Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Moacir Japiassu

‘Pensando bem, Lula não mente; apenas diz ‘verdades não comprovadas’.

(‘Reflexão’ que circula na Internet)

Janistraquis voltou eufórico de breve viagem a São Paulo:

‘Considerado, você não sabe da maior! Lembra do Colégio São Luís, aquele onde o Paulo Maluf estudou quando era pequeno? Pois um dia desses apareceu outro rato a nadar na piscina…’.

O colunista checou a notícia, é mesmo verdadeira. A direção do colégio mandou desratizar as instalações e, ao buscar a saída, um roedor de porte colossal caiu na água, em meio aos nadadores. Teve gente que, na fuga, bateu todos os recordes de Ian Thorpe.

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Mais ratos

Por falar em ratos, o juiz Márcio Resende de Freitas, que na tarde de domingo deveria ter saído do Pacaembu a bordo de um camburão da delegacia de furtos e roubos, reconheceu a ‘falha’, pediu desculpas e disse que iria rezar. Agora, digam-me: se os jogos apitados pelo Edílson Pereira de Carvalho foram anulados, por que não se anula Corinthians X Inter? Qual a diferença entre aquele que ‘errou’ e este que se vendeu? Nenhuma.

Outro destaque da rodada foi o comentário do narrador Mílton Leite, do Sportv, depois do jogo, da confissão do rato e da exaustiva repetição do pênalti claríssimo:

‘Você viu, tire suas conclusões…’

O ‘você’ era o telespectador. Janistraquis, que havia abandonado a TV para conferir nosso estoque de raticida, algo indispensável num sitiozinho a cair aos pedaços, comentou:

‘O Mílton é de Jundiaí mas às vezes parece que nasceu mesmo foi em Bocaiúva, terra do Zé Maria de Alkmim…’

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País de m…

Sem revelar qual o time que deita e rola no seu coração, o considerado Álvaro Rodrigues Meira, de São Paulo, leu no Pelé.Net, sob o título Justiça gaúcha anula a decisão do STJD:

PORTO ALEGRE – Uma liminar concedida nesta sexta-feira pela juíza federal Munira Rana, da 1ª Vara Cível da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, anulou a decisão do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva), que mandara repetir 11 jogos comandados pelo árbitro Edílson Pereira de Carvalho, neste Campeonato Brasileiro. Com isso, a competição passaria a ter um novo líder, o Inter, exatamente às vésperas de seu confronto com o Corinthians.

No entanto, no início da noite, o presidente do STJD, Luiz Zveiter, descartou a possibilidade de alteração da tabela da competição. Segundo ele, a liminar concedida não será cumprida.

Alvinho ficou revoltadíssimo:

‘Pois é, considerados; data venia, neste país de m…, como dizem vocês, vêem-se magistrados do ‘baixo clero’ a tomar decisões somente para aparecer na mídia; será que a meritíssima não poderia simplesmente pendurar uma boa melancia no pescoço?’.

É verdade. Depois, essas ‘autoridades judiciárias’ não querem que a gente chame os árbitros de futebol de juízes, como se houvesse diferença cultural entre eles.

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Espetacular mancada

O considerado Fausto Ryo Osoegawa folheava a revista Mundo Estranho e, em nota sobre ‘As 10 maiores Mancadas da TV Brasileira’, encontrou esta inesquecível gafe cometida durante a Copa de 1974:

(…) o jovem locutor da Rádio Gazeta, Galvão Bueno, foi convocado para narrar videoteipes de alguns jogos pela TV da mesma empresa.

No jogo Alemanha Oriental x Austrália, Galvão narrou vários minutos pensando que a partida fosse Bulgária x Suécia . Os uniformes eram parecidos com os de alemães e australianos, só que búlgaros e suecos só jogariam no dia seguinte . . .

(O colunista pede desculpas por invadir tantas vezes o campo de jogo do colega Marcelo Russio, porém final de campeonato é assim mesmo, todos os apaixonados pulam o alambrado…)

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Bom caráter

Sob o título Indústria de armas bancou campanha do Não, o excelente blog de Josias de Souza publicou artigo do qual se extrai o seguinte trecho:

(…) Secretário-geral e tesoureiro da ‘Frente do Sim’, o deputado Raul Jungmann (PPS-PE) pensa de outro modo: ‘Fica comprovado que os que foram favoráveis ao comércio de armas, a pretexto de defender um direito do cidadão, estavam defendendo na verdade o lucro das empresas de armamentos. A máscara caiu.’

Janistraquis, que sofre influência do Mestre Roldão e já abdicou da paciência, leu e disparou:

‘Considerado, você tem certeza de que esse Raul Jungmann é pessoa de bom caráter?’

Respondi que não tenho certeza de mais nada nesta vida.

(Aos que não têm acesso ao blog, oferece-se o texto no Blogstraquis. Josias não há de reclamar desta ação de pirataria cívica.)

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Dieta radical

O considerado Roldão Simas Filho, diretor de nossa sucursal no DF, de onde se pôde escutar as gargalhadas de Lula mais Palocci, depois do depoimento do ministro à CPI, pois Roldão passava os olhos implacáveis pela Revista de Domingo, do Correio Braziliense, e não engoliu esta esquálida notinha em matéria sobre dietas radicais:

As conseqüências do exagero – (…) mas muitos podem perceber a falta de nutrientes pela perda do brilho ou queda do cabelo, fragilidade das unhas, dificuldades de cicatrização, aftas e ceborréias.

