debatê-lo. Mas não. A Conferência Mundial sobre Telecomunicações Internacionais vai examinar a revisão do tratado de 1988, que foi estabelecido para facilitar as negociações entre as operadoras. Na época, o único elemento era a telefonia, a voz, enquanto hoje falamos da convergência de voz, vídeo e transmissão de dados. Na época, o custo da telefonia era medido pelo tempo, distância, zona geográfica. Hoje, tudo isso não tem importância, o que importa são os bits. O tratado de 1988 foi a base para a sociedade da informação que temos hoje. O tratado de 2012 vai nos levar para a sociedade do conhecimento.

Mas a governança da internet parece uma discussão inevitável na conferência.

H.T.– Isso será uma parte pequena nos debates. Comparo sempre com os transportes. Não é porque você tem a estrada que vai ser o proprietário dos carros que circulam nela. Mas os dois mundos devem trabalhar juntos. É preciso saber sobre os carros que circulam, a altura e o peso dos caminhões e, juntos, definir a sinalização a ser colocada na circulação. E tudo isso é o que há entre o mundo da internet, do vídeo e da transmissão de dados, de um lado, e de outro, o mundo das operadoras que detêm as redes. Só temos 2,4 bilhões de usuários de internet, enquanto 6 bilhões de pessoas utilizam o telefone celular. E 80% dos usuários da internet são por celular. Quem vai comandar quem, então? O que devemos é cooperar.

“São US$$ 800 bilhões [em investimentos] nos próximos cinco anos”

A propósito, quem manda na internet hoje?

H.T.– Não sei, não ouso me aventurar lá porque vão dizer que sou eu, ou que os capacetes azuis (soldados das Nações Unidas) estão vindo para tomar o poder na web.

O que mudará no tratado global de telecomunicações?

H.T.– Vamos tentar fazer um tratado que permita investimento suficiente na infraestrutura, que está hoje transportando conteúdo que cresce a uma rapidez exponencial. O investimento no conteúdo é gigantesco, enquanto o investimento nas redes, que transportam esse conteúdo, cresce, mas não na mesma velocidade. Haverá um momento em que teremos tráfego demais para os investidores que estão previstos. Queremos que os dois sigam na mesma velocidade para não haver gargalo, engarrafamento na rede. Ou seja, como fazer repartição de faturamento de maneira a poder garantir investimentos na infraestrutura e que o conteúdo continue a evoluir. É preciso repartição de renda entre operadoras e utilizadores da rede. Isso é importante para garantir o retorno aos investimentos, senão cada um será obrigado a ter uma rede própria. Esse pode ser um modelo. Mas são extremos e esperamos que, sobretudo, não se coloque ideologia nesse debate. Já há críticas de que vamos propor cobrança “por clique” na internet. É ridículo. É uma maneira teatral de causar medo nas pessoas.

Quanto é necessário em investimentos?

H.T.– São US$$ 800 bilhões nos próximos cinco anos na infraestrutura da tecnologia da informação e da comunicação para não haver gargalo e não irmos direto contra o muro.

“Estamos indo direto contra o muro”

De onde virá o dinheiro?

H.T.– É investimento do setor privado. O papel dos governos é adotar políticas de regulação suficientemente dinâmicas para atrair os investimentos.

É inevitável que empresas e serviços como Google, YouTube, Facebook e outros participem do financiamento da infraestrutura?

H.T.– Mas isso é normal. O Google está investindo em sua própria infraestrutura em algumas cidades nos Estados Unidos. Mas eles percebem que criar sua rede em uma cidade não é suficiente porque ela não vai existir isolada do resto do mundo.

A solução seria a operadora de telecomunicações receber uma taxa sobre o faturamento de Google, YouTube etc?

H.T.– Como secretário-geral da UIT não posso fazer proposta, pela simples razão que ela estará morta de antemão. O que sabemos é que estamos indo direto contra o muro e pedimos propostas concretas dos Estados-membros, com participação do setor privado. Temos 700 companhias que fazem parte da UIT. A diferença é que só os países-membros votam. Mas votação aqui só ocorre para eleger o secretário-geral e membros do conselho de administração. Dizemos aos serviços over the top (Google, YouTube, eBay etc.), provedores de serviços, operadoras, que venham todos discutir e encontrar uma solução.

“Nos EUA, há problema de política interna”

A proposta da Associação de Empresas de Telecom da Europa (Etno), de criar um novo modelo de acordo comercial entre empresas na rede, pode ser consensual?

