Em 8 de setembro, o jornal O Estado de S. Paulo publicou reportagem de Roberto Godoy sob o título “Exército precisa de R$ 58 bilhões até 2030”. Uma semana antes, o caderno “Ilustríssima”, da Folha de S. Paulo, trouxera artigo de Ricardo Bonalume Neto, “Exercícios de guerra”. Godoy e Bonalume são aves raras. Jornalistas especializados em assuntos militares. Altamente competentes. Fazem um trabalho importante.
Mas é preciso ir além de relatar planos das Forças Armadas. É preciso discutir a lógica das opções estratégicas de seus chefes. Algo que o almirante reformado Mario Cesar Flores, 82 anos, ministro da Marinha do governo Fernando Collor (1990-92), procura há décadas fazer em diálogo com a sociedade, por intermédio da imprensa.
A infrequência de reportagens sobre o aparelhamento das Forças Armadas reforça a constatação de que o assunto escapa inteiramente ao interesse da opinião pública. “Responsabilidade direta sobre o Brasil nós não temos desde a Guerra do Paraguai (1864-70)”, diz Flores. “Fomos às duas guerras mundiais (1914-18 e 1939-45) como caudatários, sem responsabilidade fundamental. Não existe, na cabeça do brasileiro, a ideia de que possamos vir a ser ameaçados. Vejo isso com meus filhos, com meus netos. Não passa pela cabeça deles essa hipótese. Eles não veem as Forças Armadas como uma coisa essencial.”
No entanto, a questão militar propriamente dita – não a questão da interferência política dos militares – é essencial e não deveria ser praticamente ignorada na mídia jornalística, o que a torna invisível para a população. Há quase 25 anos, Flores bateu na mesma tecla em entrevista concedida ao Jornal do Brasil (ver “A guerra é assunto de todos”, no site Poder Naval). Para uma visão mais completa do pensamento do almirante, vale a pena visitar as páginas onde se encontra o programa Roda Viva, da TV Cultura, em que ele, ministro da Marinha, esteve no centro do debate (ver aqui).
Fuzileiros e submarinos
Flores, ativo no processo de transição da ditadura para a democracia – fez parte, por exemplo, de comissão chefiada por Afonso Arinos de Melo Franco (1905-90) que, no governo de José Sarney, preparou um esboço de anteprojeto de nova Constituição –, colabora constantemente na imprensa. Cultiva na escrita (como na fala) uma clareza rara.
Há alguns anos, mantém uma coluna mensal de opinião no O Estado de S.Paulo. Seu texto mais recente é “Causas estruturais da violência e da desordem”, onde há mais de uma passagem de avaliação crítica do papel da mídia, tanto a jornalística como a de entretenimento. Em relação à primeira, escreve: “Delitos escandalosamente graves são superados após indignação cultivada sensacionalisticamente pela mídia, num processo facilitado pela renovação contínua e diversificada”.
Nesta entrevista, feita por telefone, Flores questiona, a título exemplificativo, algumas das opções estratégicas feitas pelo Ministério da Defesa e as três Forças. Entre elas, projetos da Marinha como os de uma segunda força de fuzileiros da Esquadra (“precisa é dar condições muito boas para a primeira, a que existe”) e o de uso de submarinos para proteger plataformas de petróleo, cuja exposição na imprensa atribui aos interesses (leia-se Odebrecht) de construção de um grande complexo de estaleiro e base naval em Itaguaí, Rio de Janeiro. Põe em dúvida, também, a necessidade de certas despesas, como a de ter adidos navais das três Forças em embaixadas do Brasil, e não um só representante do Ministério da Defesa.
A seguir, a entrevista.
Controlar fronteiras
Que exemplos de pontos controversos da estratégia de defesa, ausentes do debate devido ao desinteresse geral, o senhor apontaria?