Mestre Roldão, que cuida tanto da basta cabeleira quanto do idioma, ensina:

‘Este desagradável mal, também chamado de hiperesteatose, caracteriza-se pela secreção excessiva ou alteração qualitativa do sebo, como ensina o dicionário. E sebo, vê-se, escreve-se com S.’

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Bassumando o saco

O deputado federal Luiz Bassuma (não confundir com Bussunda), do PT baiano, escreveu em Tendências/Debates da Folha de S. Paulo um texto altamente obscurantista do qual extraímos este, digamos, monstrengo:

(…) São quatro grandes aspectos que permeiam o debate sobre o aborto: espiritual, científico, jurídico e político. Considero o aspecto espiritual o mais importante e complexo, pois desde o momento da fecundação já existe um espírito conectado àquela célula-ovo com sentimentos, emoções e consciência.

Janistraquis, já habituado a ler tais sandices, observa que faltou o quinto aspecto e, este sim, o mais importante e não tão complexo: o feminino.

‘Considerado, Bussunda, ou melhor, Bassuma, só escreve essas besteiras porque não corre o risco de ser engravidado pelo Antonio Carlos Magalhães. O avô, é claro.’

Leia no Blogstraquis a íntegra desse artigo cuja gestação deveria ter sido interrompida em nome do bom senso.

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Nota dez

O Mestre Sérgio Augusto analisa os distúrbios sociais que agitaram a França e não acredita que seja fácil a convivência do islamismo com a democracia:

O Jornal Nacional fechou sua edição de quinta-feira com a notícia de que o governo francês acabara de anunciar o fim das agitações de rua no país. Será que a ‘racaille’ foi avisada? (…) Que força têm as palavras, hem? Aos ouvidos franceses, ‘racaille’ soa mais pesado (e insultuoso) que todos os sinônimos (ralé, choldra, escória, escumalha, gentalha, etc.) com que a nossa língua desqualifica a camada mais baixa da sociedade.

Leia no Blogstraquis a íntegra do artigo originalmente escrito para o caderno Aliás, do Estadão.

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Errei, sim!

‘DO NOSSO ARQUIVO DE TÍTULOS – Um menino é o campeão paulista mirim de hipismo, deu no Jornal da Tarde, de São Paulo. Janistraquis ficou perplexo: ‘Considerado, um homem pode ser campeão mirim de alguma coisa?’, perguntou-me. Respondi que, se a comissão julgadora bobear, um anão esperto…’ (agosto de 1989)’



CARTUM
Marco Aurélio Canônico

‘Cartunistas passam dos blogs para os livros’, copyright Folha de S. Paulo, 28/11/05

‘Dois cartunistas com um senso de humor ácido, duas figuras que ganharam destaque na era da internet com desenhos de personagens toscos, dois autores de blogs de sucesso na rede: Allan Sieber e André Dahmer decidiram fixar seus mundos virtuais no ancestral formato de livro.

‘Sem Comentários’ (Casa XXI, 96 págs., R$ 30), de Sieber, e ‘Malvados’ (Editora Gênese, 128 págs., R$ 25), de Dahmer, reproduzem em suas páginas as tirinhas e personagens que ganharam vida nos blogs dos autores, numa curiosa (e cada vez mais comum) inversão daquilo que se pensou originalmente ser a grande sacada desses sites da internet.

Espécie de diários on-line em que cada pessoa pode construir sua própria página -geralmente com pequenos textos, fotos e desenhos-, os blogs permitiram a uma geração de escritores, desenhistas e fotógrafos divulgar suas obras e idéias livremente, a custo quase nulo e para um público enorme, o que fez muita gente prever a decadência de meios impressos como jornais e livros.

O livro de Sieber, que publica suas tirinhas em dois cadernos da Folha -no Folhateen e, aos domingos, na Ilustrada-, busca reproduzir a atmosfera virtual encontrada em seu site (talktohimselfshow.zip.net). Com um formato de bloco de notas, o livro seleciona material publicado entre 2003 e 2005, incluindo a data em que foram colocados on-line, os comentários dos internautas -parte da interatividade que colaborou para o sucesso dos blogs- e os endereços de todos os sites que são comentados.

Nele estão não apenas as tirinhas politicamente incorretas e os personagens anárquicos criados por Sieber mas também suas hilárias divagações sobre filmes, personalidades e sobre outros desenhistas e ilustradores -um deles o próprio André Dahmer.

Sieber é particularmente talentoso para irritar os religiosos e moralistas de plantão. Desenhos como ‘A Bíblia Versão MTV’, em que Jesus aparece na célebre cena da Última Ceia utilizando um linguajar jovial e cheio de gírias para conversar com os apóstolos, causam uma enxurrada de comentários indignados e ameaças mais e menos veladas.

André Dahmer também não deixa por menos. A capa de seu livro, que segue um formato mais tradicional, reunindo as tirinhas da dupla de girassóis muito apropriadamente intitulada ‘Malvados’, já tem o aviso: ‘Não faço as pessoas de bobas; elas nascem assim…’. Desenhada em preto e branco, com um mínimo de traços e praticamente sem cenário, a dupla que Dahmer -que também publica seus desenhos no ‘Jornal do Brasil’- criou em 2001, em seu site (www.malvados.com.br), ganhou muitos fãs, entre eles figuras ilustres como Laerte, que assina o prefácio.’



