Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma legislação à espera de aplicação plena

Em junho, quando os primeiros protestos exigindo o combate à corrupção e melhorias na qualidade dos serviços públicos começavam a tomar as ruas do país, a Lei de Acesso a Informações Públicas completava um ano em vigor. Ferramenta indispensável para a transparência e o controle social dos gastos governamentais, a lei ainda não contagiou a população. Ela vale para órgãos públicos dos três poderes nas esferas federal, estadual, distrital e municipal. Dados de interesse coletivo, exceto os sigilosos, podem ser solicitados sem a apresentação de justificativas. O prazo para resposta é de, no máximo, um mês. Um levantamento feito pelo Poder Executivo mostrou que no primeiro ano de vigência da lei foram feitos mais de 88 mil pedidos a órgãos federais. O acesso foi permitido em mais de 80% dos casos.

Mesmo no Poder Executivo as respostas podem não ser satisfatórias. Uma pesquisa feita pela organização Artigo 19, dedicada à proteção da liberdade de expressão e informação, mostra que as agências reguladoras deixaram de responder a cerca de 70% dos pedidos de informação. E mais da metade das requisições feitas aos Executivos municipal e estadual não foram respondidas. Para a organização, o silêncio ainda é a regra e não a exceção. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (13/8) discutiu como a Lei de Acesso à Informação pode ser usada pela mídia e pela população para pressionar o poder público.

Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu em Brasília o ministro Jorge Hage, da Controladoria Geral da União (CGU), e o jornalista Fernando Rodrigues, repórter e colunista da Folha de S.Paulo. Mestre em Administração Pública pela University of Southern California e em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB), Hage foi professor e pró-reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), prefeito de Salvador e deputado federal. Fernando Rodrigues é diretor e fundador da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e coordena o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas. Foi editor de Economia e correspondente internacional. No Rio de Janeiro, o programa contou com a presença do jornalista Chico Otávio, repórter especial do jornal O Globo. Professor da PUC-Rio, recebeu cinco vezes o Prêmio Esso. É autor de reportagens de destaque como o escândalo da LBV, a máfia do INSS, o caso Riocentro e fraudes nas importações.

Vetor de mudança

Em editorial, antes do debate ao vivo, Dines sublinhou que a Lei de Acesso tem um papel decisivo para sustentar as demandas por mudança da sociedade. “Por mais ágil, responsável e pluralista que seja a imprensa, sem um sistema eficaz de saca-rolhas, a sociedade torna-se cega, surda e, sobretudo, alheia ao que está acontecendo nas diferentes esferas e instâncias do poder. Este Observatório já tratou do acesso à informação na véspera da entrada em vigor da lei assinada pela presidente Dilma Rousseff, em maio do ano passado. Agora é hora de examinar resultados, verificar falhas e, principalmente, identificar os focos de resistência ao pleno acesso” (ver íntegra abaixo).

A reportagem exibida antes do debate ao vivo entrevistou o antropólogo Roberto DaMatta, que coordenou uma pesquisa sobre a Lei de Acesso. Para ele, o governo deveria ter conscientizado a população: “As pessoas não sabem em geral sobre a lei porque faltou divulgação e, sobretudo, uma campanha – com eu disse e tinha razão – que explicasse melhor o alcance dessa lei, as implicações dessa lei, não somente para os cidadãos, para os seus interesses pessoais, mas, sobretudo, em relação à própria democracia brasileira. Tem a ver com uma espécie de alheamento, que a gente agora está começando a perder, uma ideia de que não adianta fazer nada porque o Brasil já vem caminhando errado há muito tempo e a gente não conserta, que eu acho que é uma visão errada”.

Para ele, é preciso discutir o porquê de tão poucas pessoas procurarem fazer uso das prerrogativas dessa lei. “O que é interessante nessa lei é que ela é uma ponte entre essas duas entidades: uma que é muito falada, muito exaltada, que é o Estado, cujos membros acham que sabem todos os problemas do Brasil, que têm uma visão da realidade que nós, que não estamos no Estado não temos; e a sociedade, que em geral é quem paga o pato, quem inclusive sustenta esses funcionários todos que não têm muita noção de que são pagos pelo nosso dinheiro”, criticou o antropólogo.

