Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Lições provisórias de um debate em aberto

É pedagógica a polêmica deflagrada desde que o ministro das Comunicações entregou ao presidente da República, na segunda-feira (12/3), um estudo sobre a viabilidade de uma rede pública de televisão digital – e dela os interessados nos rumos das comunicações no Brasil devem tirar suas lições.


A largada para a controvérsia foi dada pelo Estado de S.Paulo em manchete de primeira página logo no dia seguinte (13/3). Na matéria, assinada por Gerusa Marques, aparece pela primeira vez o que se tornaria objeto de manifestações variadas dos atores interessados no tema. A jornalista dizia que o ‘anteprojeto’ apresentado pelo ministro era ‘uma espécie de emissora de TV do Executivo para divulgar as ações do governo federal’.


Foi o suficiente. Sem que o próprio ‘anteprojeto’ jamais viesse a público, abriu-se um debate revelador que certamente confirma muito do que já se sabe e levanta suspeitas sobre o que não se sabe. Quais as lições que podemos tirar dele?


Primeiro, fica mais uma vez claro que não há coordenação para as ações de política de comunicações no governo Lula. É sabido que iniciativas sobre o setor têm sido patrocinadas pela Casa Civil, pelo gabinete pessoal do presidente, pela Secretaria Geral, pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério das Comunicações.


Não é de surpreender, portanto, que o ministro das Comunicações tenha solenemente ignorado o esforço que há meses vem sendo feito em conjunto pela Casa Civil, pelo Ministério da Cultura, pela TVE e pela Radiobrás – esta, formalmente ligada à Secretaria Geral – para construção do I Fórum Nacional de TVs Públicas. Esse esforço conta com a participação das associações representativas das TVs educativas, legislativas, comunitárias e universitárias, além de representantes da sociedade civil.


O ministro das Comunicações, com a ajuda da grande mídia, estabeleceu de imediato uma confusão semântica e conceitual entre TV pública e TV estatal, objeto central das discussões preparativas do Fórum. Como se sabe, o artigo 223 da Constituição determina a ‘complementaridade dos sistemas privado, público e estatal’, mas este artigo – como quase todos os outros – do capítulo da Comunicação Social nunca foi regulamentado.


A quem interessa essa confusão semântica e conceitual?


Quase unaminidade


Segundo, na maioria das intervenções públicas sobre a questão, reaparece de forma nítida o preconceito anti-Estado onipresente entre os atores que têm conduzido o debate sobre as comunicações no país. Nega-se, in limine, ao Estado o direito de propor qualquer iniciativa no setor de comunicações como se estivéssemos num regime ditatorial e não vivêssemos num Estado de Direito.


Ignora-se que em democracias liberais como a nossa houve uma privatização da censura, que é exercida rotineiramente com maior intensidade, direta ou indiretamente, pelo interesse privado. E ignora-se também a norma constitucional que determina, sim, a existência complementar de três sistemas de radiodifusão, dentre eles um estatal e um público.


Não seria legítimo e democrático que o Estado – sob este governo ou qualquer outro – incentive a criação de uma rede pública digital de radiodifusão que alcance 100% do território nacional e ofereça uma comunicação alternativa de qualidade à população, como, aliás, existe e funciona em outras democracias como a nossa? Por que se deseja afastar o Estado do setor de comunicações? Quem de fato se sente ameaçado e por quê?


E terceiro, o ponto mais intrigante. O ministro das Comunicações tem reiteradamente defendido posições e implementado políticas coincidentes com os interesses da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), historicamente ligada às Organizações Globo e poderosa representante dos radiodifusores privados. Esse alinhamento ficou novamente claro agora. Por quê? A Abert, sem se envolver na polêmica conceitual entre o público e o estatal, apoiou o ‘anteprojeto’ de ‘uma espécie de emissora de TV do Executivo para divulgar as ações do governo federal’, rejeitado pela (quase) unanimidade da grande mídia como autoritário, desnecessário, chavista e oneroso. Uma rede pública de TV digital não contraria os interesses dos radiodifusores privados? Como entender essa posição?


Explicação coerente


Há duas possibilidades. A primeira aponta para uma ousada jogada política de conquista da opinião pública. Antecipando a avalanche de manifestações contrárias que inequivocamente surgiria na grande mídia, o ‘apoio’ da Abert esconderia, na verdade, uma estratégia ‘invertida’ de pressionar o governo a abandonar a idéia de uma Rede Pública de Televisão.


A outra possibilidade, mais provável, é que, de fato, o Ministério das Comunicações e a Abert desejam a criação de uma rede nacional digitalizada de televisão. Estatal ou pública? Não importa. E por quê? A rede digital, construída com recursos públicos, seria de uso compartilhado com os radiodifusores privados que se desonerariam, portanto, do investimento de sua construção. Não seria a primeira vez na história das comunicações brasileiras que tal fato aconteceria. Foi exatamente assim na construção da rede nacional de microondas (a antiga Embratel) durante o regime militar [devo a Cristiano Aguiar haver me chamado a atenção para este ponto].


Ser creditada a uma falsa ‘teoria da conspiração’ será a crítica mais fácil às duas possibilidades acima aventadas. Todavia, ainda não se encontrou uma explicação razoável e coerente para a posição assumida publicamente pela principal representante dos radiodifusores privados.