H.T.– Essa é uma proposta bem-vinda, que estimula o debate; espero que os países discutam os prós e os contras. Para a UIT, o certo é que há um problema real de completo gap entre a infraestrutura e o conteúdo. Não se pode dizer que tudo vai bem. Sabemos que o crescimento atual nos dois sentidos não é um modelo sustentável.

O futuro será uma internet a várias velocidades?

H.T.– Não, não gostaríamos que o acesso à internet venha a ser em várias velocidades. É preciso, categoricamente, insistir nisso: que o acesso seja igual para todo mundo. O acesso à informação é um dever universal.

Como o sr. vê a proposta do Brasil, da Índia e da África do Sul para criação de um organismo mundial para governança democrática e participativa da internet?

H.T.– É a proposta de alguns membros que, como todas as outras, deve ser discutida. O certo é que jamais vamos tomar uma decisão por voto na UIT.

Congressistas americanos veem aí o risco de um órgão intergovernamental no qual cada país disporia de um voto.

H.T.– Nos EUA, há problema de política interna. Passada a eleição presidencial americana, você verá outra situação. Um que fez críticas (sobre os temas da conferência) foi Robert McDowell, da Federal Communications Commission (FCC), um republicano que ataca a administração atual. Não vamos, na UIT, colocar os EUA em uma situação de minoria fazendo voto porque não votamos jamais aqui, buscamos sempre o consenso.

“A polarização da cibersegurança traz o risco de ciberguerra”

Com voto, os EUA provavelmente perderiam sempre.

H.T.– Mas não é questão de perdedor ou ganhador, isso não é bom especialmente aqui. Para a criação de normas, gestão de espectro ou gestão de satélites, que são nosso trabalho, todo mundo precisa ganhar, senão todos perdem também. Se alguém utiliza mal uma frequência, isso terá consequência ruim sobre todo mundo, vai criar interferência em todo lugar.

Sem consenso na conferência de Dubai, pode haver uma “guerra de redes”?

H.T.– Não alimento cenário catastrófico. A UIT passou por duas guerras mundiais, pela guerra fria e sempre conseguiu acordo entre os países, entre a [então] União Soviética e os EUA. E se tivemos momentos tensos, sempre encontramos solução.

Os riscos de uma corrida armamentista no ciberespaço estão aumentando?

H.T.– Constatamos nos últimos tempos a produção de um grande número de novos vírus que podem ser muito perigosos. O mais recente vírus de que se fala é o Flame, que é cem vezes mais complexo e sofisticado que o Stuxnet [os dois vírus teriam atacado o programa nuclear iraniano]. Alertamos que, se não tivermos cuidado, a polarização da cibersegurança traz o risco de ciberguerra. Pode-se fabricar um vírus contra um país, que pode ficar incontrolável se retornar contra a fonte de origem e infectar todo mundo.

“Os [países] atacados são também os que fazem mais ataques”

O Flame veio de onde?

H.T.– Nunca se disse de onde veio e a quem era destinado. Mas me fizeram essa pergunta e minha resposta é categórica: não vem dos americanos. Isso posso lhe dizer. Mas não vou me aventurar a dizer de onde veio e para que serve.

O risco de uma guerra cibernética é real?

H.T.– Corremos o risco, sim. Quando se começa a fabricar armamentos, é para utilizá-los um dia. Acontece facilmente de vírus ficarem fora de controle no ciberespaço. Hoje alguém pode se passar por um país [no mundo virtual] e provocar um contra-ataque contra o país errado. Houve o ciberataque contra a Estônia em 2007, estive lá para ver pessoalmente. Houve ataque contra o Google, supostamente partindo da China, mas sabemos que não veio de lá, foi um clone [quando uma pessoa manipula sistemas de maneira a se passar por outra na internet]. Mas tudo isso pode criar uma guerra porque a China pode ser contra-atacada inutilmente.

O Wall Street Journaldiz acreditar que militares de Israel estariam atrás dos vírus Stuxnet e Flame. Ao mesmo tempo, Israel sofreria mil ataques por minuto. Isso é normal?

H.T.– De fato há muitos países que são atacados bastante, como Israel, EUA, China, Rússia. Na verdade, os atacados são também os que fazem mais ataques. Por isso, propomos uma cooperação global para evitar a ciberguerra.

“Uma coordenação [nacional] contra o cibercrime”

Como essa cooperação funcionaria?