Ainda longe do ideal

O diretor da organização Contas Abertas, Gil Castello Branco, afirmou que a lei ainda não está vigorando no país de forma plena. A apenas 8% dos 5.564 municípios brasileiros a implementaram. “A lei ainda não tem uma vigência nacional, nos municípios a dificuldade é ainda muito maior do que nos estados, e nos estados ainda é maior do que no governo federal, sobretudo no Legislativo e no Judiciário, que também oferecem resistência a essas divulgações”, explicou. De acordo com ele, o processo está bastante simplificado no Poder Executivo Federal porque foi criado um site específico para o encaminhamento e acompanhamento das demandas. Já no Legislativo o mecanismo é extremamente confuso, o que pode ser uma forma de esconder a informação global.

Além de auxiliar a população a monitorar os gastos públicos, a Lei de Acesso também pode ter um forte impacto para a pesquisa na área de Ciências Sociais. O historiador Carlos Fico contou que sempre tinha dificuldades em ter acesso a alguns documentos da ditadura militar, mas que com a Lei de Acesso à Informação os servidores passaram a liberar o material.“Logo depois da aprovação da lei eu fui ao Arquivo Nacional e fiz um requerimento solicitando uma série de documentos que até então eu não tinha acesso, justamente para testar a funcionalidade da Lei de Acesso. Não só para mim, vários alunos meus, orientandos de mestrado e doutorado, fizeram esse mesmo pedido e felizmente correu tudo bem”, disse o historiador. Carlos Fico acredita que a Lei de Acesso faz parte de um processo pedagógico da cultura política da sociedade brasileira que irá ajudar a consolidação direitos civis.

Guilherme Canela, assessor de Comunicação e Informação da UNESCO para o Mercosul, explicou que as leis de acesso à informação pública ganharam importância significativa na América Latina nos últimos dez anos. “Hoje são 12 países que contam com leis bastante amplas em relação a essa matéria, e em quase todos os casos essas leis foram aprovadas a partir de uma demanda bastante significativa das diferentes associações de jornalistas, sobretudo de jornalistas investigativos. Então, não só os jornalistas latino-americanos utilizam as leis de acesso à informação no seu dia a dia, como [também] eles estiveram no processo mesmo de constituição, aprovação e discussão inicial dessas leis em diferentes países”, disse Canela. Com o tempo, as leis de acesso estão sendo cada vez mais utilizadas por diferentes setores da sociedade, como empresários e representantes da organizações não governamentais.

O jornalista Diego Cabot, do diário argentino La Nación, explicou que em seu país não existe uma lei de acesso à informação pública. “No fim de 2004, foi sancionado um decreto presidencial de [Néstor] Kirchner que regulava um tipo de procedimento para pedir informação de algum lugar. Não é uma lei, é um decreto. A verdade é que os órgãos públicos o cumprem de má vontade, são bastante resistentes a cumpri-lo. Estou cansado de pedir informações de [determinados] assuntos. Por exemplo, eu pedia os voos que a presidente da nação contratava para trasladar funcionários, que é dinheiro público e deveria ser informação possível de encontrar. Nunca me responderam. A verdade é que o decreto não é uma lei, e se o órgão não responde a informação o jornalista tem que ir à Justiça iniciar uma ação que é muito lenta, demorada e dura muitos anos. Não há um procedimento administrativo que obrigue um órgão a cumprir. Se não, tem que recorrer à Justiça”, disse Cabot. Segundo ele, esse panorama afeta ainda mais a imprensa porque acaba exigindo a presença de advogados e aumentando os custos do processo.

Mais divulgação

No debate ao vivo, o ministro Jorge Hage explicou que a CGU acompanha a evolução da implementação da Lei de Acesso em todas as esferas, mas não tem poder para interferir nos outros poderes. Apenas 16 estados e 14 prefeituras de capitais já regulamentaram a lei. Entre os municípios o andamento é ainda mais lento. Mesmo entre os que têm mais de 100 mil habitantes, apenas 13% implementaram a lei. Para tentar acelerar o processo, o governo federal está lançando um programa chamado Brasil Transparente, que irá oferecer cooperação técnica sobre os sistemas de controle e acompanhamento de pedidos de informação, capacitação de funcionários públicos e distribuição de material informativo.

