Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Grande imprensa desqualifica o debate

A regulamentação de mídia voltou a ser notícia na sexta-feira e no sábado (8 e 9/10), acentuando a impressão de que os três jornalões – Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo – não pensam exatamente o mesmo sobre o assunto. O propósito da notícia foi a a viagem do ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Franklin Martins, à Europa para convidar autoridades e funcionários da Comunidade Europeia para o ‘Seminário Internacional Marco Regulatório da Radiodifusão, Comunicação Social e Telecomunicação’, que acontecerá em Brasília, no mês que vem. O ministro está pessoalmente empenhado em deixar para o próximo governo, seja ele qual for, um marco regulatório para o país debater. Representantes da França, Espanha, Portugal e Estados Unidos já aceitaram convite para o evento. Não consta que haja atentado à liberdade de expressão nesses países.


A realização do seminário trará para o centro da discussão de que não se trata apenas de discutir como preservar a liberdade de expressão – requisito básico para uma regulamentação que pretenda ser levada a sério, mas também como a sociedade irá conviver com os interesses poderosos que cobiçam o setor, do qual os jornais são a parte mais frágil.


A legislação brasileira sobre mídia é arcaica. Parte dela vem de antes da internet existir, e vai se tornar mais obsoleta ainda com a crescente convergência dos meios. A separação entre jornal, revista, emissora de rádio e de tevê não existe mais. As venerandas casas editoriais do passado tampouco. O jogo, agora, será definido pelas operadoras de telefonia, que, no caso brasileiro, conta apenas com uma empresa brasileira. Por tudo isso, a população tem o direito de acompanhar o que acontece e se defender de eventuais ações que vão contra os interesses do cidadão e do país. 


 


A análise do material veiculado pelos jornalões nesses dois dias confirma o que já foi apontado aqui: há diferenças até agora insuperáveis entre as maiores empresas de mídia do país, quando o assunto é regulamentação. De um lado, predomina a conclusão de que a criação de um órgão regulador é urgente, pois é cada vez mais factível a possibilidade de a própria sociedade, o Congresso ou o governo organizar-se para a iniciativa que resultará na criação de um conjunto de regras que estabeleça direitos e deveres para as o setor. Do outro, vigora o espírito refratário a qualquer mudança, mantendo-se tudo como está, sem qualquer obrigação ou limite legal. 



Os títulos do primeiro dia de reportagens sobre a viagem (ver aqui) aparentemente não apontam discordância:


** ‘Imprensa é livre, o que não significa que seja boa’, diz Franklin – Folha de S.Paulo


** ‘Franklin defende agência reguladora para a mídia’ – O Estado de S.Paulo 


** ‘Governo planeja regular conteúdo de mídia’ – O Globo


As reportagens também não diferem muito, com variações que vão desde a ênfase na mais recente rusga do presidente da República com a imprensa, à verdade nua e crua dita por Franklin Martins – ‘Imprensa é livre, o que não significa que seja boa’ –, inteligentemente empregada pela Folha. Tudo muito civilizado, até se topar com um ladrilho de texto com a rubrica ‘Opinião’, do Globo, desancando a tentativa. A desqualificação para o debate sério aparece do título à última linha:


Viagem perdida


O ministro Franklin Martins está num tour europeu em busca de informações sobre regulamentação do setor de mídia. A pouco mais de dois meses do fim do governo Lula, das duas uma: é turismo ou preparação, para um eventual governo Dilma, de, mais uma vez, uma iniciativa destinada a controlar a imprensa e a produção audiovisual. Em ambos os casos, dinheiro público jogado fora.


Afinal, todas as informações alegadas como a razão de ser da viagem podem ser obtidas numa pesquisa de meia hora, por meio de diversos sites especializados.


 Mas, para não ser uma viagem totalmente perdida, o ministro poderia, ao menos, conhecer modelos de TVs públicas que são públicas de verdade.’


