Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Laranjas compram rádios e TVs do governo federal

Empresas abertas em nome de laranjas são usadas frequentemente para comprar concessões de rádio e TV nas licitações públicas realizadas pelo governo federal, aponta levantamento inédito feito pela Folha.


Por trás dessas empresas, há especuladores, igrejas e políticos, que, por diferentes razões, ocultaram sua participação nos negócios.


Durante três meses, a reportagem analisou os casos de 91 empresas que estão entre as que obtiveram o maior número de concessões, entre 1997 e 2010. Dessas, 44 não funcionam nos endereços informados ao Ministério das Comunicações.


Entre seus ‘proprietários’, constam, por exemplo, funcionários públicos, donas de casa, cabeleireira, enfermeiro, entre outros trabalhadores com renda incompatível com os valores pelos quais foram fechados os negócios.


Alguns reconheceram à Folha que emprestaram seus nomes para que os reais proprietários não figurem nos registros oficiais. Nenhum, porém, admitiu ter recebido dinheiro em troca.


Há muitas hipóteses para explicar o fato de os reais proprietários lançarem mão de laranjas em larga escala.


Camuflar a origem dos recursos usados para adquirir as concessões e ocultar a movimentação financeira é um dos principais.


As outras são evitar acusações de exploração política dos meios de comunicação e burlar a regra que impede que instituições como igrejas sejam donas de concessões.


Não há informação oficial de quanto a venda das concessões públicas movimentou. De 1997 a 2010, o Ministério das Comunicações pôs à venda 1.872 concessões de rádio e 109 de TV. Licitações analisadas pela reportagem foram arrematadas por valores de até R$ 24 milhões.


Também não existem dados oficiais atualizados sobre as licitações disponíveis para consulta. As informações do ministério deixaram de ser atualizadas em 2006.


Para chegar aos donos das empresas, a Folha cruzou informações fornecidas pelo governo com dados de juntas comerciais, cartórios, da Anatel e do Senado, que tem a atribuição de chancelar as concessões.


Em nome de Deus


Pessoas que admitiram ter emprestado seus nomes dizem que o fizeram por motivação religiosa ou para atender a amigos ou parentes.


Donos, respectivamente, das Rádio 630 Ltda. e Rádio 541 Ltda., João Carlos Marcolino, de São Paulo, e Domázio Pires de Andrade, de Osasco, disseram ter autorizado a Igreja Deus é Amor a registrar empresas em seus nomes para ajudar a disseminar o Evangelho.


Políticos também podem estar por trás de empresas. O senador Romero Jucá (PMDB-RR), líder do governo no Senado, é apontado pelo sócio no papel da Paraviana Comunicações como o real dono da empresa, que comprou duas rádios FM e uma TV em licitação pública.


Em e-mail enviado à Folha, João Francisco Moura disse que emprestou o nome a pedido do amigo Geraldo Magela Rocha, ex-assessor e hoje desafeto de Jucá.


Magela confirmou a versão. O senador foi procurado quatro vezes pela reportagem para responder à acusação, mas não se pronunciou.


O radialista e ex-deputado estadual Paulo Serrano Borges, de Itumbiara (GO), registrou a Mar e Céu Comunicações em nome da irmã e do cunhado. A empresa comprou três rádios e duas TVs por R$ 12,7 milhões e, em seguida, as revendeu.


Borges disse apenas que usou o nome da irmã por já ter outras empresas em seu nome, sem dar mais explicações. E que revendeu as concessões por não ter dinheiro para montar as emissoras.


Chama a atenção o fato de que algumas concessões são adquiridas com ágio de até 1.000%. Empresários do setor ouvidos pela Folha dizem que as rádios não são economicamente viáveis pelos valores arrematados. O setor não tem uma explicação comum para esse fenômeno.


A rádio de Bilac (SP), por exemplo, foi vendida por R$ 1,89 milhão, com 1.119% de ágio sobre o preço mínimo do edital. A empresa está registrada em nome de uma cabeleireira moradora de Itapecerica da Serra (SP).