SAÚDE NA MÍDIA
Riad Younes

‘Situação ‘vivida’ por personagens de América provoca irritação em cardiologistas’, copyright Carta Capital, 30/11/05

‘E a desinformação avança. Apesar de o Brasil concentrar um número respeitável de centros de cirurgia cardíaca de excelente padrão mundial (considerados entre os dez melhores do mundo pelo Colégio Americano de Cardiologia) e de cirurgiões cardiovasculares de renome e de qualidade reconhecidos internacionalmente, parece que tais qualidades passaram despercebidas pelos produtores da Globo. Alguns cirurgiões estavam, digamos, perplexos pela desinformação veiculada recentemente em uma novela muito popular, como América. Renato Assad, cirurgião cardíaco pediátrico do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas de São Paulo e professor livre-docente da USP, explica por quê.

CartaCapital: Por que a novela da Globo o irritou?

Renato Assad: Na novela América, recém-terminada, uma criança foi levada para um tratamento cirúrgico nos EUA pornão haver possibilidade de tratá-lo no Brasil. Ao passar na Globo, isso causa um impacto muito importante no País. Uma informação equivocada acaba prestando um desserviço à população.

CC: Qual foi a desinformação?

RA: Quem assistiu à novela teve a impressão de que cirurgias cardíacas de doenças congênitas só são possíveis ou mais bem executadas nos EUA, e que aqui não existe tecnologia para tais procedimentos. Nós, cirurgiões brasileiros, não apenas fazemos cirurgias cardíacas, como as fazemos muito bem, por testemunho dos próprios cirurgiões americanos. Não sei exatamente que doença teria acometido a tal criança, mas não existe nenhum problema, até onde eu sei, que não possa ser tratado no Brasil; e com resultados tão bons quanto os melhores centros do mundo. Eu gostaria de deixar claro para a população que nós temos capacidade não só técnica, intelectual, material e de recursos humanos para tratar bebês recém-nascidos, como também para fazer cirurgias intra-uterinas. Já entramos no útero e abordamos o coração do bebê ainda durante a sua formação, para aproveitar o potencial de crescimento do órgão antes do nascimento.

CC: O tratamento do bebê da novela seria somente possível em centros avançados, como o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (Incor), em São Paulo, ou poderia ser realizado em outros centros no Brasil?

RA: No Brasil há vários centros, em vários estados, plenamente capacitados a realizar cirurgias de alta complexidade. Quando a família da criança não tem como pagar, o Sistema Único de Saúde (SUS) dá cobertura e assistência completa, com todos os recursos em centros como o Instituto do Coração.

CC: E para o paciente que pode pagar, os custos desses procedimentos são semelhantes no Brasil e no exterior?

RA: Hoje, a medicina está globalizada. Os materiais utilizados são semelhantes e alguns custos são mais ou menos padronizados. Mas, no geral, o custo final de uma cirurgia desse nível feita no Brasil é inferior. Os honorários médicos e os salários aqui são geralmente inferiores. E a família, quando leva o paciente para o exterior, acaba tendo custos adicionais com hospedagem, acomodação, passagens aéreas etc. São gastos indiretos que devem ser embutidos no custo final do tratamento. Como os resultados médicos finais são semelhantes, fica difícil entender a vantagem de se fazer uma cirurgia cardíaca no exterior.’

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‘Pesquisas para todos os gostos’, copyright Carta Capital, 26/11/05

‘As maravilhas do século XXI estão ao nosso redor. Tecnologia e avanços científicos. Medicina de ponta. Novidades visíveis em todos os lugares: telas, páginas, rádio, televisão… As ciências da saúde não estão fora desse turbilhão. Milhares de pesquisas são publicadas todos os meses em revistas científicas ao redor do mundo. Milhares de informações para ser lidas, digeridas e eventualmente aplicadas na prática do dia-a-dia.

A produção científica na área médica é imensa. Mais de 100 mil estudos e resultados de pesquisas são publicados anualmente. No Brasil temos outra fonte de informações: as teses de mestrado e doutorado defendidas em concursos acadêmicos. Também seus resultados fazem parte do pacote chamado ‘ciência médica’.

Pesquisas precisam ser divulgadas e a mídia tem esse papel. Há poucos dias, por exemplo, jornalistas entrevistaram uma pesquisadora que acabara de defender tese de doutorado avaliando dietas e seu impacto sobre o câncer.

Infelizmente, nem toda tese defendida com sucesso no Brasil tem a sua qualidade científica garantida. Estudo recentemente realizado na Faculdade de Medicina da USP mostrou que uma minoria de teses, mesmo entre as divulgadas na mídia leiga ou semileiga, é, na realidade, publicada em revistas científicas consideradas sérias. Da mesma forma que nem tudo que é publicado em revista médica tem alguma utilidade e até validade científica.

Estudos e mais estudos repetem os resultados assustadores. Levantamentos apontam que, de todas as publicações dos artigos científicos disponíveis em revistas médicas consideradas referências para a comunidade médica, entre 20% e 80% são válidas do ponto de vista metodológico e científico.

Imagine só o desespero dos médicos com escassa formação de metodologia científica (a maioria dos médicos encontra-se nessa categoria), e mais ainda do público leigo quando tem de decidir, lendo este ou aquele artigo, se vai aplicar ou não a informação divulgada.

A população em geral começou a se interessar cada vez mais por assuntos do corpo, da saúde e do bem-estar. Basta olhar o número de revistas de grande circulação no Brasil, assim como no exterior, e comparar a porcentagem de capas dedicadas a assuntos de saúde na década de 80, de 90, e agora neste início dos anos 2000. Percebemos uma proliferação drástica no número de capas relacionadas à saúde.

