Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Luta de classes, do samba à RadCom

‘Eles eram reprimidos, os instrumentos apreendidos, o dono da casa preso e obrigado a pagar elevadas multas!’

Pode parecer, mas não é! Mestre Gil do Jongo não está se referindo à rádio comunitária. E complementa:

‘Qualquer ajuntamento de negros era proibido pela Lei de Posturas Municipais de 1831, a qual considerava o batuque como uma invocação religiosa, condenada pelos governantes.’

Acrescento eu: e pela ICAR – Igreja Católica, Apostólica e Romana, a igreja oficial do Estado brasileiro, conforme determinou a Constituição em vigor, logo após…

‘Todo indivíduo, branco ou preto forro, que em sua casa fizer ajuntamento de pretos que dizem feitiçarias ou Bangalez, ainda mesmo que consista em sua casa desamparada por esta forma de seus senhores, incorrerá em pena de 15 dias de prisão e dez mil-réis de condenações pagos na cadeia’ (Posturas, 1831).

Assim, piquete, jongo, capoeira, samba e quaisquer outras manifestações similares eram severamente reprimidas. Foi necessário que se desse a algumas delas aparência de religião de branco para que se atenuasse o despotismo da classe dominante.

Perseguição étnico-religiosa

Retirei esta fala de um documentário da TV Brasil – dita pública, porém de gestão estatal, por ter seu conselho formado por indicações pessoais do presidente Lula, o que lhe dá uma característica governista e caudilhista em sua origem. Seja como for, tem uma programação melhor que as realizadas pelas concessões públicas feitas a empresas privadas.

O documentário foi baseado no seminário ‘Os Sambas Brasileiros: Diversidade, Apropriações e Salvaguarda’, realizado com a presença magistral do ministro da Cultura, um de meus candidatos preferidos à presidência da República, ainda que ele nada tenha declarado sobre o assunto, ao que eu saiba.

‘A palavra samba aparece, inicialmente, nos jornais do século 19, relacionada com a repressão policial’ (Carlos Sandroni, professor de etnomusicologia no Departamento de Música e no mestrado em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco).

Um dia, no futuro, algum pesquisador dirá a mesma coisa sobre as rádios comunitárias (RadCom).

Não sendo afeito às celebrações momescas presenciais, eu pulava de canal em canal, apreciando por um pouco a exuberância do carnaval do Rio, Salvador, Recife e Olinda, transmitido pela Globo e outras emissoras. Assisti também a outro documentário, desta feita sobre Geraldo Filme. Sambista, carnavalesco, ativista e pesquisador racial. Aparecia, como pano de fundo dos fatos ali narrados, a perseguição étnico-religiosa em São Paulo, coisa de um século atrás.

Patamares de felicidade

Este registro culminou com o assassinato, até hoje impune, executado por policiais, do veterano companheiro de Geraldo, conhecido por ‘Pato n’Água’, inspirando-lhe um samba de despedida do amigo, cantado durante o enterro por toda a escola de samba. Há um excelente texto de Plínio Marcos sobre isso disponível aqui.

Quando chegaram ao Brasil trazidos da África, negros e negras eram separados de suas famílias e membros de sua tribo, buscando enfraquecê-los e facilitar a dominação, com fins escravagistas, sob as bênçãos papistas da ICAR e do Estado brasileiro, que os consideravam como mera mercadoria. Uma ação organizada para cometer este crime contra a humanidade, com todos os requintes de crueldade possível. Esta prática hedionda continua impune, apesar das migalhas que têm sido jogas para as vítimas atuais deste desatino histórico.

A elite dominante, senhora do Estado brasileiro, como se perpetua até hoje, sabia (e sabe) que qualquer atividade para organização e elevação da auto-estima do escravo, ex-escravo e hoje neo-escravo, poderia (e pode) ser o estopim para uma conscientização das massas oprimidas.