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Ministério diz não ter como saber se donos são laranjas


O secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, Genildo Lins de Albuquerque Neto, diz não ter meios de identificar se os nomes que aparecem nos contratos sociais das empresas são laranjas ou proprietários de fato, e que essa é tarefa para a Polícia Federal e para o Ministério Público Federal.


‘Seria preciso quebrar o sigilo fiscal da empresa e dos sócios e fazer escuta telefônica para saber se há um sócio oculto por trás dos proprietários declarados’, afirmou.


Alega ainda que não pode contestar a veracidade de documentos emitidos por instituições de fé pública, como os cartórios e as juntas comerciais que registram os contratos das empresas.


‘Não há lei que impeça um soldado, um desempregado ou um funcionário público subalterno de abrir empresa. Não tenho como obrigá-los a comprovar, antes da licitação, se têm ou não o dinheiro para pagar a concessão.’


A prioridade, segundo o secretário, é colocar em dia os processos de concessão atrasados -após a licitação há um longo caminho até a aprovação definitiva.


Ele prometeu zerar o estoque de rádio e TV acumulados no prazo de um ano e meio. Até lá, está suspensa a abertura de novas licitações.


‘Entre a licitação pública de venda da concessão e a emissão de licenciamento da emissora há uma via crucis administrativa. Os procedimentos são lentos e burocratizados. Cada processo passava três vezes pelo gabinete do ministro até a aprovação da outorga. A partir de agora, só irá ao ministro uma vez.’


Ele avalia que os editais de licitação foram malfeitos e deixaram brechas para as empresas adiarem o pagamento das outorgas e a assinatura dos contratos.


Atrasos


Os processos de concessão se arrastam por mais de dez anos. Cerca de 890 licitações feitas entre 1997 e 2001, no governo Fernando Henrique, ainda não foram concluídas.


Licitações feitas até 2002 juntavam concessões em diversos locais num só edital. Como as empresas disputavam em regiões diferentes, quando um candidato era inabilitado em uma delas, os demais processos paravam.


Mesmo com os processos se acumulando, novas licitações foram abertas, agravando o problema. Em 2000 e 2001, sem ter concluído licitações anteriores, o ministério pôs à venda 1.361 concessões. Até hoje, 40% desses processos viraram contratos.


Não foi criado um filtro que impedisse o candidato de vencer mais concessões do que o limite legal. A legislação diz que nenhuma empresa ou acionista pode ter mais de seis rádios FM, quatro AM e dez geradoras de TV comercial em todo o país.


Há casos de empresas e pessoas físicas declaradas vencedoras de mais concessões do que o permitido.


Também há problemas com prazos. O ministério teria dez dias, a contar da aprovação no Congresso, para convocar o vencedor, e 60 dias para assinar contrato de concessão. Há 336 processos aprovados pelo Congresso sem assinatura do contrato de concessão. (Elvira Lobato)


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‘Só dei o meu nome para a igreja arrumar emissoras’, diz evangélico


O evangélico Domázio Pires de Andrade, 74, vive da pensão de um salário mínimo numa casa humilde em terreno público invadido.


No papel, é sócio da empresa Rádio 541 Ltda., com Antonio Ribeiro de Souza, ex-vice-presidente da Igreja Deus é Amor. A empresa comprou quatro rádios em Minas, por R$ 200 mil. Após trabalhar por 24 anos na igreja, Domázio foi demitido e aderiu à Clamor dos Fiéis.


A direção da Deus é Amor não quis falar sobre o registro de empresas em nome de fiéis. (E.L.)


O senhor é dono da empresa Rádio 541 Ltda.?


Domázio Pires de Andrade – Só dei meu nome para a igreja arrumar emissoras.


Quem lhe pediu o nome?


D.P.A. – A direção da igreja.


O senhor tem recursos para pagar as concessões?