Para ter uma idéia, em 2004, as revistas de grande circulação no Brasil triplicaram, e algumas quadruplicaram, o número de capas dedicadas a matérias de corpo e de saúde, comparando com a década de 90.

Por que esse interesse? Por que tanta gente quer ler, consumir essas informações? Por que agora? As respostas possíveis são várias.

Primeiro, porque as pessoas vivem mais. A expectativa de vida aumentou, principalmente entre membros das camadas economicamente mais bem situadas. Antigamente, a maioria das mortes era precoce e devida a problemas agudos (infecções, por exemplo, como tuberculose ou sarampo). Hoje, esses males foram substituídos por doenças crônicas (cardiovasculares, hipertensão, câncer etc.). O paciente e seus familiares convivem com essas doenças, com os seus sintomas, por muitos anos. Isso vem levando os pacientes a se interessar cada vez mais pela doença, pelo seu acompanhamento diário. Querem sempre saber mais sobre a doença e os avanços que podem aumentar suas chances de combater ou reverter o problema de saúde. Além disso, o acesso à medicina também aumentou para essa camada da população.

Por outro lado, a nova febre que varre o mundo também atinge a saúde: a sede por informações. Todo mundo quer saber tudo sobre tudo, o tempo todo. Empurrado por essas ondas, progressivamente, o jornalismo científico expandiu-se na mídia leiga e a saúde, como assunto midiático, ganhou maior visibilidade.

Essa enxurrada de informações não veio sem trazer novos problemas em sua esteira. Dilemas para os médicos, sobre como escolher os estudos científicos que merecem ser lidos e como separar o joio do trigo, agora se expandiram para o público leigo. Como separar informações oferecidas pela mídia e saber o que é aplicável já, em que tipo de situação, e o que ainda não passa de simples sugestão a ser mais bem testada e confirmada?

Os leitores ficam confusos com as manchetes e as informações publicadas pelas revistas leigas. Um dia saem manchetes sobre as vantagens das vitaminas. Na semana seguinte, em outra manchete, as mesmas vitaminas caem em desgraça total. Deve-se, afinal, tomar ou não essas vitaminas? Acreditamos ou não nas notícias? Onde está a verdade?

Para piorar a situação, surgiu recentemente uma nova fonte de informações. As instituições de saúde, acadêmicas e não acadêmicas, criaram veículos de informação para o público. Hospitais e centros médicos criaram departamentos inteiros de marqueteiros, além de relações públicas apenas para alimentar a mídia com informações. Muitas, infelizmente, não correspondem a nenhuma verdade, ou não podem ser rigorosamente confirmadas. São simples sugestões, opiniões dos donos dessas instituições, que não se baseiam em nenhum fato verídico.

Os jornalistas da saúde, e incluo-me entre eles, recebem diariamente dicas e informações sobre equipamentos e técnicas novas deste ou daquele hospital. Descobertas ‘maravilhosas’. Para que tudo isso? Para criar uma boa imagem sobre os avanços na ciência. Da qualidade desta ou daquela instituição.

Por outro lado, os verdadeiros cientistas, que antigamente ficavam reclusos em seus laboratórios, atualmente querem, e até precisam, divulgar os resultados de suas pesquisas na mídia leiga. Muitos vivem a insinuar ou a dizer diretamente:

‘Olhem que o meu estudo foi publicado na melhor revista científica do mundo e vocês têm de acreditar que isso é uma garantia da minha qualidade como pesquisador. Garantam, portanto, mais financiamento para as minhas pesquisas subseqüentes, melhorem o meu salário e o dos meus técnicos. Convidem-me para palestras, mandem-me para congressos – de preferência em lugares turísticos…’

Muitos médicos e pesquisadores, por outro lado, não se sentem confortáveis em falar com jornalistas. São tímidos ou têm receio de equívocos de interpretação ou de problemas éticos na divulgação de seus resultados.

Até que se prove o contrário, nenhuma faculdade de medicina treina formalmente seus alunos para transmitirem de forma clara informações importantes para o público leigo. Por falta do hábito, transmitem informações de uma forma incompreensível ou até errada para quem não está afeito ao assunto em questão.

Também as indústrias pesquisam, desenvolvem novas substâncias, novas tecnologias, gastam tempo e dinheiro. E querem, com todo o direito, promover seus produtos (equipamentos, drogas) ou com novas indicações na área de saúde. Para isso, estabeleceu-se ao redor do mundo uma corrente contínua de trabalhos científicos publicados com patrocínio e financiamento das empresas que produzem novidades tecnológicas. Automaticamente, desenvolveu-se um fluxo frenético de press releases, os textos das assessorias de imprensa que apresentam – e propagandeiam – novidades.

Para ter uma idéia, no meu endereço eletrônico chegam, todos os dias, de duas a cinco mensagens, diretamente ou através da redação de CartaCapital, informando sobre novos remédios, novas técnicas ou cirurgiões com qualidades excepcionais para ser divulgados na minha coluna na revista.

Consistentemente, esses press releases chegam enviados por agências de marketing, chamando a atenção para um ‘novo’ produto. Na maioria das vezes, essas novidades atendem por nomes comerciais e não genéricos, com a referência à indústria responsável por sua fabricação e a indicação clara de médicos para ser entrevistados.