A troça e a lhaneza dos argumentos apontam para a indisposição das Organizações Globo, para uma abordagem séria da questão, e por pouco não dá um tiro no próprio pé ao mencionar ‘modelos de TVs públicas’. Para quem não sabe, a Rede Globo foi uma emissora pública de mão única durante a ditadura militar, quando se beneficiou do dinheiro do contribuinte para viabilizar sua rede nacional de emissoras.



O segundo golpe veio no dia seguinte, no editorial do O Estado de S.Paulo – ‘Texto, contexto e subtexto’.


O cinismo escorre entre um argumento e outro. O jornalão brada contra a censura poucos dias depois de demitir a colunista Maria Rita Khel por ‘delito de opinião’, não deixando dúvidas sobre que tipo de liberdade de expressão defende – a que sustenta seus interesses políticos, partidários ou econômicos. Não falta também cinismo. Entre os fantasmas que o jornal vê na viagem do ministro, o texto apela para ‘consciência cívica’ – por certo, a mesma que levou à demissão da colunista. No mais, é a lenga-lenga conhecida – que começa com o ‘controle social’ da mídia e termina com a ameaça de um governo totalitário determinando o que pode e o que não pode ser publicado. ‘Atenção, muita atenção’, agita-se, num dos trechos do editorial, ao dizer que o governo pretende enviar, ainda neste ano, o projeto que abrirá a discussão no Congresso para a regulamentação. O alarme é falso. No concorrente Folha de S.Paulo, um dia antes, o ministro disse: ‘Não é algo imediato, porque será necessária uma consulta pública antes do envio ao Congresso, que precisará também de tempo para discussão. Mas temos de ter um modelo. Nossa regulamentação de radiodifusão é de 1962, quando eram poucas as pessoas que tinham TV, e celular não existia nem em sonho’.


 


Mas há, entre os jornais, a corrente de opinião de que as regras a serem debatidas no seminário são urgentes. Do contrário, argumenta-se nos bastidores, as empresas serão atropeladas. Quando menos perceberem, terão de enfrentar um movimento já consolidado a favor da criação de um conjunto de regras e leis que estabeleça não somente direitos, mas também deveres para empresas, profissionais e autores independentes. É essa urgência que explica a decisão da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), que reúne menos de 150 publicações do país todo, de apresentar, até o final deste ano, sua Comissão de autorregulamentação, cujo formato tem como principal meta afastar qualquer ente do estado – seja ela do Judiciário, do Legislativo ou do Executivo – das decisões que venha a tomar.



A autorregulamentação é exercida em países onde o mercado de mídia não é oligopolizado, como é o caso do Brasil. Por esse motivo, é visto com desconfiança, pois há o justificável temor de que as empresas privilegiem a sua liberdade de expressão, em detrimento da mesma liberdade a que o cidadão e outros segmentos da sociedade têm direito. A pluralidade de pensamento, que hoje praticamente inexiste na imprensa, também entra nessa conta – e começa a ser motivo para mobilização. A prova está na reportagem ‘Chaui prega ‘boicote’ à mídia para ‘defender liberdade de expressão1’, que a Folha trouxe no sábado. A ‘reportagem’, feita a partir do original publicado no site ‘Rede Brasil Atual’ diz: 


A professora titular de Filosofia da USP Marilena Chaui criticou ontem veículos de imprensa em um ato em apoio à candidata do PT Dilma Rousseff na Faculdade de Direito da USP.De acordo com reportagem do site ‘Rede Brasil Atual’, Chaui afirmou no ato de ontem que lideranças de esquerda e do PT devem deixar de atender jornalistas da grande imprensa e realizar uma espécie de ‘boicote’ a pedidos de entrevista.’Para defender a liberdade de expressão, é preciso não falar com a mídia’, afirmou Chaui. A professora disse no evento que a mídia abre espaços para figuras do PT e de movimentos sociais apenas para ‘parecer plural’, porém realiza um ‘controle de opinião’ sobre o que é publicado, segundo relato do site.

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Jornalista