Naturalmente, a etapa seguinte poderia (e pode) ser uma reação coletiva à prática satânica estimulada historicamente pela igreja e pela sociedade branca e rica. Especialmente, considerando-se que eles se tornavam (e se tornaram) a maioria da população. Portanto, tanto antes quanto hoje, na medida em que a correlação de forças permite, o grande negócio é infringir toda forma de opressão e sofrimento aos pobres, de tal forma que a alegria deles não contribua para a busca de patamares mais elevados de felicidade.

Questão de raça

O objetivo dos ricos continua sendo o mesmo: explorar a classe trabalhadora, pagando-lhe um salário de escravo, para auferir maiores lucros. Esta mesma tática é desenvolvida em relação à RadCom, justamente onde os afro-brasileiros encontram uma relativa liberdade para interagir com seus pares para discutir a realidade, seus problemas e possíveis soluções. Ou seja, a reparação dos danos históricos perpetrados por uma religião, uma sociedade e um Estado branco, escravagista e criminoso, implicando, naturalmente, a tomada do poder (pela via pacífica, espero), sem o que nada vai mudar de fato.

A conclusão similar chegou também o MST e outros movimentos de porte. Sabem muito bem que, sem um sistema de comunicação verdadeiramente público, para combater a manipulação da informação das grandes corporações do setor, isto será impossível. E isto é tudo que a burguesia, herdeira dos privilégios da aristocracia e da teocracia, não quer! Daí a colocar a teoria na prática, é outra história…

Há, ainda hoje, uma escravidão e uma perseguição disfarçada dos negros nos termos da I Conapir – Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial:

‘De acordo com o documento, há uma relação entre as restrições impostas aos meios comunitários e a diferença étnica. A repressão é considerada `uma das inúmeras formas veladas de discriminação racial, impedindo que os afro-brasileiros tenham liberdade de expressão em seu sentido mais amplo, como agentes e sujeitos na produção e divulgação da informação e cultura´, tese da qual José Guilherme Castro, secretário-geral do FNDC, é defensor. `A repressão é também por causa disso. Questão de classe e de raça. É a repressão aos pobres, em sua maioria negros´, sustenta’ [ver aqui].

Os ‘300 picaretas’

José Guilherme Castro defende ainda que, somente no governo Lula, foram processados mais de 15.000 brasileiros, com cerca de 5.000 condenados, a grande maioria composta por afro-descendentes. Isto contradiz frontalmente com o fato do companheiro presidente, durante a campanha, ter jurado que era ‘um eterno defensor das RadCom’, conforme pode ser ouvido aqui.

Por outro lado, não podemos negar a inédita, porém ainda pálida e simbólica dedicação da Seppir – Secretaria Especial de Políticas para Promoção da Igualdade Racial, por ele criada sem recursos compatíveis com sua nobre missão.

‘Este governo tem uma grande dívida com as RadCom'[ver aqui].

Recentemente, durante a Teia – Encontro dos Pontos de Cultura, em novembro de 2007, Lula nos adoçou mais uma vez a boca, dizendo o que queríamos ouvir. Porém nos enganou novamente, como vem fazendo desde o início de seu governo, por nada ter feito, até hoje, para honrar sua palavra, no melhor estilo ‘esqueçam tudo que escrevi’, de FHC.

Como atenuante, temos que Mr. Da Silva é algo como a rainha da Inglaterra: ‘Reina, mas não governa’. Seu partido não tem maioria no Congresso Nacional, tornando-o refém de alianças absurdas que fez com boa parte dos que já denominou ‘os 300 picaretas’ e depende do que considera a ‘caixa-preta do Judiciário’.

Pensar diferente é crime tácito

Tem inimigos poderosíssimos, como o PRG – Partido da Rede Globo, termo aparentemente cunhado pelo saudoso Leonel Brizola. O PRG recebeu o Ministério das Comunicações e a Anatel de porteira fechada, cumprindo ao ‘motorista da elite’ (apud João Pedro Stédile e Dom Mauro Moreli) apenas engolir o que decidem por lá. E tem muitos outros inimigos, amigos ou cúmplices (não sei!) dentro de seu próprio partido, cuja maioria dos membros preferiu sacramentar a corrupção, elegendo para a Direção Nacional parte dos envolvidos nos casos de conhecimento público, cuja minoria teve de engolir, democraticamente.