De rotina, eu – a exemplo dos meus colegas divulgadores da medicina – investigo o que esses médicos fazem e se os dados divulgados foram cientificamente comprovados ou não passam de mera propaganda comercial. Se as técnicas ditas novas são mesmo novas ou se, simplesmente, trata-se de uma embalagem diferente de velhos conhecidos.

Mas, após essa seleção inicial do material que pode merecer divulgação, vem o dilema do jornalista de saúde. Como escolher a notícia a ser divulgada ou a pesquisa que acaba de ser publicada? O que transmitir para o público e até como relatar?

Um estudo recém-publicado avaliou a atuação da mídia de saúde. E as notas não foram boas.

A pesquisa mostrou que os jornalistas tendem a exagerar os benefícios terapêuticos, diminuem ou ignoram os potenciais efeitos colaterais e quase nunca informam seus leitores sobre ligações importantes entre as indústrias e os especialistas envolvidos nas pesquisas. Falhas graves que demandam, por parte de cientistas, médicos e jornalistas, ações claras e eficazes de correção.

A preocupação com o jornalismo de saúde não é nova. Há freqüentes evidências de artigos que transmitem aos leitores falsas esperanças ou alarmes exagerados. Por outro lado, a recente comercialização intensiva da pesquisa médica e o ‘patrocínio’ de pesquisadores pelas indústrias, envolvendo até pagamentos na forma de cotas ou ações das próprias empresas, criaram um conflito de interesse por parte dos cientistas.

A academia médica está, obviamente, preocupada com esses fatos. Marcia Angell, editora da mais prestigiosa revista de medicina, a New England Journal of Medicine, alertou em claras palavras contra o perigo das ‘relações cada vez mais íntimas entre os cientistas médicos e as indústrias. A mídia leiga, por sua vez, deve ficar atenta a essas ligações’.

A mídia não está conseguindo lidar com todas essas dificuldades por vários motivos.

O primeiro problema situa-se exatamente em quem está escrevendo sobre saúde hoje em dia. A maioria dos profissionais que exercem essa função tem apenas formação jornalística. Eles têm todo o direito de escrever a respeito de saúde ou qualquer outro tema. Mas cabe questionar quem são esses jornalistas que escrevem sobre as ciências da saúde e como chegaram a esse posto especializado dentro da revista ou do jornal.

Pesquisas realizadas ao redor do mundo, e no Brasil não deve ser muito diferente, mostram que, salvo em raros casos, esses jornalistas de saúde não chegaram a ter qualquer formação básica, acadêmica, nas áreas específicas da saúde ou das ciências correlatas. ‘E daí?’, diria alguém. ‘Jornalista que cobre notícias do Parlamento não precisa ter, necessariamente, formação em ciências políticas.’ Pode ser, mas no que tange à área da saúde, a coisa é um pouco mais complexa e arriscada.

Existem desvantagens pela falta de contato formal com a ciência. Falta de domínio do jargão científico e, mais importante, há uma deficiência da capacidade de análise crítica, objetiva, que um bom observador externo necessita para analisar a real validade de um artigo científico.

Por outro lado, entretanto, há vantagens na formação não especializada. O bom jornalista que nunca foi cientista freqüentemente transmite informações para o leigo com maior eficiência e clareza. O cientista tem a tendência de escrever em ‘cientifiquês’ ou em ‘mediquês’.

Mas, apesar dessas vantagens do profissional leigo em ciência e medicina, a avaliação de alguém mais especializado muitas vezes faz falta. A maioria das revistas, dos jornais, dos canais de tevê e outros veículos de comunicação não possui um editor, responsável pelas colunas e reportagens sobre saúde, que tenha algum treinamento ou especialização nas áreas correlatas à saúde, como biologia, bioquímica, farmacologia, medicina etc.

Daí surge outro problema. A decisão sobre a escolha de um tema, ou a divulgação de uma informação, além da forma de seu relato para o público, depende quase que exclusivamente do jornalista generalista. Dificilmente o que esses profissionais escrevem será contestado ou modificado pelos editores, a menos que atrapalhe a vendagem da revista ou a audiência do programa de tevê.

Jornalista de saúde deveria ter noções claras de estatística. Muitos estudos publicados apresentam falhas, cometidas de forma consciente ou acidental pelos pesquisadores responsáveis. O jornalista tem de evitar ser um cúmplice da desinformação.

Os profissionais de relações públicas que trabalham para indústrias, instituições ou para médicos podem plantar armadilhas para os jornalistas. Algumas notícias de ‘soluções fantásticas’ e ‘resultados milagrosos’ não passam de afirmações copiadas diretamente de press releases.

Nem tudo que parece, ou que faz algum sentido, é confiável e verdadeiro. Não podemos esquecer jamais que a ciência é baseada na probabilidade, na incerteza e mais ainda na evolução de conceitos, teorias e métodos.

Os pesquisadores em geral são mais compreensivos, mais pacientes, em relação ao ritmo, muitas vezes lento, de progressão da ciência do que os leigos. Os cientistas de verdade continuamente se autocorrigem. Aceitam sugestões e críticas de seus pares. Não devem nunca se sentir absolutos em suas conclusões.

O público, por outro lado, focaliza a sua atenção nos resultados finais. Tanto o leitor quanto o jornalista muitas vezes esquecem as observações e ressalvas feitas pelos próprios pesquisadores. Acreditam no que querem e não necessariamente no que o próprio autor do artigo científico escreveu.