Mario Cesar Flores – No caso da Força Aérea, por exemplo, o pensamento é sobre o papel da FAB no acidente da TAM, no acidente da Gol, no controle dos aeroportos. Defesa aérea propriamente dita passa despercebida. Na parte da Marinha, o que se fala hoje em dia – coisa, aliás, muito curiosa – é a defesa dos interesses do Brasil no mar. Concretamente, na retórica do governo, defesa do pré-sal. Mas não se vai defender plataforma de petróleo com submarino. Isso se faz com navio patrulha, pequeno, para evitar terrorismo, coisas parecidas. A Marinha é cobrada quando ocorre acidente até mesmo com embarcação de recreio, mas seu preparo militar não merece a atenção da mídia e da sociedade.
E no Exército, que na verdade é a mais barata das Forças, do ponto de vista tecnológico [o reequipamento] está muito atrasado. O arco de fronteira, mencionado no artigo de Roberto Godoy: existiu nos anos 1980 a tentativa do chamado Projeto Calha Norte, que seria uma fiscalização militar da fronteira norte. Foi a época em que começou a haver uma migração da preocupação da Bacia do Prata para a Amazônia, mas não foi adiante. No governo do presidente Sarney houve algum esforço. Já no governo do Collor, de que eu participei, isso foi sufocado, muito diluído, e praticamente cessou.
Recentemente, nos últimos anos, está sendo aventado um projeto, Sisfron (Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras), que visa a melhorar as condições de controle – aí não se trata nem de defesa, porque defesa implicaria alguém atacando – das fronteiras mediante modernização dos equipamentos. Uso de veículo aéreo não tripulado, radares, uma espécie de Sivam para o arco de fronteira oeste. Isso está andando a passos lentíssimos, por questões orçamentárias. É um projeto idealmente defensável. Não só defensável. Ele se impõe. Não visa a atacar ninguém, não tem por pensamento fundamental a hipótese de alguém tentar nos invadir. É um projeto de controle das fronteiras que faz uma espécie de papel policial que a polícia não consegue fazer. Eu diria que é o projeto fundamental do Exército hoje.
Sensação de ausência de ameaça
Que motivos, na sua opinião, desencorajam um debate mais amplo das questões de aprestamento militar do Brasil?
M.C.F. – O que eu vejo é uma total inapetência por essas questões, na sociedade e no mundo político. Por uma razão muito simples, desculpe dizer, é meio chato dizer isso: defesa nacional não dá voto. Então, não interessa ao mundo político. Nós temos um documento político de defesa nacional, a Estratégia Nacional de Defesa, um documento razoável. Eu diria que até positivo. E temos o Livro Branco de Defesa, duzentas e tantas páginas, com um excesso de coisas desnecessárias de serem ditas, mas existe. Por acaso o Congresso avalizou algum desses documentos? Que eu saiba, não os examinou nem avalizou. Não deu o aval político para a ideia do governo de defesa nacional. Que eu saiba, as Comissões de Defesa Nacional, da Câmara e do Senado, não deram a menor bola para isso. Está despercebido.
Essa apatia da sociedade e política tem razões. Uma é a ausência de sensação de ameaça externa. Não existe, de fato, ameaça clássica. Existe ameaça irregular, tipo terrorismo, contrabando, imigração ilegal. Ameaça clássica de Estado, não se visualiza nenhuma coisa grave. A outra razão é que defesa nacional não dá voto. Vai-se esmorecendo na opinião pública e no mundo político essa ideia de defesa nacional.
Nosso sistema militar é lembrado, em geral mal lembrado, na síndrome da insegurança pública. É como eu escrevi num texto que estou preparando (lê): “Essa visão parece ignorar a utilidade das Forças Armadas, instituições nacionais permanentes, resistentes a crises, na manutenção de uma sociedade solidária e protegida, mais ainda em países grandes e heterogêneos como o Brasil”.
Os militares começam a ficar meio na contramão. Aparecem até coisas que, a meu ver, têm que ser contidas, para que não se propaguem.