“Nós sabemos das dificuldades [nos outros poderes] através da imprensa, das reclamações dos jornalistas. No que toca ao governo federal, é evidente que existem áreas mais sensíveis, onde há uma maior incidência de justificativas, certa ou errada, de negar uma informação porque aí há a incidência de sigilos assegurados por leis anteriores”, explicou o ministro. Precisam ser protegidos alguns dados bancários e fiscais. As empresas estatais que atuam em regime competitivo podem negar informações consideradas privilegiadas. “Determinadas áreas, naturalmente, pelo seu próprio campo de atuação, são mais expostas a possibilidades de ocorrer a incidência de negativas”, justificou o ministro. Por outro lado, Jorge Hage destacou que a média do tempo de resposta para as demandas encaminhadas ao governo federal é de apenas um terço do prazo máximo estabelecido pela lei. E o índice de recursos, de acordo com o ministro, é pequeno: cerca de 6%.

Jorge Hage ressaltou que qualquer pessoa pode acionar o sistema de informação ao cidadão do governo federal, tanto via internet quanto presencialmente, nos ministérios e principais órgãos públicos. A única exigência é o cadastramento e a maioria dos dados do formulário é de preenchimento facultativo. Apenas 5% dos pedidos de informação vêm de jornalistas: no primeiro ano de vigência da lei, foram feitas somente 5 mil solicitações de jornalistas. “Significa que a população, de um modo geral, já começa efetivamente a utilizar [a lei]”, disse o ministro. Hage relembrou que durante os primeiros anos em que o Portal da Transparência esteve no ar, apenas um pequeno número de usuários usava a ferramenta. Geralmente, eram jornalistas, membros do Ministério Público ou parlamentares de oposição. Hoje, o site tem cerca de 800 mil acessos por mês, o que indica que a população passou a usar os dados do portal.

O ministro-chefe da CGU reafirmou que as ferramentas de transparência servem como um instrumento para o cidadão, jornalistas e membros do Ministério Público e ONGs monitorarem os gastos públicos. Como consequência da maior fiscalização, o mau uso das verbas públicas tende a diminuir: “Quanto mais você informa, mais você está abrindo a administração, dando visibilidade de tudo o que ocorre. É natural que isso amplie o número de denúncias”, disse Hage. O ministro acredita que antes das iniciativas de transparência tomadas pelo governo, as informações ficavam “submersas”. Hoje, a conscientização pode atuar como uma “vacina preventiva” contra a corrupção.

Entraves e recusas

Dines perguntou ao jornalista Chico Otávio quais foram as principais dificuldades encontradas no primeiro ano de vigência da Lei de Acesso. Para o repórter, a lei representa um avanço, mas alguns setores, como o Exército, ainda mostram resistência em divulgar os dados. Em uma pauta recente sobre as escolas de formação das Forças Armadas, quando a equipe tentava obter informações a respeito da origem dos agentes da repressão, os dados foram recusados três vezes. Na primeira alegação, o Exército ponderou que o encaminhamento havia sido feito ao órgão errado. Em seguida, que nunca havia existido escolas nesses moldes. O jornal conseguiu provar que os centros de formação funcionaram, mas a instituição, por fim, respondeu que a documentação não existia. Agora, o jornal pensa em recorrer à Justiça comum.

“Para um bom repórter, recusas e negativas só aguçam a curiosidade, só aumentam as suspeitas”, advertiu Chico Otávio. O jornalista citou que colegas na redação de O Globo têm encontrado problemas para receber informações no ministério das Relações Exteriores, no BNDES e na Petrobras. Para o jornalista, nesses primeiros quatorze meses, as instituições ainda estão trabalhando de forma reativa, esperando a provocação da sociedade. “É óbvio que todos esses pedidos ficam registrados em algum lugar. E já se sabe o que se está perguntando, o que mais se quer. Então, por que esperar pelo próximo pedido? É hora de, à luz do que já foi solicitado, tomar a iniciativa de divulgar, antes de chegar o próximo pedido. Eu não vejo dificuldade nenhuma nisso”, disse Chico Otávio.

O jornalista Fernando Rodrigues lamentou que a lei ainda não tenha sido implantada de maneira homogênea em todos os poderes e esferas. “A grande dificuldade que os jornalistas enfrentam é o critério diferente que se usa em diferentes instâncias de governo. No governo federal, em geral, é onde a Lei de Acesso tem sido aplicada de maneira mais completa, mas ainda assim há bolsões de resistência dentro do governo federal”, disse o jornalista. Além das Forças Armadas, o Poder Judiciário e o Ministério Público ainda estão, paradoxalmente, bastante fechados. “Muitas vezes as informações requeridas não aparecem, não são fornecidas. Isso é um sinal de que a lei não está em pleno vigor. Agora, ela foi uma medida civilizatória para o Brasil”, argumentou Rodrigues. Para ele, as dificuldades encontradas até o momento não são uma surpresa dada a abrangência da lei e o atraso do país no que diz respeito à transparência.