O ego do profissional também tem um papel nessa situação. Muitos jornalistas de ciência e de saúde consideram-se membros de uma elite. Alguns são mesmo. Mas muitos tendem a publicar apenas resultados positivos. Estudos com resultados negativos ou não muito glamourosos são deixados de lado, sistematicamente.

Jornalistas muitas vezes ignoram partes importantes dos estudos publicados, como, por exemplo, a população-alvo ou a população estudada. Esquecem que os resultados divulgados num artigo específico somente podem ser aplicados se as mesmas condições foram exatamente observadas.

Se um remédio funcionou muito bem quando foi testado num país ou região, isso não significa, necessariamente, que funcionará em pacientes de outros lugares. O importante exemplo disso aconteceu recentemente, quando um medicamento contra câncer de pulmão demonstrou ser bastante eficaz em orientais (japoneses e coreanos) e muito pouco eficiente nos ocidentais. Mesmo especialistas no assunto ficaram perplexos.

Naquele caso, a disseminação intensiva e a generalização dos resultados obtidos no Oriente mostraram-se um grande erro. Acabou levando muitos pacientes a exigir e a receber medicamentos desnecessários, caros e com pouca eficiência, durante muito tempo. Foram necessários vários anos e muitos estudos para comprovar a falta de efeito desse medicamento na população ocidental em geral.

Esse mesmo medicamento foi divulgado na maior parte das revistas leigas do Brasil como um novo milagre contra o câncer de pulmão dois ou três anos atrás. Mas, infelizmente, depois de comprovada a falta de eficiência do medicamento, pouco ou nada foi publicado a respeito pelas mesmas revistas. Resultados negativos não vendem.

Frases como ‘estudo preliminar’, ‘resultados parciais’, ‘amostra pequena, provavelmente não representativa de toda a população’, ‘estudos em ratos’, ‘mais estudos serão necessários para confirmar esses resultados’, escritas por autores de artigos e estudos, não são mencionadas pela maioria dos jornalistas.

O sensacionalismo é um problema comum. Os bons jornalistas devem identificar e resistir a essa tentação. A linguagem empregada tem de ser adequada para atingir o máximo de pessoas. Principalmente os leigos com pouca formação educacional e, portanto, em média, com menor capacidade de discernimento. Esses são alvos fáceis para a desinformação. É uma missão e obrigação dos bons jornalistas divulgar, se possível, dados muito bem lapidados para transmitir informações úteis e claras a todos os leitores, em todas as camadas sociais.

Os médicos, por outro lado, freqüentemente ficam frustrados diante das conseqüências de relatos irresponsáveis, tendenciosos, imprecisos e sensacionalistas. Na ótica dos médicos, os jornalistas parecem ser menos interessados na informação correta, e muito mais em vender jornais e revistas e em atrair mais telespectadores.

Aqui vai uma pequena sugestão para jornalistas de saúde. Na próxima vez, antes de produzir uma matéria, leia com cuidado e senso crítico, o estudo e os resultados divulgados. A vida de muita gente pode depender de um pequeno deslize na informação. Exemplos não faltam na mídia nacional e internacional.

Para os leigos leitores das colunas de saúde, as dicas são poucas. Verifique se o jornalista descreveu o estudo de forma clara, identificou a população estudada e mostrou os resultados em números absolutos e em porcentagens. Somente dados relativos podem dar falsas idéias.

Uma triste notícia que correu o mundo e causou desespero pouco justificado foi relacionada à reposição hormonal em mulheres na menopausa. Um estudo muito bem-feito mostrou que a administração dos hormônios aumentou as chances de câncer de mama em 50%. Mulheres desesperadas correram a seus médicos. Horas e horas foram gastas para explicar o que os números na verdade diziam.

A pesquisa mostrava que o risco, que era de um caso de câncer de mama para cada mil mulheres sem reposição hormonal, subia para 1,5 para cada mil entre as que faziam reposição. Um aumento de 50% do risco parece trágico, mas o número absoluto é apenas 1,5/1.000. Mas o sensacionalismo ganhou. As revistas e os jornais venderam. Colunas e mais colunas foram escritas e devoradas pelos leitores. A verdade e os fatos tiveram de esperar.’



SEXO & MÍDIA
Pedro Doria

‘Era uma vez a privacidade’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 23/11/05

‘O filmete tem onze minutos de sexo explícito. A câmera não se move, não há zoom, está fincada num tripé ou apoiada num móvel. O casal está ofegante. Não há gritinhos; no máximo, murmúrios. A moça é estonteantemente bonita: uma morena de cabelos chanel, lábios espessos – às vezes, faz caretas que quase lembram dor, mas não são de dor. É uma estrela pop na Croácia, Severina Vuckovic, tem 32 anos. Em todas as imagens do filme pessoal gravado num quarto de hotel, o mais evidente é aquilo que nunca há em filmes pornográficos: um sorriso terno. Carinho assim, tão íntimo, desconcerta, não é para ser público. Mas não há buraco de fechadura ou risco de flagrante na indiscrição: o filme feito para consumo próprio caiu na rede. Nunca mais será apagado. A intimidade de Severina é pública. A privacidade dela acabou.

Em maio de 2000, a HSBC Seguros brasileira demitiu um empregado por justa causa. Ele fazia o que é corriqueiro na rede: distribuía por e-mail fotos de mulheres nuas – poderia ter sido, se já existisse em 2000, o filme de Severina. O que ele não sabia é que o patrão tinha por hábito passar os olhos em sua correspondência eletrônica. Foi à Justiça. Correspondência, ele dizia, é inviolável. Em maio último, cinco anos exatos de trâmite depois, o Tribunal Superior do Trabalho concluiu que não. Aquela correspondência inviolável à qual a Constituição se refere é a de papel. O que for feito no computador da empresa a chefia pode ver. A privacidade, como a conhecemos, acabou mesmo, em seus detalhes mais sutis, para todo mundo.