D.P.A. – De jeito nenhum.


De onde virá o dinheiro?


D.P.A. – Disseram para eu não me preocupar. A igreja arca com toda a responsabilidade.


O senhor sabe qual é a situação atual de sua empresa?


D.P.A. – Não tenho ideia. Todos os documentos ficaram no departamento jurídico.


O senhor vai reclamar a propriedade das rádios?


D.P.A. – De maneira alguma. Dei minha palavra.


Por que saiu da Deus é Amor?


D.P.A. – Me mandaram embora há cinco anos, porque eu estava de idade (velho). No início, eu vivi da ajuda dos meus amigos. Depois, fui para a Justiça do Trabalho. Na semana passada, eles me ofereceram R$ 3.000, e aceitei.


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Comércio ilegal de rádio e TV funciona sem repressão


Elvira Lobato # reproduzido da Folha de S.Paulo, 28/3/2011


No rastro das licitações de venda de concessões de rádio e TV surgiu um mercado ilegal de emissoras que o governo, reconhecidamente, não reprime.


Concessões recém-aprovadas pelo governo estão à venda abertamente em sites especializados na internet, contrariando a lei.


A legislação só permite a transferência de controle de emissoras depois de cinco anos em funcionamento, e ainda assim com autorização do governo e do Congresso, que aprova cada concessão.


Antes do prazo, só é permitida a transferência de 50% das cotas. Mas as concessões mudam de mãos por contratos de gaveta.


O secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, Genildo Lins de Albuquerque Neto, reconhece que não tem meios para coibir o comércio ilegal.


Segundo ele, os contratos de gaveta devem ser investigados por Polícia Federal e Ministério Público, assim como o uso de laranjas para a compra de concessões.


Como a Folha revelou ontem [domingo, 27/3], os laranjas são usados para camuflar os reais donos de veículos de comunicação – em geral especuladores, políticos e igrejas.


Aparência legal


A Folha apurou que igrejas são os principais clientes desse mercado. Elas adquirem principalmente rádios em sites que trazem links do Ministério das Comunicações e da Anatel para dar aparência de legalidade.


O site Radiodifusão & Negócios, por exemplo, anuncia a venda de uma rádio FM ‘por montar’ em São Paulo por R$ 4,8 milhões.


Emissoras educativas e retransmissoras de TV, distribuídas gratuitamente, também estão à venda em outros sites e por corretores autônomos. Os preços variam de acordo com o local.


A venda é feita por meio de um contrato de transferência imediata de 50% do capital da empresa, e de direito de opção sobre os 50% restantes. Assim, o vendedor não pode recuar do compromisso com o comprador.


Simultaneamente, o comprador recebe uma procuração que lhe dá poderes para responder pela empresa junto ao Ministério das Comunicações e à Anatel.


Sem se identificar, a reportagem conversou com um vendedor, pelo celular, sobre o aluguel de rádios a igrejas.


‘O contrato é assinado com pagamento adiantado de dois meses de aluguel. A igreja fica com o comando total da rádio. É assim que funciona’, disse o corretor.


A Folha não conseguiu localizar os responsáveis pela página na internet.


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Ministério deve ampliar controle, cobra deputado


Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, o deputado Bruno Araújo (PSDB-PE) afirmou que o Ministério das Comunicações precisa de um ‘aperfeiçoamento burocrático’ para evitar que laranjas apareçam como proprietários de rádio e TV.


‘O ministério tem dificuldade [em constatar a prática], mas os instrumentos de aperfeiçoamento burocrático precisam se dar dentro da pasta. No Congresso, [a aprovação] é mais uma chancela política’, disse.


A comissão convidou o ministro Paulo Bernardo (Comunicações) para audiência pública no início de abril. O objetivo é discutir a legislação do setor e possíveis mudanças na área.


Bernardo defende que políticos sejam proibidos de ter concessão de rádio e TV.

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Repórter especial da Folha de S.Paulo