H.T.– Quando começamos o debate, criei o “Global Cybersecurity Agenda” e vi que o tema era muito politizado. Criei um grupo de 110 experts do mundo inteiro, incluindo especialistas de segurança de empresas como Cisco, Intel, Microsoft, para nos aconselhar. Achei que os engenheiros iam se entender, mas me enganei e houve também luta ideológica sobre a questão. Isso me levou a focar a segurança das crianças e criei a iniciativa “Child Online Protection”, com a sigla COP, que quer dizer “policial” em inglês. As pessoas começaram a dizer que precisamos proteger as crianças, os mais vulneráveis. Duas em três crianças são capazes de dar informações sobre suas famílias no ciberespaço a pessoas que nunca viram. Se definirmos uma boa política para proteger as crianças, essa política poderá servir para outras coisas, incluindo a ciberguerra.

O que sairá da conferência de Dubai nesse aspecto?

H.T.– Cada país se engajará a garantir o acesso à informação, a cooperar entre si, a se engajar a não atacar o outro, por exemplo.

Mas como deter os hackersativistas, apurar responsabilidades no ciberespaço e casar segurança e liberdade na web?

H.T.– Não é fácil porque o crime não é considerado o mesmo em todo lugar. Alguém perpetra o crime em vários países ao mesmo tempo, sem estar jamais no local. Precisamos harmonizar as leis para diminuir os riscos de crime. Por isso, os especialistas sugeriram harmonização das leis, criação no nível nacional de uma coordenação contra o cibercrime, formação ética porque podem-se buscar atividades criminosas e ter acesso a informações privadas não criminosas.

“É preciso estimular o crescimento da infraestrutura”

Seu foco é nos investimentos em infraestrutura. Como o sr. avalia a recente decisão do governo brasileiro de suspender planos de empresas de celulares?

H.T.– Não conheço suficientemente a situação, mas procuramos assegurar que haja estímulos ao investimento. A Anatel [a agência brasileira que regula o setor de telecomunicações] sempre foi um bom modelo para nós; fizemos, inclusive, um estudo para mostrar aos outros países. Mas o Brasil enfrenta certos problemas, como a taxação, que é elevada. Em nossos levantamentos, o Brasil está no pelotão de liderança na taxação sobre as chamadas telefônicas. Imposto demais mata o imposto.

O custo das telecomunicações no Brasil é caro por causa dos impostos?

H.T.– Sim, isso é muito claro. Não é a taxa federal que é elevada, as taxas estaduais é que são elevadas.

Como resolver o problema da qualidade de serviços?

H.T.– Isso tem a ver com a questão da neutralidade da rede. Se todas as companhias aplicassem as normas da UIT, esse problema seria menor. Acontece com frequência que companhias não tratam da mesma maneira o sinal que vem de seus concorrentes e dão um serviço de má qualidade. Isso não é normal. Houve um problema levantado nos Estados Unidos, por exemplo. A questão tarifária é tema de reguladores, mas a UIT pensa que a qualidade de serviços é uma questão técnica e pode ser resolvida pela aplicação estrita das normas da UIT, elaboradas com o acordo de todo mundo.

Na Olimpíada de Londres, o tráfego de telecomunicações aumentou 60% e muita gente reclama da dificuldade em telefonar. O sr. teme o mesmo no Brasil em 2014?

H.T.– Sim, é por isso que alertamos que é preciso estimular o crescimento da infraestrutura.

“A indústria de telecom vai continuar a crescer”

O sr. vê risco de uma presença maior do Estado nas telecomunicações no país?

H.T.– Não. O Estado tem um papel na regulação. O árbitro deve estar presente no jogo. Ele deve adotar regras que não sejam muito complicadas. Mas não deve aceitar que seu filho participe do jogo e nem ser muito visível no jogo. Se o árbitro interfere muito, atrapalha o jogo.

Que papel o Brasil pode ter na conferência de Dubai?

H.T.– O Brasil tem uma indústria que está produzindo softwares, equipamentos e também exporta tecnologia da informação. E tem interesse no crescimento do setor em investimentos, tanto na infraestrutura como no conteúdo. O Brasil tem também todos os desafios do desenvolvimento. Pode assim ter um papel de mediador entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Em Dubai, quero evitar que a conferência se transforme em uma luta Norte-Sul.

Qual o impacto da crise econômica global sobre o setor de telecomunicações neste ano?

H.T.– A indústria de telecom tem sido a mais resiliente até agora. O setor financeiro teve crise por falta de regulação. No setor de telecomunicações há uma regulação, leve, mas que existe em todo caso. Para haver recuperação nos outros setores, a indústria de telecom vai continuar a crescer. Também ajuda nas respostas a grandes questões globais como saúde, ambiente e desenvolvimento sustentável.

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[Assis Moreira, do Valor Econômico]