Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Escaramuça camufla aliança estratégica

Já tivemos a oportunidade de registrar neste Observatório o jogo de interesses que permite aos principais grupos privados de mídia, em alguns momentos, se colocarem em campos opostos [ver ‘ABRA vs. ABERT: O interesse público e o racha das entidades‘] e, em outros, se apresentarem unidos contra um adversário comum [ver ‘TV digital: Os radiodifusores falam com uma só voz‘].


Nos raros momentos em que esse jogo de interesses se explicita publicamente é preciso compreender suas razões como forma de tornar menos opaco o funcionamento do sistema privado de mídia dominante entre nós.


O leitor dos jornais de referência nacional da grande mídia terá certamente notado dois anúncios de página dupla veiculados entre os dias 27 e 31 de julho. O primeiro, publicado no Globo e na Folha de S.Paulo, é assinado pela Rede Globo de Televisão e tem o título ‘Eu prometo’. Promete o quê?




‘Isenção, transparência e compromisso com a verdade. Fazer a maior cobertura jornalística que uma eleição já teve no Brasil. Mobilizar mais de 4.500 profissionais da Rede Globo em todo o país para revelar a notícia em primeira mão, estimular o debate e aproximar o Brasil da sua casa com reportagens especiais. Esse é o nosso compromisso. Afinal, a escolha do canal de TV também é um exercício de democracia.’


A primeira reação do leitor é de estranhamento: ‘isenção, transparência e compromisso com a verdade’ não deveriam ser as normas profissionais e éticas rotineiras de qualquer cobertura jornalística, em qualquer veículo de comunicação, em qualquer época? Por que se torna necessário ao maior grupo privado de mídia brasileiro explicitá-las para a cobertura de uma campanha eleitoral? Há razões para que alguém coloque em dúvida esses compromissos básicos na cobertura da Rede Globo?


Outro possível estranhamento está esclarecido no corpo do texto: por que a Folha de S.Paulo – em princípio, concorrente do Globo – publica o enorme anúncio da Rede Globo? Está lá escrito que os grupos Frias (Folha) e Marinho (Globo) – que já são parceiros no jornal Valor Econômico – se uniram também na realização e divulgação de pesquisas eleitorais para as eleições de 2006.


Campos opostos


O segundo anúncio, publicado no Estado de S.Paulo, tem o título ‘Eles prometem. A Band cumpre’. Está assinado pela Rede Bandeirantes de Televisão e responde a algumas das questões suscitadas pelo anúncio da Rede Globo. Seu texto diz:




‘O eleitor já está acostumado com o blablablá dos candidatos. Duro é promessa de quem nem candidato é. A Band construiu uma história de isenção, credibilidade e imparcialidade. Para chegar lá, não basta ônibus ou barco. A viagem pela história é bem mais complexa.’


O corpo principal do anúncio recorre à memória histórica e relembra seis diferentes ocasiões – de 1979 até 2006 – em que o comportamento ‘deles’ – a Rede Globo de Televisão (que não é diretamente mencionada no texto) – não correspondeu ao compromisso profissional e ético agora anunciado. Ao contrário, são ocasiões que ficaram identificadas na história de nossa televisão como exemplos de parcialidade, distorção e omissão capazes, inclusive, de alterar o rumo do processo político.


Entre os exemplos lembrados estão o alegado envolvimento da Rede Globo com a Proconsult nas eleições para governador do Rio de Janeiro, em 1982; a omissão da cobertura das Diretas-Já, em 1984; e a famosa edição do debate final entre os candidatos Collor e Lula, em 1989. E o texto do anúncio termina com duas perguntas: ‘E eles? Será que mudaram?’.


Um leitor desavisado poderá, a partir dos dois anúncios, acreditar que está diante de grupos de mídia com princípios e comportamentos distintos, um do bem e outro do mal. Muito pelo contrário. Globo e Band são dois dos maiores grupos privados de mídia do país, concessionários de emissoras de rádio e televisão, que defendem os mesmos interesses básicos – como acaba de ocorrer em relação, por exemplo, à escolha do padrão japonês de TV digital para o Brasil.


O que estaria, então, agora em jogo e que coloca os dois grupos em campos opostos? Em primeiro lugar, a disputa pela audiência e pelas verbas dos anunciantes. E, em segundo, a disputa pela credibilidade jornalística, bem intangível fundamental em crise generalizada e acelerada, sobretudo a partir da cobertura que esses mesmos grupos vêm fazendo da crise maior da política e dos políticos desde o início de 2005.


Mesmo lado


No que se refere à audiência, desde que a Rede Record – no auge das denúncias do ‘mensalão’ e do ‘valerioduto’, em 2005 – ameaçou a liderança do soberano jornalismo do Jornal Nacional da Rede Globo com a novela Por Amor, ficou claro que o principal telejornal da Globo não era imbatível. E quanto à credibilidade do jornalismo, existiria circunstância melhor do que a cobertura de uma eleição geral para desferir um ataque frontal ao concorrente e construir/reforçar uma imagem pública de imparcialidade e isenção?


No Brasil, é sempre necessário lembrar que não existe alternativa à grande mídia privada e comercial da qual tanto o grupo Globo (família Marinho) como o grupo Band (família Saad) fazem parte. Até que tenhamos um sistema alternativo de mídia, de preferência um sistema público (não-estatal), as eventuais disputas entre os grupos dominantes serão menores e circunstanciais, sem conseqüências significativas para o atendimento do interesse público, razão primeira da mídia – impressa e eletrônica.


Quando estão em jogo a definição das políticas públicas de comunicações, Globo e Band sabem exatamente de que lado estão. Estão sempre do mesmo lado, isto é, na defesa dos seus interesses, do sistema privado e comercial de mídia.


***


Em tempo


Sobre as pesquisas eleitorais, tema do texto ‘A divulgação contaminada das pesquisas eleitorais‘, dado neste OI, quero registrar o importante artigo de Nelson Breve, no site da Agência Carta Maior, sob o título ‘Pesquisa do IBOPE colhe amostra desfavorável a Lula‘ (28/7/2006).


O olhar crítico do observador tem que estar atento não só à cobertura da mídia mas, sobretudo, para as importantes e sutis diferenças que podem esconder-se na composição das amostras com as quais os diferentes institutos de pesquisa pretendem auferir ‘cientificamente’ as intenções de voto dos eleitores.

******

Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)