O interesse que prevalece


Quando escrevo, anuncia-se a indicação do jornalista Franklin Martins para assumir as funções de ministro do governo Lula, responsável pelo que é a Secretaria de Imprensa e porta-voz, a Secom (hoje vinculada à Secretaria Geral) e ainda cuidar da implantação da Rede Pública de Televisão. Sobre o assunto, disse ele em entrevista à Folha de S.Paulo (24/3): ‘O governo não pretende criar uma TV do governo, estatal. Mas estimular, fazer crescer e dar forma a uma rede pública de TV’ [ver aqui a entrevista completa].


A serem confirmadas a indicação e a abrangência do novo ministério, é de se esperar que exista de fato uma coordenação efetiva para a criação da Rede Pública de Televisão. É indispensável, então, que o governo confirme a realização do I Fórum Nacional de TVs Públicas e que promova um amplo debate sobre o tema nos mais diferentes segmentos da sociedade brasileira.


Como tudo mais na formulação de políticas de comunicações, também na construção de uma Rede de TV Pública há enormes interesses envolvidos e os atores estão ‘movendo suas pedras’. A questão, mais uma vez, é saber se o interesse público vai prevalecer. Que se tirem as devidas lições do atual debate.


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Ao defender TV pública, Costa ataca privatização da telefonia


Gerusa Marques # copyright O Estado de S.Paulo, 29/3/2007


O ministro das Comunicações, Hélio Costa, criticou ontem o processo de privatização do Sistema Telebrás para justificar a criação da Rede Nacional de TV Pública. Em debate sobre o assunto na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, ele disse que o Brasil não dispõe de estrutura pública nacional para prestar serviços de comunicações. ‘Quando vendemos a preço de banana as nossas companhias na privatização, vendemos nossa rede pública’, afirmou. ‘Chego a dizer que hoje, em uma emergência que espero que não aconteça, se o presidente quiser fazer rede nacional, temos que pedir licença no México.’ Ele se referia à Embratel, controlada pela Telmex, do mexicano Carlos Slim. A Embratel, além de deter infra-estrutura terrestre que cobre o território nacional, é dona da Star One, que controla a maioria dos satélites de comunicação do País, por onde trafegam sinais de TV. ‘Quem tem a rede não é o governo brasileiro, não é nem sequer uma empresa nacional.’ O Sistema Telebrás foi privatizado em 1998, pelo governo Fernando Henrique Cardoso.


Costa aproveitou o debate também para dizer que o setor de comunicações no País fatura anualmente R$ 100 bilhões e que, desse total, R$ 90 bilhões ficam com as teles e o restante é dividido entre as emissoras de rádio e de TV. ‘Então, acho que compraram muito barato.’


Segundo ele, na discussão da criação da Rede Nacional de TV Pública, cabe a seu ministério apenas dizer se há viabilidade técnica para a implantação dessa estrutura. ‘Minha função é exclusivamente dizer: nós temos condições de fazer e, tecnicamente é assim que se faz.’


Os deputados queriam saber se a TV seria exclusivamente para dar publicidade ao governo ou se seria TV pública, aberta à sociedade. Costa respondeu que o assunto será tratado por outras áreas, como a Secretaria-Geral da Presidência. Segundo ele, o presidente não tomou decisão sobre a programação, o que será feito por vários ministérios e que levará em conta as sugestões do Congresso.


O ministro disse ainda que é ‘impossível’ prever o custo real para a implantação da rede. Quando propôs a sua criação, ele estimou que seriam necessários R$ 250 milhões para os primeiros quatro anos.


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Hélio Costa participa de debate no Congresso Nacional


Reproduzido do sítio do Ministério das Comunicações, 29/3/2007


Brasília – O ministro das Comunicações, Hélio Costa, debateu por mais de três horas sobre política de telecomunicações, nesta quarta-feira 28, com os parlamentares da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados.


A comissão convidou o ministro para discutir a Rede Pública de TV, que o governo pretende criar. Hélio Costa respondeu aos questionamentos de mais de 30 deputados presentes na audiência. O ministro voltará à comissão no dia 25 de abril para debater outros temas relacionados à radiodifusão.


Em sua apresentação, Hélio Costa reiteirou que o Ministério das Comunicações está apenas cuidando da parte técnica para a montagem da rede nacional de TV. O estudo da viabilização técnica foi feito a pedido do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. O ministro esclareceu que a coordenação da nova rede é de responsabilidade da Secretaria de Comunicação do Governo Federal (Secom), que ficará sob o comando do jornalista Franklin Martins.


A proposta é viável porque a digitalização do sistema de TV vai liberar os canais 60 a 69, destinados à rede pública. O Decreto 5820/2006, que criou o SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital), prevê a criação de quatro canais: executivo, cultura, educação e cidadania, com a participação dos Estados, municípios, emissoras universitárias, comunitárias e educativas.


Atualmente, para formar uma rede nacional, com o objetivo de fazer uma comunicação pública, por exemplo, o governo federal depende de empresas privadas.


O ministro disse que, em sua opinião, o modelo ideal de TV pública é a BBC de Londres, que é gerido com autonomia pela sociedade. ‘A TV não será para divulgar os atos do governo, mas para fazer aquilo que as TVs comerciais não fazem. Por exemplo: não vi até agora nas emissoras comerciais nenhuma discussão mais profunda sobre o biodiesel. É porque não cabe, mas cabe numa TV pública.’


Porém, afirmou que o modelo ainda não está definido, porque vai ser profundamente discutido no governo, com a participação do Congresso Nacional e da sociedade brasileira. ‘Independente de ser estatal ou público, a nova rede tem que atender os interesses da sociedade brasileira’, afirmou Hélio Costa.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)