O que acabou com a privacidade foi a tecnologia. O fim da privacidade está nas câmeras de segurança onipresentes em cada grande cidade. Está em tudo que armazenamos em computadores, por mais íntimo: o técnico que conserta a máquina, o hacker que entra pela banda larga, o empregador que gere a rede – todos têm acesso. O fim está nas câmeras digitais, cada vez menores: em celulares, canetas, botões. Cada vez que um cartão magnético ou com chip é usado – seja de crédito, de fidelidade, seja um documento – alguma informação sobre hábitos pessoais está sendo armazenada por alguém. E, com a Internet, distribuir é de uma facilidade aterradora.

‘De certa forma, voltamos à era medieval, temos que confiar na boa-fé dos outros’ – diz Paiva, 30 anos, advogado em Belém do Pará, professor da Universidade Federal do estado – e um dos raros estudiosos do direito informático no Brasil. Ele se refere a confiar na boa-fé, por exemplo, de uma empresa de cartões de crédito que não revelará para ninguém os hábitos de compra de um consumidor. Ou de uma revista que não revenderá sua lista de assinantes. Confiar adianta muito pouco, quase nada. Bancos de dados são revendidos.

Flerte no botequim

Na Alemanha, liberar qualquer informação sobre um indivíduo sem sua expressa autorização é crime faz 15 anos. Não é o tipo de legislação comum pelo mundo, mas o caso brasileiro é particularmente omisso. ‘Nós temos esta nova realidade e a legislação brasileira não prevê nada’, explica Paiva. O resultado é que, na falta de leis, o judiciário adapta as que existem. O que corre em Brasília é que, dos 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça, apenas seis mexem em computador com desenvoltura. São eles que decidem. No caso do e-mail violado pela HSBC, o TST teve de lidar com um conflito constitucional: os meios de produção pertencem ao empregador versus a intimidade é inviolável e a correspondência, sigilosa. Predominou o princípio que agrada ao patrão.

A causa ainda pode ir para o Supremo Tribunal Federal, já que tem a Constituição no meio. Demora anos. Até lá, a mensagem que os juízes de instâncias inferiores – e os outros patrões – receberam é de que quebrar e-mail, ou mesmo quaisquer outros dados no computador do serviço, é terreno permitido. Paiva é um irrequieto e costuma escrever artigos, comparando as leis em países vários, mas poucos o lêem. Um de seus pavores são os bancos de dados públicos da Justiça. É possível entrar no site de qualquer tribunal, lançar a palavra Aids num sistema de busca, e receber uma lista de quem anda pleiteando tratamento. O que vai pela Justiça é coisa pública – mas antes dava trabalho levantar a lista. Agora vai a um clique de mouse. Não há certo ou errado, Justiça na web é mais democrática. Só que tem um preço.

Bancos de dados são a maior e mais discreta ameaça à privacidade de todos. Desde 2003, o governo norte-americano mantém em funcionamento o Matrix, um grande aglomerado de bancos de dados que lhe permite encontrar possíveis terroristas. Tem dados médicos, informação sobre motoristas, antecedentes criminais, relatórios de uso de cartões de crédito. E não só de norte-americanos. Segundo o Epic, Centro de Informação sobre Privacidade Eletrônica, uma das empresas responsáveis pelo Matrix, a ChoicePoint, tem cadastros de todos os empresários brasileiros, além de uma lista telefônica completa que inclui os números não listados daqui. Parece pouco, mas é só o início. Estão todos no mercado para adquirir os bancos de dados que estiverem à venda. Não demora muito para que qualquer agente de imigração nos EUA tenha acesso a mais dados sobre um cidadão brasileiro – ou mexicano, ou argentino, ou saudita – do que seus governos de origem.

Bancos de dados coletam informação, muitas vezes, de forma tão sutil que quem tem uma conta no Orkut e faz buscas freqüentes no Google não sabe que uma longa lista de tudo o que já procurou por ali pode, tecnicamente, ser armazenado na mesma gaveta que guarda a ficha que o usuário fez no site de relacionamentos. A informação, deu quem quis.

Aos 35 anos, Antônio Rodrigues tem uma daquelas histórias espetaculares de Brasil. Cearense, migrado aos 13 anos para o Rio de Janeiro, limpou muito banheiro no Mabs, bar de Copacabana conhecido pela freqüência de prostitutas e turistas. Hoje é dono de uma cadeia de seis botequins os mais cariocas, daqueles de chope bem tirado e comidinhas de belisco rápido – o Belmonte. Tem 350 funcionários cuja gerência são um pesadelo. Ele procura não ter alta rotatividade de empregados, mas nem sempre é possível. Então Antônio tem câmeras para que seus gerentes saibam sempre o que se passa nas entranhas do estabelecimento.

Já demitiu gente flagrada pelo vídeo. Um tentou arrancar a câmera. Mas também já teve episódios de furto no vestiário – ‘só que não posso botar câmera ali’, ele diz com um certo desânimo. Já chegou a cultivar a idéia de ligar todo o sistema de todos os Belmontes à Internet para que pudesse acompanhar o movimento de casa. É o olho do dono no século 21. Desistiu – ‘não dá para perceber que o fogão está sujo pela Internet’. Seu dilema é mais que compreensível: tem um negócio, emprega gente, está crescendo em tempos de crise – e o problema da segurança e bom funcionamento existe. Assim como existe a tecnologia que pode ajudar a resolver o problema, e é para isso mesmo que tecnologia serve. Mas, aí, seus funcionários não têm privacidade e o gerente saberá do flerte discreto entre a cozinheira casada e o garçom.

