Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Leis e desordem

Todas as vezes que viaja ao exterior para encontrar os colegas, o diretor de políticas públicas do Google Brasil, Marcel Leonardi, tem de se desdobrar para explicar como funcionam as leis de internet aqui. “É um sistema muito complexo”, diz Leonardi, que vai a Brasília toda semana para participar de audiências e discutir projetos de lei relativos à rede com parlamentares.

Não é fácil acompanhar. Segundo um levantamento do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio, hoje há mais de mil projetos de lei na Câmara e no Senado que mencionam a palavra “internet”. Eles tentam regular tudo: de crimes online ao comércio eletrônico, passando por proteção à privacidade, liberdade de expressão e acesso à banda larga. Alguns se repetem; outros são contraditórios.

“O problema é que, por melhores ou piores que sejam as intenções do legislador, diversos projetos acabam tratando dos temas em desconformidade com o que a tecnologia deveria ser: essa grande plataforma para inovação”, explica Bruno Magrani, pesquisador do CTS e um dos responsáveis pelo estudo.

Há algumas semanas, por exemplo, dois projetos de lei apareceram de supetão na pauta da Câmara. Um permitiria que empresas coletassem dados pessoais sem autorização do usuário e outro, para regular o e-commerce, poderia estabelecer mecanismo de retirada de conteúdo de sites sem ordem judicial.

Quem conhece a Câmara e o Senado já sabe: quando um tema chama a atenção – como o vazamento de fotos da atriz Carolina Dieckmann, que deu origem à lei que tipifica crimes eletrônicos em vigor desde a semana passada – os parlamentares se apressam para apresentar ou resgatar os PLs sobre o assunto.

Quando os Estados Unidos se mobilizaram contra a Sopa e a Pipa, duras leis antipirataria que poderiam impedir o acesso a determinados sites (e foram derrubadas após pressão popular e de gigantes da tecnologia), os pesquisadores da FGV descobriram na Câmara uma versão brasileira dos polêmicos projetos – uma tradução. “Alguém interessado traduziu esse projeto de lei e convenceu um deputado a apresentá-lo. Ele fez isso sem saber que aquele projeto era a Sopa a Pipa”, diz Magrani. Houve uma grande repercussão no Twitter e o deputado retirou o projeto.

Há ainda outro personagem nessa trama complexa: os projetos de lei mortos-vivos. Mesmo quando um texto é deixado de lado, suas propostas podem ser ressuscitadas em um novo projeto. “A gente vê esses artigos de lei reciclados e reenxertados que nem zumbis: você mata e eles voltam”, diz o pesquisador.

Artigos com pontos polêmicos ou ambíguos são inseridos em projetos que não têm a ver diretamente com a internet – mas que, se fossem aprovados, poderiam mudar o modo como os brasileiros acessam a rede.

“Isso tem a ver com a lentidão do Legislativo. E com aquela crítica tradicional: quando a gente fala de legislação de tecnologia, temos de ter um grupo de pessoas especializadas que vão legislar no mesmo tempo do avanço tecnológico”, diz o advogado Renato Opice Blum, especialista em direito digital.

O Marco Civil da Internet surgiu há três anos para tentar organizar a regulamentação da internet. Foi uma resposta à Lei Azeredo, que poderia retirar a liberdade dos usuários da rede no País.

Discutido em consulta pública aberta na internet, o Marco Civil surgiu com um tom de “Constituição da Internet”. Seu objetivo é regular temas como liberdade de expressão, privacidade e a garantia de que todos teriam acesso igualitário à rede. Mas o tempo mostrou que tais princípios não eram tão universais assim.

Quando chegou à Câmara, começou um jogo de interesses. Empresas de conteúdo queriam poder remover pirataria sem a necessidade de ordem judicial. As de telecomunicações eram contra a neutralidade, princípio que diz que não deve haver discriminação no tráfego na internet. O relator Alessandro Molon (PT-RJ) tentou votar o projeto sete vezes, mas não houve consenso.

Molon acredita que o Marco Civil funcionará como um “guarda-chuva” que ajudará na elaboração de projetos mais específicos. “Ele trata a internet de forma estruturante”, defende. Ele acredita que o projeto será votado em abril – desta vez, com um debate mais amadurecido.

Outros estão mais céticos. “Por mais que a gente tenha conseguido fazer uma lei excelente e ideal, talvez a gente não consiga aprová-la. Mas acho que se pelo menos conseguirmos aprovar alguma lei, uma lei que garanta questões básicas e mínimas, isso já seria um grande avanço”, diz Magrani.

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ENTREVISTA / BRUNO MAGRANI, pesquisador do CTS-FGV

“As leis influenciam a arquitetura da rede”

Anna Carolina Papp

Por que há um emaranhado de projetos mas tão poucas diretrizes sobre a rede?

Bruno Magrani – Com a popularidade que a internet vem ganhando, é natural que isso chame a atenção do Poder Legislativo. Vemos um movimento para tentar disciplinar essas questões, mas são muitos novas. Temos de ter cuidado para não destruir as características que fizeram que a internet e as tecnologias digitais tivessem a importância que têm hoje.

Como evitar esse desgaste?

B.M. – Para regular tecnologia, você tem de ter um tipo de conhecimento mais técnico e apurado dessas questões, pois ela dá margem a pensar que é simples achar uma solução. É o que aconteceu com o projeto da Lei Azeredo: em versões anteriores, foi considerado que a solução para acabar com crimes online era simplesmente identificar todos os usuários. Você pode ter consequências super danosas. Vimos que regimes que identificam todos os usuários são os que dão margem a perseguições políticas e de caráter ideológico. Temos de ter em mente que as leis podem influenciar como a arquitetura da rede é construída.

Interesses de certos grupos tendem a prevalecer sobre o que é melhor para o usuário?

B.M. – Sem dúvida. Uma das falhas que têm sido apontadas no processo político em geral é que ele acaba favorecendo a atuação de grupos de interesses, como setores da indústria, que têm recursos para bancar apoio – e aqui não entrando em questões de legalidade. Se você tem mais dinheiro para investir em mais gente falando com mais deputados no Congresso, naturalmente terá mais poder e voz no sistema político. O Marco Civil é um exemplo perfeito de um projeto de lei que nasceu com ampla participação popular, passou por inúmeras consultas e processos de debate sem precedentes no Brasil, mas, quando foi apresentado no Congresso, ficou sujeito às mesmas forças e jogos de interesses de outros projetos.

Enquanto esperamos o Marco Civil, o que pode ser feito para monitorar esses PLs?

B.M. – Sinto falta de uma ferramenta que conecte APIs abertas dos órgãos da Câmara e do Senado e possibilite análises mais refinadas sobre os PLs que estão tramitando. Isso ajudaria a acompanhar os projetos – que são muitos – e a identificar quais são problemáticos. Além disso, é preciso mostrar a importância de cada um desses temas no dia-a-dia do indivíduo. Esse processo de transparência possibilita que mais pessoas participem ativamente desse processo, permitindo uma estratégia mais coerente e uma posição mais pró-ativa em relação à regulação da internet.

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Anna Carolina Papp e Tatiana de Mello Dias, do Estado de S.Paulo