Também fez acordo com o partido de FHC (Marilena Chauí confirma isto) para não levantar o tapete dos dois mandatos do PSDB, onde se encontram dezenas de bilhões de dólares furtados ao povo brasileiro. Este prejuízo, como sempre, repercutiu mais sensivelmente junto aos mais pobres e descendentes de escravos, durante a privatização de empresas como a Vale do Rio Doce, cuja venda está para ser cancelada judicialmente, em função da comprovação de ter sido lesiva ao patrimônio público.

O problema é que a Vale tem dinheiro para comprar até a alma do Mr. Presidente, levando, de quebra, uma penca de desembargadores e juízes dos tribunais superiores, como é tradicional no balcão de negócios instalado no Planalto Central do Brasil. Afinal, como disse Lula, todo mundo usa de um ‘caixa 2’…

A partir de 1964, foi eliminada grande parte daqueles que ousaram defender a liberdade e a democracia e a geração atual está condicionada ao fato de que pensar politicamente diferente é crime tácito e pode ser punido de alguma forma, especialmente perdendo o emprego. Os jornalistas que o digam!…

Analfabetismo lingüístico e político

Diante da dimensão histórica e da correlação de forças existente, e em função também dos 20 anos da ditadura civil dos ricos nacionais e estrangeiros através dos militares, cuja obra continua nesta outra forma mais direta de ditadura civil dos ricos sobre os pobres, construída com a conversão da maioria dos sobreviventes dos anos de chumbo, ao neo-esquerdismo, aliando-se ao neoliberalismo e produzindo o neo-escravagismo.

Nossos heróis ainda não foram reconhecidos publicamente por terem dado suas vidas pelos demais, ficando patente que estes jamais fizeram por merecer tamanho sacrifício, tornando-se até hoje clones alienados e vaquinhas-de-presépio conduzidas para a Marcha com Deus pela Prosperidade dos brancos, católicos e ricos, abençoados com os sacramentos hipócritas e pagãos dos papistas e protestantes.

Torçamos para que, como o samba e o carnaval, a RadCom venha a ser, um dia, parte honrada de nossa cultura nacional e as exceções que ainda merecem ser chamadas de comunitárias de fato (mesmo sem autorização do Estado criminoso em que vivemos) não sejam engolidas pelo sistema mundano, materialista e consumista, como a maioria dos membros da religião cristã o foi, fazendo esta a obra do maior inimigo de Deus e dos pobres.

Dentre os líderes do movimento pela democratização da comunicação (a maioria composta por petistas) predomina a tese da conciliação. Sepultaram a possibilidade de luta de classes, ainda que institucional, acreditando há seis anos que este governo tem alguma coisa substancial a ver com a classe trabalhadora. Esperam que, um dia, quem sabe, a rainha da Inglaterra tupiniquim tenha poder para enfrentar sozinha os grandes capitalistas (caso o queira realmente!…) e a grande mídia, considerada inimiga do povo brasileiro, por Perseu Abramo, nome da fundação do PT.

Em função de seu analfabetismo lingüístico e político, o povo brasileiro, em geral, dificilmente enxerga um dedo à frente do próprio nariz e se satisfaz com algumas migalhas, jogadas pelo neo-petismo, certamente maiores que as dispensadas aos pobres por FHC, motivo de tamanha e surpreendente aprovação pública de Lula.

Cada povo tem o futebol, o samba, o governo, a mídia, a igreja e a justiça social que fizer por onde merecer!

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Militante do movimento pela democratização da comunicação, engenheiro civil e integrante do Conselho Consultivo da Câmara Multidisciplinar de Qualidade de Vida