Nudez no raio X

Dadas umas pitadas de bom senso, é possível compreender o dilema norte-americano, independentemente de guerras. O perigo terrorista é real, faz sentido desenvolver bancos de dados que acumulem informação e resultem em padrões de comportamento que possam identificar possíveis terroristas. O problema é o limite: tecnologia avança a passos largos, então fica cada vez menos claro onde mexer é demais. Um novo sistema de raio X que a Administração de Segurança nos Transportes gostaria de instalar em alguns aeroportos permite ver as pessoas nuas. Não haverá mais como passar facas ou explosivos plásticos – nada. Ainda não houve autorização para uso.

Segurança é uma questão chave quando se fala de privacidade – e não só para justificar que ela termine. O problema de sistemas digitais é que eles não são seguros. Ninguém que peça dados de pessoas para fornecer serviços gosta de reconhecer o fato, mas digital e seguro é uma contradição em termos. Bancos são quebrados por hackers a toda hora. Duas decisões recentes, em Brasília e Santa Catarina, condenaram respectivamente Banco do Brasil e Caixa Econômica a indenizar correntistas lesados por fraude eletrônica. O próprio banco de dados da ChoicePoint, aquele mesmo que representa a esperança dos EUA no combate a terroristas, foi quebrado em fevereiro. Vazou informação sobre 145.000 pessoas.

Esta falta de segurança é um dos motivos que leva ao receio muitos técnicos que analisam a urna eletrônica brasileira. Como é um sistema fechado, a única coisa que garante sua inviolabilidade é a palavra do Tribunal Superior Eleitoral. Mas um relatório confidencial do PT usando dados oficiais do TSE revelou que das 1.153 urnas utilizadas no segundo turno de 2002, no Distrito Federal, apenas 600 passaram pelo teste que indicava não haver votos registrados antes do pleito. Só 121 delas passaram por um autoteste sem revelar qualquer problema. E, naquela eleição, Joaquim Roriz (PMDB) foi reeleito governador com uma diferença de 1,24% dos votos contra Geraldo Magela (PT).

Não quer dizer que houve fraude, só que há dúvidas. Como a urna é uma caixa-preta, se quisesse o TSE poderia até quebrar o voto secreto e listar cada eleitor com seu voto.

Nem precisaria. No ano passado, a campanha do Partido Republicano pôs em testes, nos EUA, um sistema chamado WebVoter. Cada militante pró-Bush em Minnesota reportou as preferências eleitorais de 25 vizinhos. É uma pesquisa eleitoral onde o eleitor tem nome. No teste de 2004, levantaram as preferências de 60% da população no estado. Na próxima campanha, poderão quebrar o voto secreto sem quebrar as regras. E, naturalmente, campanhas noutras partes do mundo farão o mesmo.

A sociedade transparente

Sem percebermos de todo, um padrão vem se desenvolvendo nos últimos anos. Quando tecnologia permite avançar um pouco mais no terreno privado, alguém o fará. Como boa parte dos dados são oferecidos voluntariamente em troca de serviços, sem saber a própria sociedade está fazendo sua escolha. Mas nem tudo é voluntário e mesmo as câmeras de segurança não são mais assim tão inocentes. Durante a última final de Futebol Americano, 22 câmeras filmaram cuidadosamente os 100.000 espectadores. Cada rosto foi analisado por um software que o comparava com uma lista de fotos de criminosos procurados.

Cada rosto anônimo na multidão, não demora muito, terá nome, histórico de crédito, preferências sexuais, folha corrida, doenças sofridas. São incontáveis as ongs internacionais que lutam para impedir abusos e alertar sobre o que acontece. Suas vitórias muitas vezes parecem parciais, têm no máximo o efeito de adiar o que sai na marra.

David Brin tem 54 anos, é astrônomo e escritor de ficção-científica. Seu romance mais conhecido é ‘O mensageiro’, adaptado para o cinema em 1997, com Kevin Costner no papel principal. Brin faz de imaginar o futuro também um trabalho de consultoria – e está convencido de que a privacidade como a conhecemos fatalmente chegará ao fim. Então, propõe uma alternativa ao Grande Irmão de George Orwell: a sociedade transparente.

‘Imagine’, sugeriu a NoMínimo, ‘um mundo onde todos podem ver qualquer coisa usando trilhões de câmeras microscópicas em tamanho e preço, distribuídas por toda a Terra e conectadas à Internet por sistemas de busca poderosos. Sim, as pessoas poderão olhar para você, mas você também saberá com facilidade quem está olhando. Será que uma sociedade assim não desenvolveria algum tipo de limite? Pessoas flagradas enquanto espiam as coisas particulares de outras sofreriam conseqüências. E todos seriam sempre descobertos.’

Na Sociedade Transparente de Brin, a privacidade não existe mais – mas não são governos e empresas que têm controle sobre tais dados. É todo mundo, quem quiser. Claro – os onze minutos, e tantos outros mais da vida de Severina Vuckovic continuariam públicos. É desconfortável. Mas, se o fim da privacidade é inevitável, é uma alternativa.’