Papel de polícia, não
O senhor pode dar um exemplo?
M.C.F. – Outro dia vi uma declaração de um general, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, do Ministério da Defesa, defendendo o papel de controle militar dos eventos públicos de grande repercussão. No final, o Exército no papel de polícia. Coisa de que eu discordo, é óbvio. Eu entendo que possam existir episódios de segurança interna que exijam uma ação tática que só uma força armada, Exército ou fuzileiro naval, é capaz de fazer. Mas faz aquilo e cai fora. Ou seja, usa o tanque para passar por cima de um obstáculo e vai embora. Segurança pública rotineira não é papel militar. Não pode ser.
Se começarmos a “ah, não tem ameaça externa, vamos cuidar da segurança interna”, perdoem-me, mas isso está errado. É preferível aprimorar, modernizar as polícias, e esquecer as Forças Armadas.
O Brasil é um país que tem condições de esquecer as Forças Armadas?
M.C.F. – Na minha opinião, não pode. A dimensão nacional, na equação do mundo e, sobretudo, na equação regional, não permite que o Brasil esqueça as Forças Armadas.
Há cenários possíveis de uso do poder militar. Eu entendo que o cenário que veio da Segunda Guerra Mundial e se prolongou na Guerra Fria, e que estava fundamentado no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar, 1947), essa segurança coletiva tutelada por uma grande potência perdeu o sentido, porque não existe esse tipo de ameaça. Não tem mais Alemanha [nazista], nem União Soviética.
Protagonismo regional
Mas outros cenários existem. Cenários de guerra irregular. E não se trata de insurreição interna, cuja probabilidade no Brasil é muito pequena. Mas mesmo as externas têm repercussões sobre o Brasil. Algo que eu disse certa vez e fui contestado imediatamente: a dimensão do Brasil faz com que na nossa região – região meio flexível, América do Sul, talvez um pouquinho América Central – o Brasil não possa se omitir. Porque se o Brasil se omite, dá espaço para a interveniência de potências de fora. Se o Brasil se omite no problema do Equador com o Peru, dá respaldo para os Estados Unidos intervirem no problema. Acho que na nossa região o Brasil tem um papel protagônico – a palavra é meio complicada – que exige a existência de Forças Armadas eficientes. Não se trata de capacidade de invadir ninguém, mas de fazer uma intervenção, por mandado internacional, que seja eficiente. Não dar procuração para outro fazer no nosso lugar.
Desse ponto de vista, a participação no Haiti se justifica plenamente?
M.C.F. – Acho que sim. Até porque as razões humanitárias têm que ser levadas em consideração. O Haiti, por sua configuração racial, sua cultura, é um lugar em que o Brasil tem um papel. Não há a menor dúvida de que um brasileiro no Haiti é mais bem-visto do que o inglês, o alemão. Faz sentido.
O Brasil não é grande potência. Tem preocupações ambientais, humanitárias e econômicas que são globais, mas na segurança e defesa ele tem que, pelo menos num horizonte relativamente longo, priorizar a sua região. Onde ele deve ser protagônico, sim. O barão do Rio Branco dizia isso cem anos atrás.
Inovações megalômanas
Que tipo de evolução das Forças Armadas seria indicado? Isso está espelhado nos documentos de estratégia nacional?
M.C.F. – Está razoavelmente especificado. Eu não detecto nesses documentos erros graves. O que eu detecto neles – aí, é preciso ser franco – são propósitos inexequíveis. Não temos como cumprir certas metas de preparo ali postas, e que na verdade não são as peremptórias, urgentes.
Por exemplo?
M.C.F. – Uma segunda força de fuzileiros da Esquadra. Precisa, de fato? Acho que precisa é dar condições muito boas para a primeira, a que existe. Fuzileiro é transportável, meu Deus. Se houver um problema aqui, ou lá, ou acolá, transporte-se. Eu tenho minhas desconfianças sobre essas inovações megalômanas.