Dines comentou uma recente reportagem da Folha de S.Paulo (12/8) sobre transporte público na qual o repórter informa que obteve os dados por intermédio da Lei de Acesso. Fernando Rodrigues explicou que a maioria dos jornalistas da Folha têm mencionado a lei quando usa o mecanismo para sustentar uma pauta. No mesmo dia em que Folha trazia o texto, o seu concorrente direto, O Estado de S.Paulo, também publicava uma importante reportagem feita com base na Lei de Acesso. “Isso não significa que o mundo está perfeito. Significa que essa é uma ferramenta útil que vai ser cada vez mais usada e que tem ajudado muito ao bom jornalismo. Há muitas dificuldades, mas às vezes há muito êxito quando se busca informação por meio da lei”, assegurou Rodrigues.

 

Mais, muito mais

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 696, no ar em 13/8/2013

Nas jornadas de junho não havia cartazes nem faixas exigindo maior acesso às informações, mas a Lei de Acesso à Informação, promulgada há 14 meses, está sendo decisiva para alimentar as demandas da sociedade.

Transparência ou opacidade fazem a diferença numa democracia, os representantes do povo esquecem disso depois de eleitos ou escolhidos. Acreditam-se isentos de qualquer prestação de contas, imaginam-se acima de qualquer fiscalização e escrutínio, pretendem uma intocabilidade que só existe numa monarquia absolutista.

Por mais ágil, responsável e pluralista que seja a imprensa, sem um sistema eficaz de saca-rolhas, a sociedade torna-se cega, surda e, sobretudo, alheia ao que está acontecendo nas diferentes esferas e instâncias do poder.

Este Observatório já tratou da Lei de Acesso à Informação na véspera da entrada em vigor da lei assinada pela presidente Dilma Rousseff, em maio do ano passado. Agora é hora de examinar resultados, verificar falhas e, principalmente, identificar os focos de resistência ao pleno acesso.

A dinâmica do processo democrático não admite que nos contentemos com as façanhas antigas. A sociedade é insaciável, quer saber muito mais.

 

A mídia na semana

>> Não foi o grande dia da história da imprensa, foi apenas um dia de mudanças. A compra do influente Washington Post por Jeff Bezos, o dono da Amazon, não vai melhorar nem piorar o jornalismo. Por enquanto indicou o fim de outra empresa familiar. Como o bilionário comprou o jornal com recursos pessoais – e não da sua empresa – é possível que o fim de uma dinastia jornalística coincida com o nascimento de outra dinastia. Até há poucos anos a história da imprensa era marcada pelo que escreviam ou faziam os jornalistas, agora os grandes lances nos chegam através de aquisições, fusões ou falências de empresas. Alguma coisa está errada quando a história da imprensa submete-se e se confunde com a história dos negócios.

>> No Brasil é ainda pior: uma imprensa concentrada, rígida, uníssona, avessa ao pluralismo age como grupo, esquecida de competir e de inovar. A crise de uma empresa estende-se às demais mesmo quando os graus de dificuldade são diferentes. Sincronizadas, começaram a demitir a partir de abril: cortam cabeças, espaço, cadernos, fecham títulos, acabam com atrações e, curiosamente, o primeiro ataque é contra a cultura: no Estadão, a guilhotina liquidou o caderno literário “Sabático”, na Editora Abril a grande vítima foi o mensário de arte e cultura Bravo!. Não repararam que num país sem cultura o jornalismo torna-se completamente dispensável.

>> A mídia brasileira não gostou de saber que a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou a despenalização da produção, venda e consumo da cannabis, a popular maconha. Nossos jornais, rádios e tevês fizeram o que podiam para abafar a histórica decisão. Conservadora, nossa mídia acha que a repressão é o único meio de enfrentar o narcotráfico. O presidente uruguaio, José Mujica, acha o contrário e como é um velho socialista não merece ser prestigiado. Uruguai e Brasil, apesar de vizinhos, são diferentes, mas o debate vale tanto lá como aqui.