Outra coisa que precisa ser reconsiderada. Fala-se, evidentemente, nas deficiências orçamentárias. Mas nós temos despesas discutíveis. Justificam-se, por exemplo, três adidâncias em Lima, em Santiago? Será que um adido de Defesa não resolveria tudo?
Há quarenta, cinquenta anos atrás, nós vivíamos, do ponto de vista militar, numa total dependência dos Estados Unidos. Era o programa de assistência mútua. Criamos três comissões em Washington – a Naval, a da Aeronáutica e a do Exército. Para aquisição de equipamentos, essas coisas. Justifica-se, hoje? Não seria o caso de ter uma, do Ministério da Defesa?
Eu ouvi uma vez uma frase engraçada de um almirante intendente dizendo que ele entendia que a Comissão Naval em Washington existisse, porque dava chance de alguns oficiais servirem lá durante algum tempo, mas que na verdade ele resolvia tudo pelo computador, aqui do Rio de Janeiro…
Arma de dissuasão
Que colaboração o senhor esperaria da mídia jornalística para colocar o assunto no horizonte da opinião pública?
M.C.F. – É complicado. Eu não vejo um caminho prático para isso. Mas seria uma campanha de conscientização de que ainda existe papel para as Forças Armadas. Os problemas de insegurança que vêm ocorrendo internamente em muitos países e em algumas regiões mostram que ainda existe papel para as forças armadas na política contemporânea. A imprecisão desses problemas irregulares, que não são mais os combates clássicos entre exércitos, faz com que as forças armadas de todo o mundo sintam dificuldades em definir seus papéis. O que lhes cabe nesse contexto e que tipo de preparo e dimensão, configuração etc. devem ter.
E já está acontecendo. Se me perguntassem o que eu acho, eu diria que, por exemplo, no caso da Marinha brasileira, há uma lógica para um projeto de submarino, independentemente de ser ou não nuclear. É uma arma de dissuasão, para que não venham se meter conosco, porque haveria um preço caro.
Projeção de poder
No mais, tenho dúvidas a respeito de qual deva ser o preparo. Por exemplo, navios de escolta para tráfego marítimo. Por acaso você vê alguma hipótese de conflito que gere ameaça a tráfego marítimo global, como houve na Segunda Guerra Mundial? Ou como poderia ter havido numa guerra com a União Soviética? Depois da Segunda Guerra nós tivemos Guerra da Coreia, Guerra Índia-Paquistão (1965), Guerra do Vietnã e outros conflitos. Em nenhum deles houve ameaça a tráfego marítimo. Então, tenho minhas dúvidas a respeito de navios de escolta. Agora, a capacidade de projeção de poder é importante. Aviões, fuzileiros, navios de apoio – não adianta apenas colocar os fuzileiros lá e não ter apoio logístico para eles.
Como o desinteresse se configura no Congresso Nacional?
M.C.F. – O orçamento militar é cortado por óbvia compulsão da realidade fiscal brasileira, mas quando é cortado no Congresso não se levam em consideração os efeitos sobre a defesa nacional. É indiferente. As Forças Armadas que se virem. Não existe preocupação com as consequências sobre a defesa nacional. É simplesmente uma questão de reais.
Recentemente, a construção de submarinos vem merecendo menções na mídia, talvez porque envolva a construção de grande complexo de estaleiro e base naval em Itaguaí, no Rio de Janeiro. Volto ao texto que estou preparando (lê): “O governo deve conduzir uma campanha sem arroubos de patriotismo vazio e sem ameaças fantasmas, mas que esclareça serem inseguras a estabilidade e a ordem apoiadas apenas na negociação e no jurisdicismo, sem poder militar que os respalde. Esclareça que a imperfeição do mundo se mantém presente no século 21”.
Por isso, não se pode ignorar a dimensão estratégica da política.